A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #40: É preciso suspender despejos e remoções

Hoje (08/06), o Senado iria votar o Projeto de Lei 827/20, que estabelece a suspensão das remoções e desocupações durante a pandemia. Por pressão da bancada ruralista, a votação foi adiada para a próxima semana, com uma audiência pública sobre o tema na sexta (11/06). Em meio à alta dos aluguéis e a queda da renda por conta da crise sanitária e econômica, muitas famílias têm perdido a sua moradia, desemparadas pela falta de políticas públicas — tendo como alternativa morar na rua ou em ocupações. Aprovar o PL 827 é uma medida humanitária, emergencial e de extrema importância. É sobre isso que fala o episódio 40 do “A Cidade é Nossa”, produzido por Raquel Rolnik e Amanda Mazzei, da equipe do LabCidade. Para ouvi-lo na sua plataforma de podcast favorita acesse: spotifyapple podcastsgoogle podcasts e overcast.

A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #26: Dia Mundial do Habitat

Hoje, 5 de outubro, é o Dia Mundial do Habitat. Dia de repensar nossos modelos de cidade, destinados a maximizar rentabilidades e promover o incremento exponencial do consumo e da circulação, destruindo a Terra e os meios de vida. Hoje é dia de lutar por um urbanismo que proteja a vida! É sobre isso que fala o episódio 26 do A Cidade é Nossa, produzido por Raquel Rolnik e Amanda Mazzei, da equipe do LabCidade. Para ouvi-lo na sua plataforma de podcast favorita acesse: spotifyapple podcastsgoogle podcasts e overcast.

A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #24: Casa Verde e Amarela e a financeirização da moradia

Governo Federal lança seu programa habitacional, o Casa Verde e Amarela, rebatizando o que já existe e investindo pesado para financeirizar a moradia, fazendo das dívidas das famílias um produto apetitoso para o mercado. É sobre isso que fala o episódio 24 do A Cidade é Nossa, produzido por Raquel Rolnik e Amanda Mazzei, da equipe do LabCidade. Para ouvi-lo na sua plataforma de podcast favorita acesse: spotifyapple podcastsgoogle podcasts e overcast

Eleições 2018: nossas cidades pedem socorro

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Com estas palavras, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) iniciam o texto de uma Carta Aberta aos Candidatos nas Eleições de 2018 pelo Direito à CidadeResultado do “Seminário Nacional de Política Urbana: por cidades humanas, justas e sustentáveis”, que em julho reuniu arquitetos e urbanistas em São Paulo, o documento é extenso, contendo 53 propostas, estruturadas em três  eixos: um projeto nacional baseado (1) na territorialização das políticas, (2) governança urbana inovadora e (3) democratização da gestão.  

No campo da territorialização, o que temos hoje são iniciativas num formato único, desconectadas entre si, e específicas para a construção de casas, transporte coletivo, e saneamento, por exemplo. No lugar disso, políticas e programas que considerem a diversidade e a especificidade de cada região, a integração em cada território, que ofereçam assistência técnica gratuita para projetos de construção de habitações de interesse social.  

Em relação ao tema da governança, o documento reforça a necessidade da descentralização na definição e na execução das políticas, propõe o fortalecimento do Ministério das Cidades e o restabelecimento do Conselho Nacional das Cidades.  

Em relação ao tema da gestão, o documento assinala que  é preciso avançar no sentido de garantir que os governos locais sejam mais  fortes, autônomos, transparentes e democráticos, ampliando os mecanismos de controle social por parte da sociedade.  

O documento afirma também a necessidade de revisão da Lei de Licitações, especialmente na incorporação por parte desta legislação de poder contratar obras sem que os projetos tenham sido previamente detalhados. Desde as obras para preparação das 12 capitais que sediaram a Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016, o Estado recorre ao regime direto de contratação de empreiteiras. Dessa forma, o poder público pode  contratar obras, sem que haja apresentação prévia de um projeto detalhado.

