Mais um bom programa: ver e sentir a cidade através dos clássicos do cinema

Para as indicações de hoje, escolhi três filmes clássicos do cinema mundial em que as cidades cumprem importante papel. São títulos que vale a pena ver e rever muitas vezes na vida, não só nas férias. Segue abaixo um pequeno resumo sobre cada um:

1. Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos
O filme acompanha um domingo na vida de cinco garotos pobres que vendem amendoim nas praias do Rio de Janeiro. O corcovado, o Pão de Açucar, as praias e o Maracanã são alguns dos cenários que compõem a paisagem. De estética realista, marcadamente documental, o filme é um marco da nossa cinematografia.

2. Roma (1972), de Federico Fellini
A cidade eterna – seus tipos, suas cores, suas ruas, seus hábitos – é aqui sem dúvida a principal personagem. Com uma narrativa não-linear, sobrepondo tempos do passado e do presente, Fellini conseguiu construir um filme intenso, de cores fortes, apresentando um olhar peculiar sobre a cidade.

3. Manhattan (1979), de Woody Allen
A abertura do filme (abaixo) é considerada uma das mais bonitas da história do cinema. Filmada em preto e branco, a Nova York de Woody Allen é o cenário para as reflexões de seus personagens sobre os relacionamentos humanos, a filosofia e a sociedade.

Mais sugestões para as férias: nossas cidades pelos olhos de alguns documentaristas brasileiros

Há muitos documentários no Brasil em que a cidade aparece como personagem. Continuando minhas sugestões de programa para as férias, selecionei alguns títulos recentes: dois sobre movimentos de moradia no centro de São Paulo, um sobre a vida de moradores de cobertura, filmado no Recife, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e outro sobre o minhocão, também em São Paulo. Mais sugestões são bem-vindas!

Veja abaixo mais detalhes sobre cada filme:

1. “À margem do concreto” (2005), de Evaldo Mocarzel
O documentário mostra a vida de lideranças do movimento de moradia no centro de São Paulo, acompanhando a rotina dos sem teto e seu modo de viver. A partir de uma perspectiva humanizada, o diretor mostra também ações de ocupação, suas dificuldades e conquistas.

2. “Dia de Festa” (2006), de Toni Ventura e Pablo Georgieff
Neste filme o problema da moradia em São Paulo é narrado a partir do olhar de quatro lideranças femininas do movimento sem teto: Neti, Silmara, Janaína e Ednalva. O documentário acompanha os preparativos para uma ação de ocupação simultânea em sete prédios desocupados da cidade. Saiba mais sobre o filme aqui.

3. “Um lugar ao sol” (2009), de Gabriel Mascaro 
Do alto de coberturas de três grandes cidades brasileiras – Recife, Rio de Janeiro e São Paulo – o diretor pernambucano investiga o olhar de oito moradores dessas habitações de luxo sobre a cidade. Isolamento social, insegurança, vaidade, status e poder são alguns dos temas que emergem do filme, que também nos faz pensar sobre a verticalização e o nosso modelo de cidade. Mais informações aqui.

4. “Elevado 3.5” (2010), de João Sodré, Maíra Bühler e Paulo Pastorelo
O documentário é conduzido a partir das histórias de diversas pessoas que vivenciam o cotidiano dos 3,5 km do minhocão, a via expressa construída no centro de São Paulo nos anos 1960. Do passado ao presente, de baixo pra cima ou de cima pra baixo, cada personagem constrói e reconstrói a história do minhocão. Mais informações aqui.

CPI das Remoções investigará denúncias de violações em obras da Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro

Depois de uma grande movimentação da sociedade civil do Rio de Janeiro, o requerimento para instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Remoções na Câmara Municipal alcançou ontem as assinaturas necessárias para a abertura do processo.

O pedido foi apresentado há dois meses pelo vereador Eliomar Coelho e precisava de 17 assinaturas para ser protocolado na Câmara. No fim das contas, 19 vereadores, de diversos partidos, assinaram o requerimento.

A CPI deverá investigar denúncias de violações de direitos humanos nas remoções de comunidades em função das obras voltadas para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.

A previsão é que a CPI seja instalada apenas em agosto, já que a câmara entrará em recesso.

Leia matéria do UOL sobre o assunto.

Porto Maravilha: custos públicos e benefícios privados?

A partir de hoje, a gestão dos serviços públicos em parte da região portuária do Rio de Janeiro começará a ser feita pelo Consórcio Porto Novo (formado pelas empresas OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia). Ao longo de 15 anos, o consórcio receberá R$ 7,6 bilhões da prefeitura para o investimentos em obras e para a realização de serviços como coleta de lixo, troca de iluminação e gestão do trânsito na região.

Além disso, como parte da operação urbana Porto Maravilha – como é chamado o projeto de revitalização da zona portuária do Rio –  a prefeitura realizou hoje o leilão dos Cepacs (certificados de potencial adicional construtivo) da área. O Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha, da Caixa Econômica Federal, arrematou todos os títulos por R$ 3,5 bilhões. Cada um dos 6,4 milhões de cepacs foi vendido por R$ 545.

O curioso é que a maior parte dos terrenos que fazem parte da operação urbana Porto Maravilha, que ocupa uma área de 5 milhões de m², são terras públicas, principalmente do governo federal, que foram “vendidas” para a prefeitura do Rio, a partir de avaliações feitas por… ? Pela própria Caixa que, agora, através do Fundo que ela mesma criou, com recursos do FGTS que ela administra, buscará vender os cepacs no mercado imobiliário para construtoras interessadas em construir na região.

