Demolir e reconstruir: será essa a solução para a região da Luz?

Na última sexta-feira, a imprensa paulistana divulgou a decisão da prefeitura de reduzir as áreas a serem demolidas na Luz como parte do projeto de renovação urbanística da região. A medida foi anunciada após muita pressão por parte dos comerciantes da rua Santa Ifigênia. Mas essa redução foi ínfima – a proposta inicial estipulava a desapropriação de 66% dos imóveis. Agora são 61%. Ou seja, isso não muda em nada o caráter impositivo do projeto em questão, nem a lógica em que se insere: a de passar uma borracha nos problemas da cidade para eliminá-los de uma só vez.

Este parece ser o princípio do projeto Nova Luz: a partir de uma leitura que identifica a região como “cracolândia”, o projeto pretende apagar, da paisagem e da vida urbana de parte do centro de São Paulo, os usuários de drogas e, junto com eles, toda a população em situação de rua, o comércio, os mais de 12 mil moradores do bairro Santa Ifigênia, sua história e sua memória. A intervenção urbanística que pretende acabar com a “cracolândia”, na verdade, incide sobre um dos centros comerciais mais dinâmicos de toda a cidade e pretende substituir toda a estrutura consolidada por novos empreendimentos.

Remover lojistas e moradores para demolir o bairro, a fim de erguer edifícios mais altos, tem a ver com uma estratégia de renovação urbana baseada em um conceito de parceria público-privada no qual é necessário garantir uma alta rentabilidade para viabilizar o negócio. Sob esta lógica, portanto, o melhor é demolir o máximo possível para construir um modelo totalmente distinto. Isso nada tem a ver com respostas ao problema do crack (que é real). Lançamentos de novos empreendimentos imobiliários seguramente não vão resolver uma questão social e de saúde.

Ninguém tem dúvidas de que o centro precisa de investimentos e de iniciativas que o requalifiquem. Mas qualquer projeto urbanístico que pretenda realizar uma renovação na área tem por obrigação incorporar, em suas diretrizes e em seu programa de ações, a população residente e trabalhadora do local. São essas pessoas, e as relações que elas estabelecem com o espaço, que fazem do bairro Santa Ifigênia um lugar tão vivo e dinâmico na cidade.

O patrimônio edificado do local, o tecido urbano e a morfologia – um dos últimos testemunhos de uma estrutura fundiária paulistana do século XVIII – também merecem ser respeitados. A vocação da área central como espaço para todo tipo de atividade humana e todo tipo de gente permite isso. Quem disse que não é possível reabilitar áreas, respeitando a população residente, moradora e freqüentadora do local, suas residências, estabelecimentos comerciais e demais imóveis? Que história é essa de que o único valor reconhecido na cidade de São Paulo é o do potencial construtivo?

Porto Maravilha: custos públicos e benefícios privados?

A partir de hoje, a gestão dos serviços públicos em parte da região portuária do Rio de Janeiro começará a ser feita pelo Consórcio Porto Novo (formado pelas empresas OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia). Ao longo de 15 anos, o consórcio receberá R$ 7,6 bilhões da prefeitura para o investimentos em obras e para a realização de serviços como coleta de lixo, troca de iluminação e gestão do trânsito na região.

Além disso, como parte da operação urbana Porto Maravilha – como é chamado o projeto de revitalização da zona portuária do Rio –  a prefeitura realizou hoje o leilão dos Cepacs (certificados de potencial adicional construtivo) da área. O Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha, da Caixa Econômica Federal, arrematou todos os títulos por R$ 3,5 bilhões. Cada um dos 6,4 milhões de cepacs foi vendido por R$ 545.

O curioso é que a maior parte dos terrenos que fazem parte da operação urbana Porto Maravilha, que ocupa uma área de 5 milhões de m², são terras públicas, principalmente do governo federal, que foram “vendidas” para a prefeitura do Rio, a partir de avaliações feitas por… ? Pela própria Caixa que, agora, através do Fundo que ela mesma criou, com recursos do FGTS que ela administra, buscará vender os cepacs no mercado imobiliário para construtoras interessadas em construir na região.

Ou seja, estamos diante de uma operação imobiliária executada por empresas privadas, mas financiada, de forma engenhosa, com recursos públicos em terrenos públicos. Continuamos sem saber onde estão os benefícios públicos desta PPP (Parceria-Público-Privada).

Leia mais sobre este assunto na página do jornal O Globo e na Folha Online.