Incluída em nome da “celeridade” nos processos de contratação públicos, tema de fato relevante, a adoção deste mecanismo entrega para as empreiteiras as definições do que se fará nas cidades. A Carta Aberta aposta na direção contrária: cidades planejadas e projetadas, de forma solidária e inclusiva, como um dos pilares da necessária construção democrática do país.

Confira em detalhes as 53 propostas da Carta Aberta:

1. Projeto nacional baseado na territorialização das políticas públicas

  • Assegurar investimentos massivos em infraestrutura urbana e em serviços públicos e sociais nas periferias;
  • Criar uma política habitacional por meio de programas diversos, inclusive locação social;
  • Fomentar o uso da Lei de Assistência Técnica Pública e Gratuita para o Projeto e Construção de Habitações de Interesse Social;
  • Retomar os programas de urbanização de favelas;
  • Investir em segurança pública associada às políticas de desenvolvimento urbano inclusivo;
  • Investir na ampliação, integração e qualificação da rede de transporte público de massa de forma integrada à produção de moradia social;
  • Criar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano Integrado visando articular os recursos para as regiões metropolitanas;
  • Valorizar os centros históricos, adotando políticas ambientais e culturais que preservem seu patrimônio; estimulando o uso de imóveis e terrenos ociosos; promovendo a mobilidade urbana não-motorizada e a qualificação dos espaços públicos;
  • Democratizar o acesso ao crédito imobiliário para possibilitar a atuação de pequenos empreendedores tecnicamente habilitados;
  • Promover o apoio técnico para o planejamento das cidades médias em processo de crescimento demográfico;
  • Fomentar a produção da agropecuária familiar e a pesca para fortalecer as pequenas cidades;
  • Enfatizar a dimensão ambiental no planejamento urbano e territorial a partir dos ecossistemas nacionais e suas especificidades;
  • Investir na ampliação e qualificação da rede ferroviária e hidroviária visando maior integração do território nacional.

2. Governança urbana inovadora

  • Garantir a autonomia técnica do Ministério das Cidades;
  • Restabelecer o Conselho Nacional das Cidades;
  • Descentralizar a definição e execução das políticas públicas para o desenvolvimento urbano, a partir de uma política nacional que possibilite a incorporação de políticas regionais e locais para garantir a sua efetividade;
  • Revisar a Lei de Licitações com o objetivo de garantir uma maior transparência na contratação de obras públicas;
  • Cumprir as metas previstas da Agenda 2030, especialmente o Objetivo 11 (“tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”).

3. Democratização da gestão dos territórios, em especial

  • Fortalecer o governo local das cidades, que deve prevalecer, sem prejuízo do desenvolvimento regional e nacional;
  • Restabelecer e ampliar os mecanismos de participação popular nas decisões afetas às políticas públicas que tenha ação direta sobre o direito à moradia, ao transporte público de qualidade e à cidade;
  • Disponibilizar as informações de banco de dados georreferenciados e em formato aberto, democratizando o acesso e possibilitando a análise pela sociedade.

Quem se beneficia com o aumento do teto do financiamento do FGTS em SP

por Raquel Rolnik (texto) e Martim Ferraz* (mapas)

Vamos falar mais sobre o tiro de misericórdia da política habitacional? Fizemos, Martim Ferraz e eu, um cruzamento de dados para analisar quais grupos sociais da cidade de São Paulo vão ser mais beneficiados pela recente decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN) de elevar o teto do financiamento imobiliário com recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) de R$ 900 mil para R$ 1,5 milhão, garantindo um juro significativamente mais baixo do que o praticado no mercado.

O trabalho considerou dados da Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio), recortando os bairros da de São Paulo em que há maior concentração de imóveis residenciais que custam R$ 1,5 milhão (mapa 1). Para quem conhece a cidade, destacam-se os bairros de alta renda, como Perdizes, Jardim Paulista, Moema, Itaim Bibi e Morumbi.
A seguir, cruzamos esta informação com a renda média dos moradores dos vários setores censitários de São Paulo, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E a mancha (mapa 2) coincide com a maior parte da área em que residem as famílias que têm renda mensal de mais de oito salários mínimos, menos de 5% da população.
O problema é que o FGTS é um fundo público, portanto de todos os trabalhadores. Portanto, é regressiva a decisão de destinar seus recursos para subsidiar a compra de imóveis para famílias de alta renda, justamente aquelas que não precisam de subsídio nenhum, nem pra morar com dignidade, nem para comprar seus ativos imobiliários.
*Martim Ferraz é aluno de graduação da FAUUSP e pesquisador do LabCidade.