Ou seja, estamos diante de uma operação imobiliária executada por empresas privadas, mas financiada, de forma engenhosa, com recursos públicos em terrenos públicos. Continuamos sem saber onde estão os benefícios públicos desta PPP (Parceria-Público-Privada).

Leia mais sobre este assunto na página do jornal O Globo e na Folha Online.

Intervenção artística chama atenção para remoções no Morro da Providência, no Rio de Janeiro

Sábado passado pude conferir, no morro da Providência, no Rio de Janeiro, uma interessantíssima intervenção artística idealizada pelo fotógrafo francês J.R, que vem desenvolvendo trabalhos semelhantes no mundo inteiro a partir do projeto “Inside Out”.

A ideia do projeto é, através do  compartilhamento de retratos, chamar a atenção para problemas enfrentados por comunidades em todo o mundo. As fotos são compartilhadas através de um site, depois são impressas em formato gigante e devolvidas para que sejam expostas nas comunidades.

Mais de 100 moradores do Morro da Providência participaram da intervenção do último sábado. Eles buscam chamar a atenção da sociedade para as remoções que estão ocorrendo por conta do projeto de renovação da área portuária do Rio de Janeiro. As fotos foram feitas pelo fotógrafo Maurício Hora, morador da comunidade.

Apesar de a urbanização do morro estar sendo anunciada como parte do programa “Morar Carioca”, o projeto, assim como sua forma de implementação, parece não ter nada a ver com este programa, cuja metodologia pressupõe  a participação dos moradores e a exigência de considerar, em seu ponto de partida, o patrimônio material e imaterial presente nas comunidades.

Clique aqui para saber mais sobre o “Inside Out Project”.

Veja abaixo algumas fotos* da intervenção:

* As fotos são de Luiz Baltar e foram originalmente publicadas no site Viva Favela.

Porto Maravilha: começou mal e pode piorar

Mal foi aprovada, a legislação que regula a revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, conhecida como Projeto Porto Maravilha, já pode sofrer mudanças. Segundo matéria publicada domingo na Folha de São Paulo, a prefeitura do Rio pretende ampliar, em um único terreno, a altura permitida para as edificações. O terreno em questão é do Banco Central.

Segundo o jornal, a prefeitura enviou em janeiro, à Câmara Municipal, um projeto de lei que amplia de 18 para 30 metros, apenas no terreno do banco, a altura máxima das edificações dentro da área de preservação histórica e ambiental da região portuária.

Se vier a ser aprovada, a alteração casuística da lei – que já é questionável do jeito que está -, para atender o interesse específico de um proprietário, evidenciará a fragilidade da garantia do interesse público envolvido nesse projeto.

Aliás, um projeto que foi aprovado a toque de caixa na Câmara do Rio, sem discussão, e que tem sido objeto de vários questionamentos, tanto do ponto de vista urbanístico, quanto de seus efeitos para a população moradora do local atualmente.

Entre outras questões, a lei da revitalização da zona portuária altera de forma significativa a chamada paisagem cultural do Rio de Janeiro (que está sendo objeto agora de pedido de reconhecimento como patrimônio mundial da Unesco).

Além disso, a lei não garante que a valorização decorrente dos enormes potenciais construtivos atribuídos à região permitirá a construção de moradias de interesse social, nem que a população hoje residente no local não será expulsa.

Remoção de parte da Vila Autódromo, no Rio: não existe outra alternativa?

Na última quarta-feira, a juíza Cristina Aparecida de Souza Santos emitiu sentença na qual determina a remoção de parte da comunidade da Vila Autódromo, situada próxima à lagoa de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Com a justificativa de fazer cumprir a legislação ambiental, a Justiça do Rio pode estar ajudando a produzir novas ocupações em áreas de risco e de preservação.

Os problemas da Vila Autódromo poderiam ser resolvidos com a implementação de um projeto urbanístico que eliminasse a situação de risco e vulnerabilidade e melhorasse as condições ambientais da comunidade e de todo o seu entorno. Em vez disso, a Justiça autoriza as remoções, sem compromisso com uma solução habitacional que respeite o direito à moradia adequada da população que será atingida.

Desde os Jogos Panamericanos a comunidade da Vila Autódromo vem resistindo às ameaças de remoção. O fato é que ela está localizada na área onde será implantado o projeto olímpico, assim como ações de urbanização e reestruturação imobiliária. Para os interesses empresarias envolvidos na construção e remodelamento da região, as comunidades precisam ser removidas porque elas representam um empecilho à “limpeza” da área. E a prefeitura absorve e adota essa posição como diretriz ao afirmar que essas comunidades têm que ser removidas e não urbanizadas.

O pior de tudo é que não há debate público sobre o assunto. O projeto Olímpico, assim como o da Copa, não está sendo objeto de discussão pela sociedade. Assim, outras possibilidades de projetos, inclusive aqueles que contemplariam a urbanização dessas áreas, não puderam ser elaborados, nem expostos, nem muito menos debatidos ou levados em consideração. É de um extremo autoritarismo fechar todos os projetos para as Olimpíadas e a Copa sem nenhum debate público, com interlocução do governo apenas com o setor empresarial.

Modificar o modelo de ocupação das cidades brasileiras ainda é possível

Em mais uma entrevista sobre as chuvas e as tragédias das últimas semanas, desta vez para a Agência Brasil, novamente falei da importância da gestão do solo e da necessidade de mudança do modelo de desenvolvimento urbano e da lógica de organização das nossas cidades. Confiram abaixo.

Obras emergenciais não são suficientes para cidades castigadas pelas chuvas, diz especialista

Luana Lourenço*

Repórter da Agência Brasil

Brasília – A tragédia que atingiu os municípios da região serrana do Rio de Janeiro é resultado da má gestão do solo urbano e pode continuar a se repetir se não houver mudanças estruturais na política de planejamento das cidades. O alerta é da professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Raquel Rolnik.

