A gestão e o planejamento do solo parece que não fazem parte da política urbana no Brasil

Ontem à tarde participei do Jornal da Globo News, novamente falando sobre a questão das chuvas. O vídeo está disponível aqui.

A apresentadora Leilane Neubarth começou a entrevista me perguntando o que pode ser feito para mudar essa situação. Segue abaixo a transcrição do trecho inicial:

Essa tragédia tem a ver com o fato de que a ocupação do território se dá de forma completamente negligente. No fundo nós estamos construindo cidades sem nenhuma consideração em relação à vulnerabilidade dos espaços. E quando se fala nisso, imediatamente, as pessoas pensam: “mas por que é que esse povo foi morar em área de risco?”.

Nós precisamos entender que não foi dada nenhuma oportunidade para que os moradores urbanos brasileiros pudessem se instalar num local com qualidade, urbanidade e segurança. Na verdade, a maior parte das nossas cidades foi autoproduzida por seus moradores nos piores lugares, que são os lugares mais baratos, já que o salário dos trabalhadores brasileiros jamais foi suficiente pra cobrir o custo da moradia numa área adequada.

Mas essa tragédia na região serrana do Rio de Janeiro está mostrando que não são só os bairros populares irregulares e autoconstruídos que estão sujeitos a esse tipo de problema. Nós vimos condomínios de luxo desabando, instalados em áreas inadequadas.

E isso leva a uma outra questão, que é a gestão do solo urbano. E esse é um problema ainda não tocado. Fala-se em política de habitação, em construção de casas, em saneamento, em obra disso e daquilo, em dinheiro para isso e aquilo, mas a gestão e o planejamento do solo é um assunto que parece que não faz parte da agenda de política urbana no Brasil.

A gestão é precária e os efeitos disso é o que nós estamos vendo agora, e que se repete todos os anos e vai continuar se repetindo se esse modelo e essa lógica não for superada.

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8 comentários sobre “A gestão e o planejamento do solo parece que não fazem parte da política urbana no Brasil

  1. Em Niterói acontece algo no mínimo curioso… Enquanto a Prefeitura faz desapropriações em áreas de risco, totalmente comprometidas e contra indicadas pelos mais diversos laudos técnicos, e/ou em evidentes áreas ambientais, inclusive planejando remover uma população de posseiros que vão muito bem obrigada em suas moradias sólidas e bem construídas e leva-los para apartamentos de 45m2.. Essa mesma Prefeitura quer ‘revitalizar’ o centro da cidade, muito degradado, querendo levar para lá grandes prédios comerciais ou atrair classes mais abastadas…
    Diz assim parte da reportagem de 9/01/2011:
    (..) “”O Centro de Niterói tem um grande potencial, pois é um local plano, com toda a infraestrutura necessária para receber os moradores e conta com uma bela vista da cidade do Rio. Há a possibilidade de construção tanto de empreendimentos residenciais, voltados para as classes média e alta, quanto de prédios comerciais”, avalia.

    Prefeitura de Niterói começa a revitalizar o Centro

    De acordo com o diretor da Ademi-Niterói, a Prefeitura está começando a implementar medidas de revitalização na área, mas é necessário atrair moradores para a região e, consequentemente, mais investimentos. Segundo ele, é necessária uma revisão na legislação construtiva do Centro.” (..)
    Pergunta: por que não alterar a legislação, caso necessário, e construir lá o Programa Minha Casa Minha Vida??? para receber os desabrigados e o dito deficit habitacional niteroiense?? As características são excelentes para a população que mais precisa de atenção há pelo menos 9 meses!!…
    Para que atrair novos moradores para uma área que já foi também residencial, de classe mais baixa, e revitalizar para esse mesmo segmento? Basta aproveita a infraestrutura, a localização, tudo que eles se esforçarão usando para atrair NOVO público!!!… Não é preciso. Basta juntar o bom senso com a vontade de comer!
    A única resposta que tenho é: pra ganhar dinheiro! Muito dinheiro!! Não culpo empresários da construção civil em querer ganhar muito dinheiro…pelo menos seu objetivo é claro, ainda que questionável… Mas… mais uma pergunta: a Prefeitura de Niterói deve investir na sua população carente por movimento, no mínimo há 9 meses, ou apoiar o empresariado da construção civil?!

    veja a íntegra em http://jornal.ofluminense.com.br/editorias/habitacao/centro-de-niteroi-se-renova?314400083=1

  2. Nem o aluguel social eles pagam… imaginem se vão dar apartamentinho no centro… aliás nem recebem dentro da prefeitura, é lá fora mesmo: isso eu vi!