Ocupações crescem também na extrema periferia de São Paulo

A verdadeira explosão no número de ocupações em imóveis vazios na área central, tema que emergiu no debate público a partir do incêndio e desabamento de um edifício ocupado, tem acontecido também nas extremas periferias de São Paulo, sobretudo nas zonas leste, norte e sul da cidade. Os motivos são, primeiro, um aumento vertiginoso nos preços de terrenos desde 2006, impulsionado pelo boom imobiliário e aumento da disponibilidade de crédito na cidade, desacompanhado de qualquer política fundiária e medida de regulação.

Entre 2006 e 2013, embora os salários e rendimentos dos mais pobres tenham crescido na cidade, os preços de imóveis e aluguéis cresceram em um ritmo muito mais intenso. Em seguida, principalmente a partir de 2014/ 2015, um agravamento da crise econômica, com crescimento do desemprego e diminuição da trajetória de melhoria das condições salariais, agravou ainda mais este descompasso.

Resultado: cada vez mais gente não tem a mínima condição de pagar aluguel.

Mas se em São Paulo essa já é uma característica histórica, as políticas públicas de moradia infelizmente contribuem para que o problema não apenas não seja resolvido, ou enfrentado, mas piorado. As estratégias de atendimento às famílias que mais precisam são escassas, e o programa  Minha Casa, Minha Vida, única alternativa presente na cidade,  está completamente interrompido, especialmente na modalidade voltada para as faixas de renda mais baixas.

E o quadro se agrava mais com a operação de remoções conduzida pelos governos municipal e estadual. Sabemos, por exemplo, que as ocupações precaríssimas que estão nos terrenos da franja norte da cidade, sobretudo a região de Taipas, Brasilândia, são em sua maioria constituídas por pessoas que foram removidas dos assentamentos em que viviam para a construção do Rodoanel, e que  não receberam nenhum tipo de oferta de moradia definitiva digna. 

Outras ocupações precaríssimas de terrenos vazios também podem ser observadas nos extremos norte e sul da cidade.

De acordo com o Observatório de Remoções da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), apenas no ano de 2017, 14 mil famílias foram removidas de suas casas, e há pelo menos outras 30 mil ameaçadas de despejo por morar no perímetro de obras públicas. Como resultado, a população mais pobre está ameaçada de viver permanentemente na transitoriedade.

É o caso de algumas famílias que estão na ocupação Douglas Rodrigues, na Vila Maria, famílias que já passaram por oito remoções, e que hoje, estando a ocupação novamente sob ameaça, caso esta se concretizar , sofreriam a nona remoção. É um quadro de vulnerabilidade extrema, porque moradia é também um lugar basicamente a partir do qual as pessoas, sobretudo as mais carentes, estabelecem uma rede de proteção e sobrevivência.

Esse assunto foi tema da minha coluna “Cidade para Todos”, na Rádio USP.  Ouça aqui.

Leia também: Ocupações irregulares são regra, não exceção e Como surge uma ocupação.

Casas sem gente, gente sem casa: entendendo o problema, pensando soluções

O desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no dia primeiro de maio de 2018, escancarou uma emergência habitacional. Como se não bastasse o corte nos investimentos públicos destinados ao setor, em São Paulo, apenas no ano de 2017, pelo menos 14 mil famílias foram removidas de suas casas, e há pelo menos outras 30 mil ameaçadas por morar no perímetro de obras públicas, segundo aponta o Observatório de Remoções da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP).