Na avaliação da urbanista, que é relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, apesar de necessários a curto prazo, os investimentos em obras emergenciais não são capazes de evitar a repetição de desastres.

“Vamos ver prefeitos e governadores anunciando obras, como em todos os anos. E exatamente porque o problema não é esse, as coisas continuarão exatamente como estão. A solução não é a obra, é a lógica de organização das cidades”, disse ela.

De acordo com Raquel, as cenas da última semana em Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis, que já foram vistas em Angra dos Reis, em 2010, e em Santa Catarina, em 2008, revelam falhas históricas e estruturais na ocupação de territórios.

“As imagens não mudam porque o modelo de desenvolvimento urbano e a lógica de organização das cidades não mudou. Falta haver uma política para que os municípios tenham, de fato, um planejamento urbano que parta principalmente da gestão do solo”, afirmou Raquel.

Quando se fala em planejamento urbano no Brasil, segundo a urbanista, a pauta é definida basicamente do ponto de vista da construção de obras, e não leva em conta a gestão adequada do solo. As consequências são conhecidas: ocupação de várzeas de rios e construções em encostas de morros, que deveriam servir para amortecer os impactos dos fenômenos climáticos.

“Também falta uma política que controle a expansão ilimitada horizontal das cidades, que é o modelo predominante e que vai impermeabilizar tudo, desmatando tudo, provocando erosão, que vai causando assoreamento e diminuindo o leito dos córregos e dos rios”, disse Raquel.

Segundo Raquel, modificar o modelo de ocupação das cidades brasileiras ainda é possível, mesmo em áreas consolidadas. “Na história das cidades há aquelas que se reinventaram radicalmente, e mais de uma vez. Mas, para isso, é preciso romper com o modelo. E a ruptura não é uma questão técnica, é uma questão política.”.

*Colaborou Marina Bosio

A gestão e o planejamento do solo parece que não fazem parte da política urbana no Brasil

Ontem à tarde participei do Jornal da Globo News, novamente falando sobre a questão das chuvas. O vídeo está disponível aqui.

A apresentadora Leilane Neubarth começou a entrevista me perguntando o que pode ser feito para mudar essa situação. Segue abaixo a transcrição do trecho inicial:

Essa tragédia tem a ver com o fato de que a ocupação do território se dá de forma completamente negligente. No fundo nós estamos construindo cidades sem nenhuma consideração em relação à vulnerabilidade dos espaços. E quando se fala nisso, imediatamente, as pessoas pensam: “mas por que é que esse povo foi morar em área de risco?”.

Nós precisamos entender que não foi dada nenhuma oportunidade para que os moradores urbanos brasileiros pudessem se instalar num local com qualidade, urbanidade e segurança. Na verdade, a maior parte das nossas cidades foi autoproduzida por seus moradores nos piores lugares, que são os lugares mais baratos, já que o salário dos trabalhadores brasileiros jamais foi suficiente pra cobrir o custo da moradia numa área adequada.

Mas essa tragédia na região serrana do Rio de Janeiro está mostrando que não são só os bairros populares irregulares e autoconstruídos que estão sujeitos a esse tipo de problema. Nós vimos condomínios de luxo desabando, instalados em áreas inadequadas.

E isso leva a uma outra questão, que é a gestão do solo urbano. E esse é um problema ainda não tocado. Fala-se em política de habitação, em construção de casas, em saneamento, em obra disso e daquilo, em dinheiro para isso e aquilo, mas a gestão e o planejamento do solo é um assunto que parece que não faz parte da agenda de política urbana no Brasil.

A gestão é precária e os efeitos disso é o que nós estamos vendo agora, e que se repete todos os anos e vai continuar se repetindo se esse modelo e essa lógica não for superada.

O trem-bala melhora a condição de mobilidade metropolitana?

Leia abaixo a entrevista completa concedida ao brasilianas.org sobre o projeto do trem de alta velocidade (TAV) brasileiro ou acesse o link da publicação original aqui.

17/12/2010

Por Bruno de Pierro

A decisão do governo de adiar o leilão do trem de alta velocidade (TAV), de 29 de novembro para 11 de abril, foi motivada, principalmente, pelas pressões dos grupos brasileiros e estrangeiros interessados na obra e pela possibilidade de apenas um concorrente se manifestar para a licitação, no caso o consórcio coreano.

O período, no entanto, tem gerado discussões sobre a viabilidade do projeto, estimado em R$ 33,1 bilhões, não apenas do ponto de vista econômico, mas também social e urbanístico. Em relação ao pagamento da obra, o BNDES poderá financiar R$ 19,9 bilhões, os sócios privados devem entrar com aproximadamente R$ 7 bilhões e ainda restam os fundos de pensão, que desembolsarão R$ 1,5 bilhão durante cinco anos. Já o consórcio deverá providenciar mais R$ 6,6 bilhões próprios.

Mas o fato é que ainda restam muitas dúvidas acerca do trem-bala brasileiro, inclusive sobre sua relevância estratégica no contexto da mobilidade entre os centros urbanos que serão privilegiados pelo trajeto do TAV.

Segundo a professora da FAU/USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, o trem-bala representa apenas uma alternativa ao avião. Em entrevista ao Brasilianas.org, a ex-Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003 e 2007) explicou a necessidade de se investir em trens normais e a desvinculação do projeto do trem-bala com os problemas de transporte intra-metropolitanos. Confira.

Brasilianas.org – O que o Trem de Alta Velocidade representaria no contexto da mobilidade urbana? Como relacionar essa obra com as políticas públicas de trânsito nas grandes cidades?