  3. Professora,
    A Senhora tem toda razão. Não entendo como a senhora não foi convidada para o se Ministra da Cidade, pois competência não falta e O direito fundamental social mais importante gravado na Constituição Federal é o direito à habitação, este decorre do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito ao mínimo existencial. O direito à habitação inclui o direito de viver em segurança, paz e habitabilidade. A habitação proporcionará melhores condições de higiene e prevenção de doenças e a agregação das famílias. Este anseio de milhões de brasileiros vai trazer a segurança jurídica da propriedade, assistência às necessidades vitais básicas, o combate à erradicação da pobreza e diminuir a criminalidade. As políticas adotadas pelo Sistema Financeiro da Habitação, os programas de habitação do Ministério da Cidade, o Sistema Nacional de Interesse Social e a Caixa Econômica Federal não consideram excluídos, posseiros, arrendatários e pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. Isso dificulta o desenvolvimento social do país, que não ultrapassou os índices sociais dos países subdesenvolvidos. A Caixa Econômica Federal não exerce uma função voltada para o bem estar da população, pois seu objetivo é ganhar e auferir lucros altos em detrimento do desenvolvimento social. Não existe interesse em atingir as metas na busca do bem coletivo, o que importa é os interesses privados das grandes corporações, a especulação imobiliária, que só semeia a desigualdade, a perversidade e a ineficiência do Estado. As políticas de habitação no Brasil não atendem ao princípio máximo da Carta Magna: a dignidade da pessoa humana. A habitação deve ser entendida pelo Estado como o sinônimo de lar e isto implica em criar possibilidades de agregação dos núcleos familiares e sociais.

  4. Palavras do Pelenegra: A questão é ambiental, mas também de cunho social. O uso do solo, a ocupação da terra não seguem o Estatuto das Cidades, que prevê a prevalência do uso social do solo urbano sobre a especulação imobiliária, no entanto, nada é feito neste sentido pelos diversos governos. Fala-se muito de reforma agrária, mas esquece-se da reforma urbana. Devemos observar como a propriedade imobiliária nas cidades está concentrada nas mãos de uns poucos, enriquecendo-os, enquanto, parcelas gigantescas da população vivem nos morros do Rio de Janeiro, como se fossem cabritos, e em São Paulo, há distâncias tão grandes do centro, que gastam horas para chegar ao trabalho, isso sem falar das outras capitais brasileiras e cidades médias.
    Reforma agrária? Muito mais séria é a questão da reforma urbana, e neste sentido, o acesso ao mercado formal de trabalho, e mesmo quando estando neste, o problema dos baixíssimos salários que recebem os trabalhadores, isso inviabiliza a sua entrada no mercado de compra e venda de imóveis e os empurra para a moradia ilegal e para a favelização. Na verdade, a cidade formal serve à especulação financeira. Este território não é para todos, mas sim para uns poucos apaniguados, capacitados financeiramente a terem acesso a todos os benefícios do capitalismo. Em uma fala da Maricato “É a terra urbana e rural. A terra está na essência da alma brasileira. A desigualdade no Brasil passa essencialmente pela questão fundiária. Campo e cidade. Só terminando a história dessa segregação, não tem nenhum mistério. Uma parte da população constrói as casas, constrói fora da lei e não tem lugar nas cidades. Às vezes os planos diretores não disseram onde os jovens iam morar, porque todo plano diretor é seguido de uma lei de zoneamento e a lei de zoneamento é lei para o mercado, e a nossa população tá fora do mercado.” E porque está fora do mercado? Porque os salários pagos por nossa elite são irrisórios, mas garantem aos donos do capital altíssimos lucros. É como nos disse há muito tempo atrás o sociólogo Francisco de Oliveira, para garantir a acumulação de capitais para nossa burguesia mantemos os trabalhadores vivendo em total ilegalidade, levando-os ao acesso irregular de todo e qualquer serviço: de energia elétrica, de telefonia, de internet, e inclusive, de moradia, ou seja, a favelização.
    Para Maricato, mexer nesta estrutura territorial urbana levaria o país a uma revolução. Ela afirma: “Se voce de repente pega todo mundo que ocupou os morros do Rio de Janeiro, que estão desmoronando, ou dos morros de São Paulo, que desmoronaram meses atrás, e proíbe de ocupar, é guerra. Mas aí alguém fala: tem que ter uma política habitacional. Tem. Metade da população do Rio de Janeiro mora em domicílios ilegais. Como é que você faz uma política habitacional para incorporar metade da população sem uma completa revolução com a terra? Sem uma completa mudança na característica do mercado imobiliário? Sem uma completa mudança no direito de propriedade? Sem uma completa mudança da forma de ação do Estado? De que jeito?”