Para cada família que é forçada a sair de seu lar, a prefeitura concede uma bolsa-aluguel de R$ 400. Atualmente, diz a Secretaria Municipal de Habitação, 30 mil delas recebem o benefício. Mas o valor costuma ser insuficiente para custear o aluguel de um imóvel na região central, onde a maioria das pessoas já está estabelecida. Assim, quando escolhem permanecer no mesmo bairro ou região, por conta do seu trabalho e da escola em que suas crianças estão matriculadas, as famílias acabam indo parar numa ocupação ou numa favela.

De acordo com o Censo 2010, São Paulo tem mais de 30 mil imóveis nos distritos centrais que poderiam ser destinados à habitação social. Dentre os imóveis que pertencem ao poder público, como era o caso do edifício Wilton Paes de Ameida, muitas vezes eles se originaram de dívidas que organizações privadas não conseguiram honrar, e isso chega via INSS, ou massa falida de empresas como a Rede Ferroviária Federal. O problema é que a venda ou doação desses imóveis muitas vezes implica para o gestor estar sujeito a questionamentos por parte do Tribunal de Contas ou do Ministério Público: como é possível vender barato uma coisa que vale muito mais? Como é possível doar um bem que na verdade se destinava ao pagamento de uma dívida? É um emaranhado grande que faz com que estes imóveis, quando colocados à venda, jamais atinjam o preço no qual foram estabelecidos. Além disso, há uma enorme dificuldade de doá-los para programas sociais.

No caso de São Paulo, para imóveis privados, desde 2010 há uma lei que prevê penalidades, dentre as quais a desapropriação, mediante indenização em títulos da dívida pública, para os proprietários que os mantiverem vazios ou subutilizados. Em fevereiro de 2018, de acordo com artigo de Fábio Custódio, à época mestrando da FAU, em co-autoria com sua orientadora Paula Santoro, 1.384 imóveis foram notificados. Destes, 645 estão localizados na região central. Entretanto, apesar de o próprio Plano Nacional de Habitação prever que apenas com o uso de imóveis notificados seria possível produzir 110 mil moradias, este instrumento em si não é capaz de produzir moradia. É o que aponta uma outra pesquisa da FAU, esta coordenada pela professora Luciana Royer: uma parte destes imóveis notificados jamais poderiam ser reformados e virar moradia.

Estamos falando aqui de Brasil. E principalmente de São Paulo. Mas é importante olharmos para as experiências de países que têm condições muito semelhantes às nossas, em termos de história e capacidade técnica, e que têm enfrentado as dificuldades com iniciativas criativas e muito potentes. Um deles é a Colômbia. Lá, igual aqui, há dispositivos para que imóveis vazios sejam convocados para fazer parte de programas de moradia. Este instrumento, que não é generalizado, se chama declaratoria de desarrollo prioritario, e o governo só convoca os imóveis quando já tem os fundos suficientes para reformar ou construir determinado tipo de moradia. Aqui, pelo contrário, se espera oito, nove anos para desapropriar. A saída da Colômbia seria uma forma de fazer com que o nosso instrumento, que é a notificação de ocupação compulsória, consiga estar mais ligado a uma política de produção de moradias.

Outra experiência relevante é a carteira de imóveis e terras públicos, vinculada ao Ministério de Vivienda e Ordenamiento Territorial do Uruguai, inclusive à cidade de Montevidéu. Essa carteira reúne imóveis de propriedade do governo central ou da cidade, e, com eles identificados, e identificadas as suas possibilidades concretas de produzir moradia, é feito um chamamento para que cooperativas (e o Uruguai tem um modelo cooperativista de produção de moradia muito grande, antigo, estruturado) possam fazer propostas de projetos. E isso já está associado ao Fondo Nacional de Viviendas, um fundo que destina recursos financeiros inclusive para a reabilitação de moradias.

No caso de Nova Iorque, que também enfrenta um quadro de emergência habitacional, a cidade convocou os proprietários de apartamentos vazios a entrarem em contato com famílias que estão procurando moradia. Os aluguéis destes imóveis são parcialmente subsidiados por um fundo público de aluguel da prefeitura, e isso é muito diferente da bolsa-aluguel que a Prefeitura de São Paulo oferece, porque as pessoas ficam perdidas no meio da cidade tentando descobrir onde podem morar. No caso nova-iorquino, não: é gestão municipal que está mobilizando um estoque, inclusive privado, e pagando esses proprietários para que, com subsídios públicos, e a participação das próprias famílias, os imóveis ser destinados à moradia de aluguel.