Raquel Rolnik – O trem-bala, da maneira como está sendo modelado, é um substituto do avião, basicamente. Então, ele não tem nenhum impacto no transporte urbano, como alternativa e no sentido da melhoria do transporte urbano e do metropolitano. Teria sido muito mais interessante a opção por um grande investimento no trem normal, integrado a um sistema de mobilidade metropolitana sobre trilhos, seja de superfície ou subterrâneo. No caso da primeira parada do trem, na ligação com o aeroporto de Guarulhos, que é a segunda cidade da região metropolitana de São Paulo, a geração de viagens entre São Paulo e Guarulhos é enorme, e não existe nenhum sistema de mobilidade com alta capacidade, para poder propiciar esse deslocamento. E o trem-bala não resolve esse problema, absolutamente.

BO – Nem alivia um pouco?

RR – Nada. Ele alivia o problema de quem tem que tomar um avião entre Rio e São Paulo, o que é uma parcela ínfima da população. Não alivia nem os trabalhadores dos aeroportos, porque o valor dele é tão alto, que não atende nem a demanda dos funcionários do aeroporto, nem dos pilotos, nem das aeromoças. Não tem sentido esse projeto, e acho que é um erro, do ponto de vista do transporte metropolitano.

BO – Mas ele não seria um agente facilitador para interligar cidades estratégicas, do ponto de vista econômico e tecnológico?

RR – Mas para isso basta o bom e velho trem. Não precisa ser bala. Ele pode parar nas sub-áreas e cidades vizinhas, como ocorre na Europa. Internamente, dentro da metrópole, a tecnologia do trem-bala não tem impacto, pois se trata de outra tecnologia, não adequada para os sistemas metropolitanos.

BO – Um dos argumentos favoráveis, inclusive defendido pela ANTT, e previsto no edital, é de que haja a transferência tecnológica do consórcio vencedor do leilão. Esse conhecimento será passado para a estatal que será criada para gerenciar o TAV, e isso faria com que o Brasil pudesse, no futuro, dominar a tecnologia.

RR – Não acho que nosso problema seja de tecnologia. Nosso problema de matriz de mobilidade não é tecnológico, e o pior é que também não se trata de um problema financeiro. É um problema de opção política e de opção do modelo rodoviarista e do conjunto de interesses que envolvem esse modelo.

BO – E por que, apesar de muito criticado, esse modelo é adotado?

RR – Você está tocando numa questão muito séria que diz respeito a como se dá o processo decisório no Brasil. Claramente esse processo tem pouco a ver com o planejamento, que leva em consideração vários aspectos, inclusive uso do solo, mobilidade intra-metropolitana – integrando também a  perspectiva inter-metropolitana. Então, o processo decisório, claramente não passa por ai. Por onde eles passam? É uma bela pergunta. Quem constitui essas arenas decisórias, e por que elas não se relacionam com os processos de planejamento, é uma questão super relevante.

BO – No caso dos estudos geológicos, apenas 4,4% foram feitos. O que ainda deve ser levado em conta nessas análises? E o que a senhora pensa sobre a consolidação, em alguns anos, das megalópoles?

RR – Do ponto de vista técnico, não sou capaz de dizer.se os estudos feitos são suficientes ou não. Mas falamos aqui de duas coisas diferentes. Uma coisa é melhorar as conexões metropolitanas, e, para isso, um sistema de transporte coletivo integrado e que seja capaz de dar conta da demanda; (nesse sentido, o sistema de trilhos é o que mais dá conta da demanda). Do ponto de vista da interligação de cidades, a gente já tem configurado vários estudos que mostram o processo do que chamamos decommuting, ou mobilidade pendular, que é o fato de que já existem viagens, cotidianas, por exemplo, entre as metrópoles de São Paulo, Campinas e da Baixada Santista. As pessoas trabalham em uma cidade, mas moram em outra. Você vê que há um fluxo cotidiano de ligação entre elas, de tal maneira que você já tem uma relação funcional entre essas cidades. Isso também é verdade em relação ao Vale do Paraíba, até a altura de São José dos Campos, Taubaté. E hoje essa conexão é feita prioritariamente por automóveis e [ônibus e vans] fretados. O próprio Censo já  contabiliza isso: o que se chama de mobilidade pendular, que é isso, de você morar num lugar e ir trabalhar em outro.

BO – Mas isso seria um problema só de transportes?

RR – Isso já existe, e o trem-bala não resolveria. Ninguém vai pegar o trem-bala e gastar uma grana para ir todo dia trabalhar. Então, para isso, precisa-se apenas do trem, o trem comum. Porque aí, quando você desce do trem, você já está num lugar que vai te conectar com as outras áreas da metrópole.  Nós, que não temos nenhum tipo de ligação e que não agüentamos mais ficar no congestionamento, seja num carro, seja num ônibus, por exemplo, na  ligação com Guarulhos e com Cumbica de repente tínhamos três projetos sobre a mesa; um do trem-bala, outro do expresso-aeroporto, e um de um trenzinho, da CPTM  que não chegava em Cumbica, mas só num conjunto habitacional a 3Km de Cumbica. Então esse que era o barato e bom não chegava a Cumbica. O expresso-aeroporto, que era o caro, chegaria a Cumbica, para os passageiros de avião , e o trem-bala também passaria por lá. O correto seria se pensar um trem, que servisse inclusive a própria cidade de Guarulhos, que fosse parador também, e que tivesse tambéml na mesma linha um trem expresso, como é New York, Amsterdã, onde você pode escolher por um trem mais caro, não parador, que é mais rápido e que liga o aeroporto direto ao centro, ou por um trem parador, que é mais barato e vai parando em todas as estações.