    Para finalizar, são estas as moradias mais fragilizadas nos momentos das grandes tragédias ambientais. mas enquanto tivermos esta estrutura habitacional pouco poderá ser feito.

    Especulação da terra inviabiliza moradia popular
    Participaram: Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Júio Delmanto, Lúia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana Merlino.
    A arquiteta Ermínia Maricato tem uma longa trajetória de reflexão teórica e enfrentamento dos problemas urbanos, como profissional e como militante do PT. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), foi também secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005). Na entrevista a seguir ela faz uma análise profunda e reveladora da situação caótica das cidades brasileiras. Vale a pena ler.
    Hamilton Octávio de Souza – Onde você nasceu? O que estudou? Fale sobre a sua trajetória.
    Ermínia Maricato – Eu nasci no interior do Estado de São Paulo, em uma cidade chamada Santa Ernestina, mas vim muito cedo para São Paulo. Meu pai foi camponês, mas se tornou um pequeno empresário, tinha uma granja de aves. A família é três quartos italiana e um quarto portuguesa. Nós tivemos que vir para São Paulo porque a minha mãe tinha uma doença, hoje eu sei que é psíquica, mas no interior nós não sabíamos bem o que era. Com 5 anos eu vim para São Paulo, estudei em escola pública, que era maravilhosa, morei no Brás e, enfim, sempre gostei muito de estudar, minha mãe não queria que eu estudasse, o meu pai me deu toda a força, acho que não tem tanta novidade aí. Foi um período em que era possível um filho de europeu, mesmo que viesse do campo, era fácil ter ascensão social em São Paulo. Foi o que aconteceu com o meu pai, ele amealhou um certo patrimoniozinho, então não é a mesma condição que o filho de camponês brasileiro, que tem origem muitas vezes na herança escrava, uma condição diferente. Bem, eu fiz química industrial no nível médio, comecei a faculdade de física na USP, depois é que eu passei para arquitetura; mas hoje eu acho que errei, estou muito apaixonada pela terra, por agricultura, por agricultura orgânica. Atualmente pertenço a uma associação que tem uma gleba de Mata Atlântica e nós estamos fazendo um pomar de frutas em extinção da Mata Atlântica, esse é o meu hobby atual. Então eu estou tão encantada, tão impressionada com a força e a exuberância da Mata Atlântica que fico pensando como nós conseguimos destruir essa riqueza.
    Lúcia Rodrigues – Como surgiu essa ideia?
    A associação já existia. Eu cheguei em um amigo e falei: acho que a gente devia comprar um pedaço de mata para deixar lá. E aí ele falou: mas eu já estou em um lugar que tem isso e tal. Aí eu fui, me encantei, entrei na diretoria. Temos uma médica homeopata como presidente, temos várias tribos ali, temos sete nascentes de água, então nós estamos trabalhando no tratamento e distribuição dessa água e agora nós passaremos a discutir o lixo, o esgoto.
    Tatiana Merlino – Onde é?
    Fica a uma hora de São Paulo, em São Lourenço da Serra. Então é a minha paixão atual e eu fiquei muito impressionada de como é que eu não fui para a agricultura, pois tem muito a ver com a questão ambiental. Eu comi uma fruta quando era criança e morava no interior que chamava pindaíva, é uma fruta lindíssima, vermelha, parece uma fruta do conde, ela é de uma árvore muito alta e aí eu falei: Mas cadê a fruta? Não existe mais. Então eu fui pesquisar e consegui, depois de muito procurar, achar uma muda da pindaíva, hoje nós plantamos quatro mudas lá no vale e aí tem outras frutas que eu nem sei o que são, comprei outras mudas, fui atrás, agora eu estou pesquisando isso. Lá tem uns malucos que entram na mata, pegam semente, estão plantando, tem um pessoal interessante. Eu gosto mais de falar disso do que falar de cidade, meu Deus do céu. O que eu quero deixar de fundamental em relação a questão urbana é que as cidades vão piorar.
    Lúcia Rodrigues – Mais ainda?
    Muito, muito.
    Lúcia Rodrigues – Por que, professora?
    Porque não tem nada sendo feito para contrariar o rumo.
    Júlio Delmanto – As cidades que você diz não são só as grandes, né?
    Não só as grandes, porque as cidades que mais crescem atualmente são as médias no Brasil, não são as metrópoles, as metrópoles deram uma recuada, desde a década de 80 as metrópoles estão crescendo menos e as cidades médias estão crescendo mais.