Brasil e Argentina: diferenças e semelhanças para além do futebol

No mês passado, visitei a Argentina como Relatora da ONU para o Direito à Moradia. Certamente, foi uma visita bem diferente das demais que eu já havia feito naquele país como turista ou como professora e urbanista. Com certeza também foi uma experiência muito diferente da que estavam vivenciando inúmeros brasileiros que encontrei pelas ruas de Buenos Aires, obsessivamente ocupados em fazer compras, ouvir tango e beber vinho (não que não sejam coisas ótimas de se fazer por lá).

Como Relatora da ONU, entro por uma espécie de porta dos fundos dos países que visito, que costuma ser o avesso do que mostram os cartões postais e campanhas publicitárias para atrair turistas. Em Buenos Aires, por exemplo, pude conhecer, ainda que rapidamente, um outro lado de Puerto Madero, a mais nova frente de expansão imobiliária da cidade, em pleno centro da cidade.

Puerto Madero é uma antiga área portuária que foi reocupada com escritórios, bares, restaurantes e lofts de luxo. Um turista que vai a um de seus restaurantes não se dá conta da existência, ali bem pertinho, de uma favela (chamada de “villa” pelos argentinos) que existe desde os anos 1980 e que se expandiu com a chegada de operários que construíram os novos empreendimentos da região.

A comunidade em questão chama-se Rodrigo Bueno. As pessoas que lá moram agora lutam para permanecer onde vivem – afinal, são terras públicas – e receber investimentos em infraestrutura, já que ali não há rede de água, nem de esgoto, nem nada que possa ser chamado de urbanidade. Contra sua permanência estão, principalmente, os novos proprietários do terreno vizinho, uma gleba que pertencia ao Clube Boca Juniors (cujo ex-presidente é o atual prefeito de Buenos Aires) e que foi vendida para um dos maiores incorporadores imobiliários da cidade, que ali pretende implantar um condomínio residencial fechado, áreas comerciais e amenidades náuticas. Além disso, há também ambientalistas que consideram o assentamento uma ameaça à reserva ecológica que existe na região.

A operação urbana de Puerto Madero tem semelhanças e diferenças com projetos do mesmo tipo aqui no Brasil. Em São Paulo, na região da Berrini, Marginal Pinheiros e Vila Olímpia, duas grandes operações urbanas – Faria Lima e Águas Espraiadas – promoveram uma grande transformação numa antiga área industrial, onde algumas comunidades, como a do Jardim Edith e a Real Parque, lutaram bravamente para permanecer onde se encontravam.

Tanto em Buenos Aires, quanto em São Paulo, trata-se de transformações urbanísticas implementadas através de parcerias público-privadas, promovidas pelos governos municipais nos anos 1990 e 2000. Nos dois casos, são operações de renovação – com torres de escritórios, restaurantes e empreendimentos de luxo – que geraram processos de altíssima valorização imobiliária. Mas as semelhanças param por aí.

Puerto Madero é uma extensão do próprio centro de Buenos Aires, que nunca foi abandonado por suas elites – como ocorreu em São Paulo – e nunca perdeu sua heterogeneidade de funções: ao mesmo tempo é lugar de moradia e de negócios, de vários grupos sociais. A qualidade urbanística de Buenos Aires sempre foi – e continua sendo – incomparavelmente melhor do que a de São Paulo. Seu centro, incluindo Puerto Madero, é um lugar de pedestres e  as calçadas e espaços públicos são a base de sua estrutura urbana.

Além disso, na operação urbana de Puerto Madero, executada por uma corporação pública, a valorização imobiliária que foi gerada ficou em mãos do poder público, que foi leiloando o solo à medida que a operação avançava. Em São Paulo, toda a valorização foi apropriada pelo setor privado, que especulou com os CEPACS (certificado de potencial adicional de construção) que financiaram a operação.

Por outro lado, nas leis que viabilizaram as operações Faria Lima e Águas Espraiadas, as favelas ali existentes foram declaradas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), estabelecendo um compromisso de urbanizá-las e regularizá-las com os recursos das operações. Em Puerto Madero, a favela Rodrigo Bueno, entre outros assentamentos que já existiam na região, foi literalmente ignorada.

É bem verdade que as promessas de urbanização das favelas da região das operações paulistanas não foram cumpridas e nenhuma foi urbanizada até agora com recursos destas operações. As últimas 250 famílias – de um total de 50 mil que ali residiam – continuam resistindo e ganharam, na Justiça, o direito de morar em novas habitações no local.

Buenos Aires e São Paulo; Puerto Madero e Vila Olimpía; Villa Rodrigo Bueno e Favela do Jardim Edith; Boca Juniors e Corinthians; futebol e negócios milionários: de fato, somos muito diferentes e profundamente parecidos.

Texto originalmente publicado no Yahoo!Colunistas.