BO – A senhora concorda que na Europa isso foi possível porque o transporte intra-municipal já foi bem desenvolvido, e aí o trem-bala seria um estágio mais avançado do processo? Aqui no Brasil estaríamos pulando etapas?

RR – Não acho que seja assim, uma coisa que vem primeiro e outra que vem depois. Acho que aqui se trata mais mesmo de uma coisa desarticulada, completamente não planejada. A lógica não é a de que trem-bala vem depois de “trem-não-bala”, que por sua vez vem depois de outro. Não é assim, há pulos sim. O problema não é esse, o problema é que o trem-bala não tem o menor sentido, pois é uma alternativa apenas à viagem de avião. E eu pergunto, qual o significado da viagem de avião no conjunto dos deslocamentos metropolitanos, intra-metropolitanos e inter-metropolitanos? O benefício é muito restrito, para um custo muito alto.

BO – Como a senhora avalia o momento atual da mobilidade, principalmente na capital?

RR – Hoje, neste momento, os investimentos em transporte coletivo de massa tem avançado. Estamos numa situação melhor do que há 5 anos, mas infinitamente abaixo do que qualquer patamar admissível para a quantidade de recursos financeiros e a demanda que tem na cidade de São Paulo. Ainda não se fez a opção fundamental, que é a opção pelo transporte coletivo de massa integrado, intermodal, em que se complementam corredores de ônibus com transporte local nos bairros, com transporte não motorizado, tipo ciclovia, com transporte de mais capacidade. Ainda estamos na pré-história, com coisas muito básicas, como sistemas de corredores de ônibus integrados aos sistemas de trilhos.

Fonte: brasilianas.org

Olimpíadas truculentas

O plano olímpico da cidade do Rio de Janeiro tem revelado, na última semana, uma forte ambigüidade na qualidade de grande projeto de desenvolvimento urbano. No mesmo ritmo em que são feitos os investimentos públicos em infra-estrutura de transportes, e nas instalações esportivas, têm ocorrido vários episódios lamentáveis de violações de direitos básicos e de desrespeito à condição humana.

Horror e tensão resumem o que inúmeras famílias têm passado na zona oeste do Rio desde o último dia 15. Denúncias recebidas de moradores, observadores e da Defensoria Pública do Rio de Janeiro relatam o abuso de poder e o verdadeiro estado de exceção que se estabeleceu às margens da Av. das Américas, que corta as comunidades Vila Recreio II, Vila Harmonia e Restinga no Recreio dos Bandeirantes.

Sem qualquer negociação ou abertura ao diálogo, equipes da subprefeitura da Barra da Tijuca incluindo 40 homens da Guarda Municipal começaram uma operação de remoções sumárias e demolições de lares e pontos comerciais na área para a construção do Transoeste: um corredor de ônibus padrão BRT que fará a ligação da Zona Sul à Barra, região que concentrará a maioria das instalações e modalidades olímpicas em 2016.

Segundo denúncias, retro escavadeiras da empreiteira que constrói o corredor estariam derrubando casas com mobílias e pertences dentro. Durante o dia 15, alguns moradores alegam que tiveram suas casas derrubadas enquanto estavam fora trabalhando e outros que receberam um prazo até meia noite daquele dia para se retirarem e darem espaço às máquinas.

Uma equipe do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro conseguiu, em caráter emergencial, uma liminar que suspendia as remoções forçadas, pois os oficiais da subprefeitura agiam sem ordem judicial de despejo ou intimação. Entretanto o pesadelo para os moradores dessas três comunidades da zona oeste carioca não terminou, já que a liminar da justiça não era válida a todos os imóveis.

Nem as casas de santo – terrenos sagrados à tradição Candomblé, há décadas instalados ali – estão seguras das máquinas. Os moradores e representantes religiosos já realizaram duas mobilizações de repúdio a ação da prefeitura do Rio pelo modo como vem conduzindo as obras das Olimpíadas em detrimento do direito e da dignidade dos que vivem no caminho dos projetos.

Sem muito efeito, na madrugada do dia 17 para o dia 18 policiais arrombaram casas expulsando as famílias e ameaçando todos de prisão. Muitos descrevem as cenas como a de uma batalha: roupas, objetos pessoais, malas, tudo jogado no chão na beira da via por onde trafegam continuamente caminhões, automóveis e agora pessoas sem um lugar para onde ir ou voltar.

Não longe do Recreio dos Bandeirantes, o projeto olímpico também é conduzido, mas em tom menos hostil. No início da mesma semana, a prefeitura do Rio assinou o contrato de construção das mais de 2,4 mil unidades habitacionais de alto padrão, que comporão a Vila Olímpica na Barra da Tijuca e depois serão comercializadas por não menos que R$400 mil. O valor total estipulado para o projeto da vila é de quase R$1 bilhão e deve receber financiamento da Caixa Econômica Federal.

O vídeo a seguir é o trecho de uma gravação feita em uma das manhãs, em que máquinas avançavam sobre casas na comunidade da Restinga.

Descobriram a fórmula mágica contra a violência urbana no Rio de Janeiro?

A BBC Mundo publicou no dia 5 de dezembro uma interessante reportagem sobre a violência no Rio de Janeiro e as ações do Estado para contê-la.  Leiam abaixo (em espanhol):

Brasil: ¿descubrieron la fórmula mágica contra la violencia urbana?

Abraham Zamorano

BBC Mundo

Armados pero descalzos, desnudos si no fuera por una bermuda de playa, en plena favela decenas de jóvenes huyen de los disparos de la tropa de élite de la policía de Río de Janeiro. Brasil no habla de otra cosa: la violenta toma de su particular Franja de Gaza.