    Tatiana Merlino – Nada está sendo feito nos âmbitos federal, estadual e municipal?
    Não é só uma questão de governo. Primeiro não é uma questão restrita a governo, é uma questão do capitalismo periférico, eu quero fazer questão de falar isso porque muita gente fala: ah! falta vontade política! Eu vou dizer que tem problemas que são estruturais. Um deles: o mercado residencial, no capitalismo periférico, atinge uma pequena parte da população. Até 2004, quando começa uma mudança na política habitacional, da qual eu fiz parte, o mercado brasileiro produzia para 20% da população. Em São Luís (MA) é para 10% da população. Eu fico pensando, pela minha experiência, que São Paulo, por exemplo, chega a 40% da população, mas quando você vai para São Luís ou Belém (PA), o mercado não chega a 10% da população. O mercado, esse sim, segue a lei, que tem um investimento, às vezes tem um financiamento, ou às vezes até mesmo a empresa incorpora o teu financiamento, você faz um projeto que é aprovado na prefeitura de acordo com a legislação de código de obras, legislação de parcelamento do solo, legislação de zoneamento, aí isso é lançado, tem compradores que também podem ter um financiamento. Isso é o que? No Canadá, na Europa, nos EUA isso atinge de 70 a 80% da população. No Canadá isso é muito claro: 30% da população precisa de subsídio para comprar moradia. Aqui no Brasil é o oposto: tem 70% da população. Varia de cidade, de região, se tem uma classe média maior, esse número é maior, se você tem uma classe média menor, como as cidades do Norte e Nordeste, esse número é menor. Então, vivemos em uma sociedade em que uma parte da população se vira, ela não se integra ao mercado e não tem política pública para chegar nela. O financiamento, o investimento público habitacional ampliou muito a partir de 2004, é impressionante o aumento nos últimos anos. Mas na sociedade brasileira a classe média não entra no mercado. O que quer dizer que a classe média não entra no mercado? O policial, o funcionário da USP, o professor secundário mora em favela, isso é uma coisa comum. Então, o Brasil é um país típico de capitalismo periférico, onde um trabalhador regularmente empregado, com estabilidade no emprego, que é o caso de um funcionário público, não tem acesso à moradia no mercado.
    Tatiana Merlino – Esse “se vira” a que você se referiu é equivalente ao déficit habitacional que há no Brasil?
    É mais do que o déficit.
    Tatiana Merlino – Qual é o déficit habitacional hoje do Brasil?
    Olha, o déficit deve estar entre os 7 e 8 milhões, o déficit é sempre uma coisa que deve ser discutida, né? O que você considera déficit? Uma das questões que discutimos no ministério, por exemplo, é que o IBGE considera déficit a convivência de famílias e às vezes é uma decisão sua conviver com mais de uma família. Então, devo ou não considerar isso déficit? O que eu quero dizer é o seguinte: “parte da população brasileira se vira” significa que ela arruma terra, eu tenho muita restrição para usar a palavra invadindo, porque os movimentos sociais não gostam, digamos que ocupando ilegalmente, mas esse ocupando ilegalmente é uma coisa muito vasta. E construindo as próprias casas, como o Chico de Oliveira mostrou em um artigo que ficou clássico, em 1972, que essa autoconstrução, essas ocupações ilegais não eram uma coisa espontânea ou decisão deles, aquilo era o resultado do rebaixamento da força de trabalho, quer dizer uma força de trabalho que não ganha para comprar uma casa, para pagar para alguém construir, mas não dentro da lei, não é dentro do mercado, não consegue comprar a terra. E a terra é um capítulo a parte. Então essa condição de ilegalidade é geral no Brasil. Tem um município perto de Belém, Ananindeua, ou outros municípios na periferia de Recife, Salvador, Fortaleza, onde 90% dos domicílios são ilegais. Quando você chega à região metropolitana de Fortaleza o próprio IBGE dá 33% da chamada sub-habitação. Nós temos alguns estudos, não temos dados fidedignos, mas isso já mostra um pouco o que é a realidade brasileira. Quanto por cento da população brasileira mora em favela? Tem alguns trabalhos que mostram que há uma grande diferença de uma cidade para outra no Brasil, mas que a exceção que seria uma casa ilegal, construída completamente fora da lei em uma terra ocupada de forma completamente irregular, construída aos poucos, sem qualquer conhecimento de engenheiro ou arquiteto etc., é regra, não é mais exceção. Veja bem, o que era para ser exceção virou regra e o que era para ser regra virou exceção.