Erguido em estilo neoclássico em 1945, o Edifício Riskallah Jorge está no bairro de Santa Ifigênia, região central de São Paulo. Ficou em estado de abandono e, por reivindicação dos movimentos sociais, reformado pela Prefeitura de São Paulo, por meio do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), com unidades habitacionais destinadas à população com renda entre três e seis salários mínimos.

Mas voltando a São Paulo: já há famílias morando nos imóveis reformados por meio de parcerias entre a Prefeitura e cooperativas de movimentos sociais, o programa de locação social, ou iniciativa do governo do Estado, o que comprova o sucesso dessas iniciativas. Mas este processo se estendeu por 10, 15 anos. Por que? Por conta da ausência de política adequada.

No cenário atual, é necessário primeiro tornar disponíveis os prédios vazios, depois mobilizar os financiamentos dirigidos para a reabilitação, e finalmente fazer com que tudo isso se encontre numa obra concreta. E isso por que? Porque não temos um programa ou fundo de financiamento habitacional específico para reformas. O Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, foi totalmente montado para financiar a construção de novas unidades habitacionais, e é até possível destinar recursos para a reforma, mas é um trâmite muito burocrático, lento, dispendioso de energia.

Esse assunto foi tema da minha coluna “Cidade para Todos”, na Rádio USP. Ouça aqui.

A política habitacional da prefeitura e do governo do Estado, hoje, produz ocupações

Em entrevista à rádio USP, a urbanista Raquel Rolnik fala com a jornalista Sandra Capomaccio sobre a tragédia anunciada produzida pela política de habitação atual.

Sandra Capomaccio: A ocupação irregular foi o motivo do incêndio?

Raquel Rolnik: Evidente que não. Os ocupantes são as vítimas, não a causa. A questão fundamental e estruturadora é a existência de uma quantidade enorme de prédios vazios, abandonados, colocando em risco seu entorno, e que são uma afronta às necessidades imensas de moradias que existem em São Paulo. Esse é um exemplo claro de um imóvel público que foi abandonado, ou melhor, que, ao invés de ter sido destinado a uma função social, a uma necessidade pública, é mantido vazio, subutilizado em função de expectativas de remuneração/rentabilidade que hoje ele não tem. E existem centenas como este, públicos e privados, vazios por anos.

As pessoas invadem estes prédios por não ter onde ir, e agora a prefeitura diz que encontrou lugares para estas pessoas. Como é isso?

Na verdade não temos uma política habitacional que dê conta de necessidades diversificadas. Temos hoje uma presença grande de populações refugiadas, por exemplo. O país assina convenções para receber estas pessoas, o que é ótimo, mas não se prepara minimamente para recebê-los. E a moradia para quem acaba de chegar, seja migrante, imigrante ou refugiado, é transitória, de passagem, o que não existe como programa de governo. E há situações de idosos, sozinhos, que não precisariam ter que comprar casa própria, mas sim ter um aluguel acessível  como alternativa. As ocupações são fruto de uma política habitacional que remove gente de favelas, de áreas desapropriadas – acabamos de ver isso na região na Luz -, e oferece apenas uma bolsa-aluguel. São cerca de 30 mil pessoas hoje que recebem R$ 400 de bolsa-aluguel. O único lugar em São Paulo possível para este aluguel é viver em ocupações. Ou nas favelas mais precárias das franjas da cidade. A política habitacional da prefeitura, hoje, produz ocupações.

Temos hoje algum projeto habitacional que conseguiu reformar estes prédios?