En la operación en el Complexo do Alemao, la semana pasada murieron 37 presuntos criminales. La entrada del Batallón de Operaciones Policiales Especiales (BOPE) parece haber logrado expulsar a quienes a punta de terror eran los dueños y señores de ese conglomerado de favelas.

La población aplaude con entusiasmo lo que la prensa también casi unánimemente celebra como gran éxito de la política de pacificación de las autoridades cariocas.

La invasión del cerro del Alemán, motivada por una ola de violencia (100 vehículos incendiados), no es la primera ni será la última que se realizará en el Río de Janeiro del gobernador Sergio Cabral. Desde 2008, 13 favelas han sido tomadas por la policía.

¿En qué consiste la operación? En la expulsión por la fuerza de las bandas criminales que se habían adueñado de las barriadas marginales. Una vez se consigue esto, entran en escena agentes de policía comunitaria: la Unidad de Policía Pacificadora (UPP).

Ahora el gobierno ha confirmado que también lo harán los militares, que ayudaron a la policía en el asalto. Las Fuerzas Armadas se encargarán de labores de “mantenimiento de la paz” en las favelas: así evitarán el regreso de los narcos.

Con tal estrategia, los brasileños parecen haber encontrado una especie de fórmula mágica para hacer avanzar el estado de derecho contra la delincuencia territorial que impera en las barriadas más pobres.

Y, dado que el problema de la violencia urbana no es exclusivo de la ciudad que albergará la final del Mundial 2014 y los Juegos Olímpicos de 2016, ¿será ésta estrategia un ejemplo a seguir?

¿Pacifica la pacificación?

La brasileña Raquel Rolnik, relatora especial de Naciones Unidas para el Derecho a la Vivienda Adecuada, le dijo a BBC Mundo que para acabar con la violencia y la delincuencia no basta la militarización.

“La UPP es absolutamente insuficiente (…). Las cosas van a cambiar solo si la favela deja de ser un territorio puramente militarizado, y se convierte en un lugar donde el ciudadano disfruta plenamente de sus derechos”, apunta Rolnik.

“Hasta hoy, los servicios públicos no entraban en la favela. La recolección de basura tiene que llegar. No hay salud, debe haber una mejora radical de la educación y de la red de asistencia social”.

Las UPP fueron creadas en 2008, después de un viaje del gobernador de Río de Janeiro a Colombia, donde visitó Bogotá y sobre todo Medellín. Cabral volvió inspirado por el modelo que combinaba una fuerte presencia policial con obra de infraestructura y reforma urbana de impacto.

Según le explicó a BBC Mundo Rafael Rincón, antiguo personero de Medellín –algo así como un defensor local del pueblo–, sin las políticas públicas adecuadas, la experiencia en esa ciudad demuestra que “a mediano y largo plazo los actores de la violencia van a regresar y a cohabitar con la fuerza pública”.

El especialista colombiano considera que el elemento territorial es clave: “los delincuentes aprovecharán cualquier fisura para volver”.

Además, la experiencia colombiana muestra que es de esperar dinámicas de corrupción y abusos entre agentes, señala Rincón.

“La fuerza pública pasará de la connivencia a la complicidad hasta ser partícipes de las actividades económicas ilegales”.

De momento, en Río algunos ciudadanos ya han denunciado abusos, aunque no dejan de ser casos aislados en medio de un clima innegablemente positivo ante la presencia de los militares y policías.

Con todo, las UPP son una fuerte apuesta política de las autoridades de Río de Janeiro que cuenta con una enorme popularidad entre la población. “Mientras no haya paz no se podrá reconquistar el estado democrático”, defiende el gobernador del Estado de Río de Janeiro.

Pero…

A pesar de que pocos niegan que la policía comunitaria en Río trae tranquilidad, hay quienes no dejan de apuntar elementos preocupantes.

Por un lado, el precio de esa calma es vivir casi en un estado de excepción permanente: hay que pedir permiso a la policía para cualquier reunión.

Además, como denuncia el diputado Marcelo Freixo, una de las voces más autorizadas en la problemática de la violencia en Río, la UPP no afecta a los grandes capos de la droga, ni a los traficantes de armas. Más bien a los cuadros bajos, esos casi desarrapados que se veían huyendo en los reportes de televisión.

Otra línea de crítica cuestiona si la UPP es una política de seguridad o más bien un proyecto de ciudad que responde a los intereses de los inversores inmobiliarios, la industria hotelera y a la organización del Mundial 2014 y los Juegos 2016.

El mero vistazo al mapa de las UPP muestra que, hasta ahora, cubren casi exclusivamente la zona portuaria, el área del estadio de Maracaná y la rica zona sur (Copacabana e Ipanema).

Y este mapa de ruta, en su estadio inicial, como mínimo parece ignorar a las milicias, una suerte de parapolicías devenidos en organizaciones de tinte mafioso.

Experiencia pasada

A los habitantes de Medellín, en Colombia, estas preocupaciones les pueden resultar familiares. El modelo de las operaciones que se llevaron a cabo en su ciudad en el 2002 y que inspiraron al gobernador de Río generaron interrogantes similares.

Según Rincón, la llegada del Estado, aunque violenta, fue recibida por la población como “una ganancia”.

“La gente lo acepta porque se quita de encima el calvario de los abusos”, comenta el colombiano.

“El precio fue la violación de los derechos humanos y los desplazamientos forzados”.

“No tendría que pagarse con vidas de unos ciudadanos la seguridad de los otros”, reflexionaba el experto en conversación con BBC Mundo.