    Tatiana Merlino – Essa é uma característica do capitalismo periférico?
    É. Você vê isso no mundo inteirinho e varia um pouco em cada país. A Argentina, que já teve uma condição muito melhor socialmente na América Latina, agora está em uma situação dramática. Na Argentina você tinha menos disso, algo em torno de 20 ou 30 anos atrás, ela era mais formal, a cidade na Argentina. Fui convidada para ir a um encontro sobre moradores de rua na Argentina, eles ficaram encantados com a nossa política de morador de rua e aí eu falei: Bom, mas vocês não tinham porque vocês não tinham morador de rua e no Brasil tem há muito tempo. Se você vai para o Chile você tem uma formalidade maior na cidade, tem uma classe média mais forte. Agora o resto, Bolívia, Venezuela, que eu andei pelos morros em volta de Caracas, o próprio México, você tem uma situação que é pior do que algumas metrópoles brasileiras, porque o Brasil tem algumas coisas que são mais ricas e algumas coisas que são mais pobres.
    Hamilton Octávio de Souza – Mas esse processo não está sendo revertido?
    Ao contrário, as cidades do mundo estão se empobrecendo. Se você pegar a África é impressionante o que está acontecendo.
    Hamilton Octávio de Souza – E São Paulo? O que acontece em São Paulo?
    São Paulo está assim: o município concentra, se não me engano, 22% da população que ganha acima de 20 salários mínimos do Brasil. Então você tem uma grande concentração de renda em São Paulo, Ribeirão Preto, Santos, e Brasília – no plano piloto. Então você tem uma condição de expulsão da população desses municípios mais ricos.
    Hamilton Octávio de Souza – A favelização aqui tem sido crescente, não tem? Desde a década de 50?
    Mas muito mais nas periferias. Se eu pegar Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica da Serra, Embu, Embu-Guaçu, você tem uma periferização com o aumento da violência, com uma queda geral de índices e a gente trabalha com média, o que é complicado.
    Lúcia Rodrigues – A concentração do capital é o que está levando ao empobrecimento das cidades, é isso?
    Não é só. Você tem assim uma tradição de desigualdade histórica, você tem nesses países essa questão estrutural da informalidade tanto no trabalho quanto na ocupação do solo, então nós temos ilhas que são cidades do primeiro mundo, isso é tudo inadequado. Por isso que eu acho engraçado dizer que a questão é técnica. Na verdade nós copiamos a lei de zoneamento, toda a legislação do primeiro mundo e aí a gente garante uma ilha onde o resto não cabe. Para inserir a população pobre nessa cidade eu preciso transformar o conjunto, isso foi o que discutimos no Fórum Urbano Mundial e no Fórum Social Urbano.
    Júlio Delmanto – Existe alguma diferença entre esses países que são chamados em desenvolvimento em relação ao resto da periferia?
    Sim. O Brasil é diferente. É uma economia forte. É um player internacional. Ele passou de “nada dava certo” para “país do futuro” ou “do presente”. Mas a desigualdade é uma coisa escandalosa no Brasil. A África do Sul me impactou porque ela saiu do apartheid, em que a segregação, diferentemente da nossa, era jurídica. Então você não podia ir para a cidade se você fosse negro, a menos que você tivesse um passe. Vencer essa segregação quando o Mandela ganhou parecia fácil. Mas existe um problema que está atingindo todo o terceiro mundo que é a questão da terra. A questão da terra não foi superada com a luta contra o apartheid. Aliás, foi uma coisa que me impressionou muito, que eu ouvi de vários líderes: se a terra tivesse entrado em negociação, a paz não acontecia.
    Hamilton Octavio de Souza – O que é a questão da terra? É a terra urbana?
    É a terra urbana e rural. A terra está na essência da alma brasileira. A desigualdade no Brasil passa essencialmente pela questão fundiária. Campo e cidade. Só terminando a história dessa segregação, não tem nenhum mistério. Uma parte da população constrói as casas, constrói fora da lei e não tem lugar nas cidades. Às vezes os planos diretores não disseram onde os jovens iam morar, porque todo plano diretor é seguido de uma lei de zoneamento e a lei de zoneamento é lei para o mercado, e a nossa população tá fora do mercado. Então os urbanistas estão trabalhan do em um espaço de ficção, com realidade de ficção. Aliás, essa ausência dos engenheiros nem se fala. Eu quero falar depois do estrago que a engenharia fez em São Paulo.