Sim, nós já temos esta experiência em São Paulo. Isto foi feito na gestão  da ex-prefeita Luiza Erundina pela primeira vez com um prédio na Mooca. O governo do Estado, através da CDHU, também já teve um programa para começar a fazer isto, mas foi interrompido. Na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy foram reformados vários prédios, tanto para programas de casa própria como de locação social. A gestão Haddad desapropriou e pagou vários para poder reformá-los – e, ao perder a eleição para Dória, o programa foi interrompido. Creio que temos hoje pelo menos dez  edifícios que foram reformados e hoje tem moradores que vivem com qualidade. Isso foi experimentado.

É possível ocorrer novamente outra tragédia?

É possível, até porque várias ocupações, consolidadas, que estão há anos em processos de auto organização e mutirões, pedem a religação da energia elétrica, da água. Isso é sistematicamente negado, mesmo em edifícios de propriedade pública. Isso expõe a população a perigos e a possíveis desastres. Além disso, temos no Plano Diretor uma política com instrumentos que dizem: imóveis que não cumprem função social devem ser penalizados, até inclusive a desapropriação, com pagamentos de títulos da dívida pública.  Descobrimos, por exemplo, com o trabalho que está sendo feito pelo Fórum Mundaréu da Luz na região da Cracolândia , só em um raio de 1 km em torno das quadras 36, 37 e 38, aonde centenas de pessoas estão sendo removidas sem ter para onde ir, que só com os edifícios vazios já notificados pela prefeitura por não cumprir sua função social, seria possível produzir 1000 unidades habitacionais, mais do que suficiente para reassentar quem está lá, sem jogar ninguém na rua! Assim a pessoa pode ser removida, como está ocorrendo agora nos Campos Elíseos, com uma bolsa-aluguel de R$ 400, e uma outra alternativa de moradia, a não ser ocupar um edifício abandonado.

Ouça a entrevista na Rádio USP aqui.

 

A cada remoção, uma nova ocupação

Por Raquel Rolnik

Estamos vivendo uma emergência habitacional em São Paulo, como não se via há mais de uma década, pelo menos. Em outras palavras, por absoluta falta de acesso à moradia no mercado formal, e diante da ausência absoluta de políticas públicas para este segmento da população, estão se multiplicando as ocupações e os novos assentamentos, tanto nas periferias quanto nos edifícios abandonados de bairros centrais.

A afirmação do título não é vazia: por conta do trabalho que a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo vem desenvolvendo, via Observatório de Remoções, em conjunto com outras entidades e coletivos no Fórum Aberto Mundaréu da Luz, soubemos de pelo menos uma família que, depois de ser removida da sua casa, na quadra 36, região dos Campos Elíseos, pelo governo do Estado e diante de nenhuma alternativa concreta de onde morar, instalou-se no edifício Wilton Paes de Almeida. O edifício, quando construído, foi um marco na arquitetura e engenharia brasileiras. O arquiteto Roger Zmeckol concentrou todo o peso de sua estrutura em apenas alguns pontos centrais, podendo assim implantar a primeira fachada inteiramente de vidro da cidade. O prédio, inaugurado em 1968, foi sede de várias empresas, até que seus proprietários endividados acabaram cedendo o edifício para a União. Desocupado, transformou-se em casa para mais de 300 pessoas quando desabou na madrugada da última terça-feira, 1º de maio.

Assim como essa, muitas outras famílias que habitam a região central da cidade estão perdendo suas moradias. Pontualmente chamo a atenção para aquelas famílias moradoras das quadras 36, 37 e 38, área em que, por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP), vai ser construído o novo Hospital Pérola Byington. De acordo com o Plano Diretor de São Paulo, esta região é uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), e portanto destinada à produção ou à melhoria de habitações sociais.

A recusa ao cumprimento da lei, e ao diálogo com os cidadãos, acontece neste momento em que é fundamental ampliar a política social, de apoio à moradia. Mas o que tem acontecido é o oposto: a retração dos investimentos públicos, aliada a uma política de remoções que não oferece nenhuma alternativa sustentável, de longo prazo às famílias. Com isso, para onde mais poderiam ir as pessoas que são forçadas a sair de suas casas? Que fique bem claro: cada remoção é estímulo para uma nova ocupação. E a resposta do Estado? Por enquanto, criminalizar os que mais sofrem.