Entre tanto, en Río de Janeiro, mientras el grupo de favelas que rodea el cerro del Alemán amanecían tomadas por los soldados, en el “Morro dos Macacos” se inauguraba la décima tercera UPP, una fuerza descrita como amigable, activa y participativa con la comunidad de vecinos, cuyos agentes recién salidos de la academia estarán en contacto cercano con los vecinos del barrio.

Fuente: BBC Mundo

Será que a ação do Estado no Rio abrirá espaço para transformações mais profundas nas favelas?

A recente operação das forças de segurança no Rio acabou unindo instituições para tentar livrar a área do Complexo do Alemão do crime organizado. Será que isso abre espaço para o Estado chegar lá de outras maneiras, transformando um espaço tão degradado em um lugar com mais ordem urbanística?

Primeiro é muito importante entender que é absolutamente fundamental livrar as favelas e todos os assentamentos da cidade do controle do tráfico de drogas e das milícias. A ocupação a que estamos assistindo no Complexo do Alemão pretende tirar o comando e o controle desse território por parte do tráfico, mas precisa ser estendida para as áreas que ainda estão sob controle das milícias, que são muitas.

Mas é importante também entender que não foi porque o tráfico controlava a área que o Estado deixou de entrar lá antes. O Estado não entrou lá antes porque, historicamente, a atitude do poder público com relação a esses e outros assentamentos precários e informais, tanto no Rio como em outros lugares do Brasil, sempre foi muito ambígua. E o que significa essa ambiguidade?

Significa que, de um lado, o Estado tolerou e, muitas vezes, até incentivou a ocupação desses locais, sem afirmar que isso era permitido e sem esclarecer as regras de organização desses lugares e, ao mesmo tempo, sem oferecer nenhuma alternativa de moradia à população.

Essa situação ambígua permite até hoje, por exemplo, que o Estado decida remover comunidades ou introduzir elementos de urbanização de acordo com a conveniência do momento, sem, no entanto, jamais, eliminar essa fronteira.

E quem criou essa fronteira não foi o tráfico. A partir de certo momento, no caso dessa comunidade específica, o Alemão, o tráfico passou a controlar uma área onde essa fronteira já estava criada. Portanto, a história a que estamos assistindo não termina aqui, ela está apenas começando.

E a grande dúvida é se, a partir dessa ação, que é muito simbólica – pois é importante que o Estado afirme que não vai tolerar a existência de territórios controlados pelo tráfico – o Estado será capaz de entrar ali com serviços públicos, com a extensão da cidade, eliminando a ambigüidade e, principalmente, construindo uma regra da ordem. Mas como será se forem utilizadas ali as mesmas regras que servem para a cidade como um todo? Pois tudo aquilo continua ainda irregular e ilegal e, portanto, ambíguo.

O grande esforço agora, portanto, é tentar construir uma ordem, mas respeitando o que já está ali, porque não é apenas o tráfico de drogas que faz parte do tecido sociocultural da favela, tem muita gente, muita história, uma rede social construída durante décadas, que vai ser mobilizada. E a forma de organização da comunidade deve ser mobilizada para definir quais são as regras que devem ser estabelecidas ali e como que essas regras vão ser implementadas. E isso se refere a todo um conjunto de serviços. E é isso que ainda não estamos vendo acontecer no Rio.

É verdade, sim, que estamos vendo ações que vão além da ocupação militar. O Rio de Janeiro está, de fato, investindo em urbanização, através do PAC das Favelas e do programa Morar Carioca, construindo equipamentos e buscando melhorar a qualidade do acesso às comunidades. E isso de forma mais intensa e concentrada do que já se fez antes. Mas qual é o movimento para eliminar a diferença entre a cidade e o assentamento, para instituir ali uma legalidade e uma ordem? E como isso vai incluir ou excluir os moradores que ali estão? Essa ainda é uma grande questão.

Vale ressaltar que todos os governos, sem exceção, trataram essa questão de forma ambígua, inclusive os que investiram em urbanização. Porque se trata de manter uma relação permanente com o local e de dizer se ele está ou não incluído na cidade. E agora mesmo estamos assistindo a essa ambigüidade na cidade do Rio de Janeiro.  Ao mesmo tempo em que o governo do Rio, alinhado com os governos federal e municipal, está anunciando uma urbanização e o desejo de uma integração definitiva desses bairros na cidade, está também ameaçando de remoção muitas comunidades e muitos assentamentos.

O fato é que hoje existe um milhão de moradores em assentamentos considerados precários no Rio de Janeiro. Mais da metade deles, inclusive, não está na zona sul, que é o palco preferencial de operações das UPP’s (unidades de polícia pacificadora). Mais de quinhentos mil desse um milhão estão na zona oeste, que ainda sofre com tiroteios, balas perdidas, assassinatos e ameaças de remoção.

Chamo a atenção, pore exemplo, ao fato de que está acontecendo de novo uma expansão na zona oeste do Rio de Janeiro que não está sendo discutida nesse momento e que não é palco das operações, ou seja, não está no centro da agenda. Parte dessa expansão está se dando de forma bastante precária. E um dos grandes desafios que estão colocados para a política habitacional do Rio de Janeiro e do Brasil hoje é evitar a formação de novos assentamentos informais e precários.

Uma política habitacional e urbanística mais integral para o Rio precisa, portanto, consolidar, sim, os assentamentos que já existem, acabando com a ambiguidade, fazendo com que eles realmente façam parte da cidade, e, ao mesmo tempo, protegendo esses territórios pra que as pessoas que moram lá possam continuar morando e não sejam expulsas por um processo de valorização imobilizaria, sem alternativa de moradia e, portanto, prontas a produzir novas favelas.

Claro que um processo de urbanização e integração acaba precisando remover algumas famílias, mas dependendo da forma como é feito, é possível respeitar o direito dessas pessoas de permanecerem no local.