    Lúcia Rodrigues – Essas leis que você citou funcionam?
    Nada. O estatuto da cidade é um sucesso no mundo. Do Brasil para o mundo. Eu sou convidada a consultoria internacional o tempo todo por conta do estatuto da cidade. Eu fui a poucos lugares, mas para onde eu fui eu falei que não está sendo aplicado no Brasil. Não está sendo aplicado.
    Tatiana Merlino – Existe uma política habitacional para resolver essa questão do controle do solo?
    Lei nós temos. O estatuto da cidade é ótimo. Constituição Federal nós temos. Só que nós não aplicamos a função social da propriedade. Só terminando aquilo. A nossa lógica é que a mão de obra barata de que o Celso Furtado falava muito, que garante a exportação de riqueza, que garante uma elite conspícua, que é patrimonialista, que se agarrou a este Estado e fez dele o que fez, tem a lógica de que nós temos que ter uma mão de obra absolutamente rebaixada no seu preço para poder segurar essa relação.
    Lúcia Rodrigues – Mas isso não é anticapitalista? Por que se você tem gente ganhando mais, injeta força e fluxo no mercado.
    É engraçado isso. Porque o Ford descobriu que os operários precisavam ganhar melhor para que o capitalismo fosse melhor em 1905, início do século 20. Não é essa a lógica no Brasil. Inclusive uma das coisas que nós nos perguntamos é se o capitalismo brasileiro, principalmente a burguesia nacional, porque as transnacionais não estão nem aí se vão esgotar as reservas, se as cidades vão virar um negócio inviável, pretende se tornar viável. O capitalismo no Brasil não está preocupado em viabilizar. As nossas cidades estão ficando inviáveis. O automóvel está inviabilizando não só São Paulo, mas todas as cidades brasileiras. Brasília está também com um problema seríssimo de trânsito. Então você tem um problema que também é estrutural. A indústria automobilística é responsável por 20% do PIB do mundo, se eu colocar a exploração de petróleo, a distribuição de petróleo, toda a indústria da borracha, das autopeças. E todas as obras nas cidades são uma questão de infraestrutura para o automóvel andar. Quebrar esse modelo é o que seria necessário para incorporar os pobres.
    Lúcia Rodrigues – E como se quebra esse modelo?
    Vamos primeiro falar da terra. Porque esse “como se quebra esse modelo” é uma reflexão muito difícil para eu fazer depois que eu saí do governo federal. A terra no Brasil durante vários séculos, a propriedade da terra, esteve ligada à detenção de poder social, político e econômico. É interessante perceber em uma cidade como São Paulo como é que a área de proteção dos mananciais, que é uma área protegida por lei federal, estadual e municipal e planos de tudo quanto é tipo, está sendo ocupada. O poder de polícia sobre o uso do solo tem cinco organismos: a Sabesp, a Cetesb, Eletropaulo, o poder municipal sobre o parcelamento do solo, e a Polícia Florestal. Todo mundo é responsável pela fiscalização. Então não falta lei, não falta plano. É bem importante deixar isso claro. Estou cansada de ouvir gente dizendo que falta planejamento, falta plano diretor. Não falta nada. E não falta lei no papel. O que falta é que essa população tem que morar em algum lugar. E ela vai morar onde? Então pensa na população que chega na cidade de São Paulo. O centro está se esvaziando. Isso parece incrível, aliás, em todas as cidades brasileiras grandes. Então nós temos em área de proteção dos mananciais, já vi secretário de meio ambiente falar em um milhão e quinhentas mil pessoas. E já ouvi gente da Empresa Metropolitana de Planejamento falar em dois milhões de pessoas. É uma ligeira margem de dúvida. Isso mostra que nós não sabemos quantas pessoas moram na área de proteção dos mananciais.
    Hamilton Octavio de Souza – Qual a consequência disso para o abastecimento de São Paulo?