Esse assunto foi tema da minha coluna “Cidade para Todos”, na Rádio USP.  Ouça aqui.

Quem encomendou esse decreto sobre HIS agora?

Na semana passada, a prefeitura de São Paulo publicou um decreto (54.074, de 5 de julho de 2013) que trata da produção de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP). Parte do conteúdo desse decreto já tinha sido objeto de uma grande celeuma, no ano passado, quando entrou como substitutivo do Plano Municipal de Habitação na Câmara (leia comentário que fiz aqui no blog). Mas acabou não sendo aprovado. Em tese, o decreto tem como objetivo facilitar a produção de HIS na cidade, mas na prática ele faz alterações ao zoneamento e em outras questões que estão sendo debatidas exatamente neste momento de revisão do Plano Diretor.

Embora seu conteúdo não seja exatamente igual ao discutido ano passado, não é hora, em plena discussão do Plano Diretor, de soltar um decreto como este, que consolida, por exemplo, a impossibilidade de produção de HIS em zonas exclusivamente residenciais (em vigor desde 2004), justamente quando isso pode ser revisto.  No mundo inteiro – não apenas em São Paulo – estão ocorrendo discussões sobre espaço e mistura social. O decreto aprovado, no entanto, segue um sentido contrário. Se a zona é exclusivamente residencial, por que não residencial para todos? Por que não há uma mistura de faixas de renda diferentes?

Além disso, atualmente, a definição de HIS vai até seis salários mínimos de renda familiar mensal, segundo definição de 2002 quando foi feito o PDE, ou seja, muito antes da recente política de valorização do salário mínimo. Essa é uma das discussões mais importantes dentro da revisão do Plano: para ser realmente habitação de interesse social, seria necessário reduzir a faixa de HIS para 0 a 3 salários mínimos assim como reduzir drasticamente as faixas da HMP (que hoje vai até 16 salários mínimos!). O próprio programa Minha Casa Minha Vida abandonou o parâmetro dos salários mínimos e definiu faixas fixas de acordo com a renda familiar. Nele, os empreendimentos produzidos para a primeira faixa do programa (ou seja, para HIS) destinam-se a famílias com renda de até 1600 reais; enquanto os empreendimentos produzidos para a segunda faixa, a famílias com renda de até 3100 reais.

Portanto, emitir um decreto desse tipo em pleno questionamento de tudo isto é extemporâneo. Preocupa ainda mais que na gestão anterior essas propostas tenham sido apresentadas sob a forma de projeto de lei – e, portanto, debatidas pela sociedade na Câmara Municipal. Dessa vez isto sai como um decreto, sem debate nenhum… Por que este decreto agora? A quem/que ele procura atender?

459 anos: Celebrando a maior crise urbanística da história da cidade de São Paulo

O aniversário da cidade é sempre uma oportunidade para balanços: como a cidade é vista e vivida por seus moradores? Temos algo a comemorar? Como se trata de São Paulo, a maior e mais contraditória cidade brasileira, o discurso da pujança, do poder, da diversidade, da energia e da intensa dinâmica (e outros consagrados superlativos) esbarra numa espécie de mal-estar generalizado em relação a sua condição urbanística. Usufruir da cidade é uma espécie de corrida de obstáculos cotidiana na qual é necessário abstrair a poluição, o trânsito, o congestionamento, os buracos, os atropelamentos, a enchente, a feiura e o descaso que atingem – evidentemente com intensidades muito diferentes – o conjunto das pessoas que vivem e circulam na cidade.

A (i)mobilidade parece ser o sinal mais evidente da crise e, de fato, não se trata apenas de uma “percepção”, mas da realidade de um sistema de transporte e circulação totalmente incompatível com os fluxos da cidade. Na verdade, a situação atual da mobilidade nada mais é do que a crise de uma política urbana constituída exatamente para enfrentar a primeira grande crise urbana que São Paulo viveu, na década de 30.