Ocupação militar dos morros do Rio de Janeiro – mais desafios do que vitórias!

As cenas cariocas a que estamos assistindo desde a semana passada,  como se fossem imagens de  uma guerra do bem contra o mal nas ruas e favelas do Rio de Janeiro, são bem mais complexas do que as cenas binárias do bandido preso e do território ocupado podem levar a crer.

Leiam abaixo o artigo de Marcelo Freixo, deputado estadual pelo PSOL do RJ, na seção Tendência/Debates da Folha de São Paulo de ontem.

Não haverá vencedores

MARCELO FREIXO

Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública do Rio terá de passar pela garantia dos direitos dos cidadãos da favela

Dezenas de jovens pobres, negros, armados de fuzis, marcham em fuga, pelo meio do mato. Não se trata de uma marcha revolucionária, como a cena poderia sugerir em outro tempo e lugar. Eles estão com armas nas mãos e as cabeças vazias. Não defendem ideologia. Não disputam o Estado. Não há sequer expectativa de vida.

Só conhecem a barbárie. A maioria não concluiu o ensino fundamental e sabe que vai morrer ou ser presa. As imagens aéreas na TV, em tempo real, são terríveis: exibem pessoas que tanto podem matar como se tornar cadáveres a qualquer hora. A cena ocorre após a chegada das forças policiais do Estado à Vila Cruzeiro e ao Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

O ideal seria uma rendição, mas isso é difícil de acontecer. O risco de um banho de sangue, sim, é real, porque prevalece na segurança pública a lógica da guerra. O Estado cumpre, assim, o seu papel tradicional. Mas, ao final, não costuma haver vencedores.

Esse modelo de enfrentamento não parece eficaz. Prova disso é que, não faz tanto tempo assim, nesta mesma gestão do governo estadual, em 2007, no próprio Complexo do Alemão, a polícia entrou e matou 19. E eis que, agora, a polícia vê a necessidade de entrar na mesma favela de novo.

Tem sido assim no Brasil há tempos. Essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz. Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática.

Essa crise se explica, em parte, por uma concepção do papel da polícia que envolve o confronto armado com os bandos do varejo das drogas. Isso nunca vai acabar com o tráfico. Este existe em todo lugar, no mundo inteiro. E quem leva drogas e armas às favelas?

É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e que mais morre no mundo não resolve.

Falta vontade política para valorizar e preparar os policiais para enfrentar o crime onde o crime se organiza -onde há poder e dinheiro. E, na origem da crise, há ainda a desigualdade. É a miséria que se apresenta como pano de fundo no zoom das câmeras de TV.

Mas são os homens armados em fuga e o aparato bélico do Estado os protagonistas do impressionante espetáculo, em narrativa estruturada pelo viés maniqueísta da eterna “guerra” entre o bem e o mal.

Como o “inimigo” mora na favela, são seus moradores que sofrem os efeitos colaterais da “guerra”, enquanto a crise parece não afetar tanto assim a vida na zona sul, onde a ação da polícia se traduziu no aumento do policiamento preventivo. A violência é desigual.

É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.

O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos direitos básicos dos cidadãos da favela.

Da população das favelas, 99% são pessoas honestas que saem todo dia para trabalhar na fábrica, na rua, na nossa casa, para produzir trabalho, arte e vida. E essa gente -com as suas comunidades tornadas em praças de “guerra”- não consegue exercer sequer o direito de dormir em paz.

Quem dera houvesse, como nas favelas, só 1% de criminosos nos parlamentos e no Judiciário…

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*Em tempo: Freixo inspirou o personagem que denuncia as milícias e provoca a CPI no filme Tropa de Elite 2.

Em Niterói (RJ), desabrigados das chuvas encontram-se em situação extremamente precária

Ontem visitei em Niterói dois abrigos para onde foram encaminhadas vítimas das chuvas que assolaram o Rio de Janeiro em abril. São quase mil pessoas que ainda estão abrigadas em dois quartéis há seis meses. Entre elas há mais de trezentas crianças.

Segundo os desabrigados, inicialmente eles foram levados para escolas públicas e, quando as aulas retornaram, foram transferidos para os quartéis. Naquele momento, foi montada uma estrutura de apoio para oferecer serviços como limpeza, segurança, alimentação, além de trabalho de apoio social e educacional com as crianças.

Passados tantos meses, além de não ter apresentado ainda uma alternativa definitiva de moradia pra essas famílias, a prefeitura está retirando todos os serviços que estavam sendo oferecidos. Em um dos quartéis, a situação é de total abandono.

Segundo os moradores, a prefeitura tem pressionado pra que eles deixem os abrigos e usem o auxílio moradia de R$ 400 mensais que está disponível. No entanto, as famílias que estão lá não conseguem alugar uma casa, seja por conta do valor do auxílio, seja pela exigência de fiador, ou até mesmo porque muitas vezes os proprietários não aceitam alugar imóveis para famílias com mais de cinco filhos. Ou seja, sem um efetivo apoio da prefeitura, o programa de aluguel social é inviável. Além disso, as pessoas reclamam que às vezes o auxílio não é disponibilizado.

Impressiona também a absoluta falta de informação para essas pessoas. Ninguém sabe se vai receber uma nova casa ou não, se será gratuita ou não. E o mais chocante ainda é constatar que um dos quartéis já está em posse da prefeitura e trata-se de uma área enorme onde poderia ser produzida uma grande quantidade de moradias.

No fim das contas, passadas as chuvas e desligadas as câmeras da televisão, as verdadeiras vítimas, as pessoas mais vulneráveis, que perderam suas casas e tudo o que tinham, estão simplesmente esquecidas.