    Nós estamos buscando água na bacia do rio Piracicaba. Falam em buscar água serra abaixo. Estão falando em buscar água não sei mais onde no vale do Paraíba, e nós temos duas represas em que a água vem por gravidade, mas a água está crescentemente contaminada, e eu estou me referindo à contaminação recém-descoberta de que mesmo depois do tratamento existem hormônios e antidepressivos na água. Mas isso é outra coisa, são pesquisas mais recentes. Eu tenho então uma metrópole na área de proteção dos mananciais. E se os governos decidissem cumprir a lei? Não entra mais ninguém ou tem que sair? O que aconteceria? Os conflitos do MST iam ser refresco. Eu já tive aluno que afirmou que haverá guerra civil. Eu concordo. Se voce de repente pega todo mundo que ocupou os morros do Rio de Janeiro, que estão desmoronando, ou dos morros de São Paulo, que desmoronaram meses atrás, e proíbe de ocupar, é guerra. Mas aí alguém fala: tem que ter uma política habitacional. Tem. Metade da população do Rio de Janeiro mora em domicílios ilegais. Como é que você faz uma política habitacional para incorporar metade da população sem uma completa revolução com a terra? Sem uma
    completa mudança na característica do mercado imobiliário? Sem uma completa mudança no direito de propriedade? Sem uma completa mudança da forma de ação do Estado? De que jeito?
    Tatiana Merlino – Mas como é muito pouco provável que aconteça, para onde a gente vai caminhar?
    Nós estamos caminhando para o caos.
    Tatiana Merlino – O que aconteceu no Rio de Janeiro é a prova disso?
    É. O que aconteceu em São Paulo, em todas as cidades, é a maior prova disso. Se você somar a falta de controle de uso e ocupação do solo, que não existe a consciência de que é necessário controlar, mais a falta de planejamento com a questão da macrodrenagem… E ainda com mais incentivo para a matriz automobilística, nós vamos piorar.
    Lúcia Rodrigues – Mas como romper com esse modelo?
    Eu acho sinceramente que não vai ser simples. A questão da terra sempre foi muito clara no campo, mas ela não foi muito clara na cidade. Por quê? Porque ninguém se dava conta de que a regra era exceção e a exceção era regra.
    Lúcia Rodrigues – Mas qual é o problema da terra?
    Um aluno meu me mostrou a funcionalidade da confusão registrária no Brasil. Ele mostrou que nos parques estaduais paulistas existiam sete andares de registro de propriedade no mesmo pedaço de terra. Por quê? Porque a história do registro de propriedades no Brasil é uma história de fraudes. Eu desagradei muita gente, mas falo isso o tempo todo. A história da propriedade privada no Brasil é uma história de fraudes sistemáticas. Não é que você tenha uma fraude ou outra. É regra de novo. O Ariovaldo Umbelino mostrou em uma de suas palestras (ele é um geógrafo competente, se aposentou da USP) um anúncio de venda de uma propriedade de 40 mil hectares, no qual a grande vantagem que oferecia era uma escritura de 4 mil hectares. Porque a cerca anda. Então ter uma escritura já é uma maravilha. E a cerca anda no Brasil. Então o que me impressionou na tese do Joaquim de Brito, esse meu aluno, é que o governo não tem nenhum interesse em cancelar registros que se revelam falsos.
    Tatiana Merlino – E no caso da Cutrale?
    Esse é outro exemplo que eu adoro dar. Quer dizer, para a mídia brasileira foi muito mais importante a derrubada de meia dúzia de pés de laranja do que o patrimônio público ser apropriado privadamente. Ora, é regra. O Pontal todo. E a polícia e o Judiciário têm a coragem de atacar o MST, que é meia dúzia de gente pobre que quer o mínimo, que é o acesso à terra. Vai fazer a discriminatória das terras públicas que você vai ver quanto esse país vai ganhar de terra!
    Bárbara Mengardo – Existe uma estimativa de quantos hectares de terras griladas são ocupadas por grandes empresas?
    Na verdade os documentos são produzidos. Foi isso que eu verifiquei com a tese do Joaquim de Brito, que, aliás, eu pedi que ele produzisse um texto que fosse mais palatável para a linguagem de um livro e ele morreu na madrugada que ele escreveu o texto. Aprendi muito com ele porque ele tinha documentos de todas as terras e dizia: “Olha, ainda tem registros novos aparecendo”. Ele mostrou que tinha propriedade no litoral que subia a serra. E aí quando eu vejo a mídia atacar o MST eu fico absolutamente impressionada. Em um país onde a história da propriedade é de fraude. Eu resolvi juntar livro sobre isso. Aí eu comecei a ver que nós temos uma produção gigantesca sobre a fraude na propriedade da terra, sobre as disputas de terra, sobre morte.
    Lúcia Rodrigues – Quem está por trás disso? São os cartórios? É o governo?
    Tudo. É a sociedade brasileira. É poder vinculado à propriedade.

    Para quem quiser acesso ao texto de Joaquim de Brito, citado pela Maricato:
    http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16131/tde-30012007…/tese.pdf

  5. O problema do Brasil na área de moradia pode resumir em especulação imobiliária, pois esta especulação é patrocinada pela lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, ingerência governamental e falta de planejamento estratégico. Onde está função social da propriedade, pois existem muitos imóveis vazios e só patrocinando a injustiça social.

  6. Pingback: Enchentes e Passaportes – I | From Lady Rasta

  7. Professora enquanto não combater e punir a lavagem de dinheiro e corrupção neste país, o problema da especulação imobiliária não vai ter fim.Pois, punir o tráfico e fácil quero ver punir os poderosos e o desvio de var públicas. inclusive encontrei neste site sobre lavagem de dinheiro, Mas eles não falam do desmandos na área pública: http://www.fraudes.org/showpage1.asp?pg=182
    “CONSTRUTORAS E IMOBILIÁRIAS

    O setor de construção e imobiliário em geral é um alvo clássico de operações de lavagem de dinheiro. São comuns as notícias de traficantes que aplicam os recursos ilícitos na compra de imóveis ou terrenos e/ou na construção em geral.
    As operações imobiliárias oferecem um meio simples e eficaz para transformar dinheiro de origem ilícita em um outro tipo de “patrimônio” conseguindo ao mesmo tempo disfarçar o verdadeiro dono e a origem dos recursos.
    Comprar um bem por um valor declarado menor (pagando a diferença em dinheiro) e depois vender pelo valor cheio oferece um outro meio de criar uma origem “limpa” para recursos ilícitos.
    Como em todos os setores, as operações de lavagem no setor imobiliário podem ir de simples compras ou vendas, às vezes em nome de laranjas, sem maiores cuidados, até operações altamente estruturadas e complexas envolvendo entidades offshore e várias passagens para atingir resultados mais sólidos e/ou volumosos.
    O cuidado principal neste sentido é não aceitar pagamentos em dinheiro ou operações vindo de pessoas/empresas suspeitas e que não tenham como explicar a origem dos recursos.”
    O Ministério Público tem que intervir nesta área para cobater estas oeprações ilegais e exigir a função social da propriedade de acordo com a LEI N. 11.124 E O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
    Esta lei veio implementar as condições para os municípios ter acesso aos recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. O recebimento destes recursos depende à política de desenvolvimento urbano propalada no plano diretor, sendo municípios em legislação equivalente. Esta Lei está a regulamentar o artigo 6º da carta política e tem como objetivo este sistema delineado pelo art. 2º da Lei n. 11.124:
    I- Viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada, digna e sustentável; II- Implementar políticas e programa de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda; e III – articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor de habitação.
    A estruturação e a atuação do Sistema Nacional de Interesse Social devem observar os seguintes princípios segundo o art. 4º desta Lei: a) compatibilidade e integração das políticas habitacionais federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, bem como das demais políticas setoriais de desenvolvimento urbano, ambientais e de inclusão social; b) moradia digna como direito e vetor de inclusão social; c) democratização, descentralização, controle social e transparências dos procedimentos decisórios; d) função social da propriedade urbana visando a garantir atuação direcionada a coibir a especulação imobiliária e permitir o acesso à terra urbana e ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade.
    As diretrizes são:
    a) Prioridade para planos, programas e projetos habitacionais para a população de menor renda, articulados no âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal;
    b) Utilização prioritária de incentivo ao aproveitamento de áreas dotadas de infra-estrutura não utilizadas ou subutilizadas, inseridas na malha urbana;
    c) Utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse social;
    d) Sustentabilidade econômica, financeira e social dos programas e projetos implementados;
    e) Incentivo à implementação dos diversos institutos jurídicos que regulamentam acesso à moradia;
    f) Incentivo à pesquisa, incorporação de desenvolvimento tecnológico e de formas alternativas de produção habitacional;
    g) Adoção de mecanismos de acompanhamento e avaliação de indicadores de impacto social das políticas, planos e programas; e
    h) Estabelecer mecanismos de quotas para idosos, deficientes e famílias chefiadas por mulheres dentre o grupo identificado com o de menor renda da alínea “a” deste inciso.
    A Lei nº 11.124/2005, em seu art. 11, estabelece uma série de exigências para os entes municipais ter acesso aos recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Estes entes devem submeter-se à política de desenvolvimento expressa no plano diretor e o município em legislação análoga:
    I- aquisição, construção, conclusão, melhoria, reforma, locação social e arrendamento de unidades habitacionais em áreas urbanas e rurais;
    II- produção de lotes urbanizados para fins habitacionais;
    III- urbanização, produção de equipamentos comunitários, regularização fundiária e urbanística de áreas caracterizadas de interesse social;
    IV- implantação de saneamento básico, infra-estrutura e equipamentos urbanos, complementares aos programas habitacionais de interesse social;
    V- aquisição de materiais para construção, ampliação e reforma de moradias;
    VI- recuperação ou produção de imóveis em áreas encortiçados ou deterioradas, centrais ou periféricas, para fins habitacionais de interesse social;
    VII – outros programas e intervenções na forma aprovada pelo Conselho Gestor do FNHIS.

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