Até os anos 1920, o transporte era coletivo e sobre trilhos – bondes e trens. Em 1933, a cidade tinha uma rede de bondes com 258 km de extensão, três vezes maior do que a extensão atual do metrô, em uma cidade com, então, 888 mil habitantes. Nesse mesmo período, a cidade vivia sua primeira grande crise de moradia, durante a qual o modelo de vilas e cortiços de aluguel foi gradativamente substituído pelo loteamento de bairros distantes. Desde a década de 1920, foi implantado na cidade um projeto de remodelação viária voltado para dar suporte a e aumentar a velocidade de circulação de carros e caminhões, implementado por sucessivas administrações municipais e estaduais.

Na década de 1930, diante da ameaça de perda do monopólio e dos problemas de lucratividade com o sistema de bondes, a Light propôs um novo acordo ao governo municipal, apresentando, dentre outras medidas, um plano de construção de uma rede de trânsito rápido com calhas para as linhas de bonde (algumas subterrâneas). Ao mesmo tempo, o então engenheiro municipal Prestes Maia propunha o Plano de Avenidas, composto por um sistema de vias formando uma grelha “radioperimetral”, que acabou por estruturar o crescimento da cidade ao longo das décadas seguintes.

A concepção urbanística proposta por Prestes Maia se opunha a qualquer obstáculo físico para o crescimento, viabilizando um modelo de expansão horizontal ilimitado, que se combinou perversamente com a autoconstrução na periferia como “solução” para o problema da moradia em um contexto de grande migração para a cidade. Ao contrário dos bondes e trens, o transporte via ônibus era flexível, pois seu raio de influência não era limitado pela distância entre as estações. Assim, foi constituído um modelo urbanístico que conduziu o desenvolvimento da cidade. Este breve post não nos permite demonstrar outros elementos deste modelo (como verticalização e zoneamento) e sua relação com a própria lógica política de administração da cidade. Mas não há a menor dúvida de que hoje esse modelo encontrou seu limite.

O que temos para celebrar neste aniversário é, por incrível que pareça, a crise! Só um mal estar como o que atualmente vivemos nesta cidade, aliado à imensa capacidade econômica, técnica e cultural presentes em São Paulo, é capaz de abrir espaços para a ruptura e superação de seu modo de fazer cidade.

 

Texto publicado originalmente no Yahoo! Blogs.

Bancos anunciam suspensão de despejos na Espanha depois de casos de suicídio: questão resolvida? Não!

Jornais de todo o mundo anunciaram esta semana que os principais bancos da Espanha decidiram cancelar, por dois anos, as ordens de despejo dos mutuários “mais necessitados”. A decisão se deu depois dos recentes suicídios de pessoas inadimplentes prestes a serem despejadas. Segundo a Associação Espanhola de Bancos, as instituições tomaram a decisão por “razões humanitárias”.

Em primeiro lugar, é importante perguntar: qual o critério para decidir quem são os “mais necessitados”? Depois, é preciso ficar claro que esta medida não resolve a questão. É necessário que haja uma reforma radical da lei de hipotecas do país, que está hoje em debate, mas não apenas isso. É também fundamental uma discussão profunda sobre a política habitacional do país.

Recentemente apresentei à Assembleia Geral da ONU um relatório temático* justamente sobre este tema: a financeirização da produção habitacional. A Espanha é um dos casos analisados neste relatório. É possível dizer que, do ponto de vista do direito à moradia, o próprio processo de concessão dos créditos imobiliários na Espanha foi altamente discriminatório, especialmente para os mais pobres.

Estas famílias foram atraídas por propostas de contratos, por exemplo, com zero de prestação inicial e aumento progressivo das prestações. O fato é que a crise chegou, as prestações subiram e os empregos sumiram. A inadimplência então aumentou, assim como as execuções das hipotecas por parte dos bancos.  No caso da Espanha, inclusive, as pessoas perdem suas casas, mas continuam com a dívida, já que, com a crise, o preço dos imóveis caiu e os bancos não querem ficar com o prejuízo.

Uma matéria do Estadão fala que de 2008 para cá, 203.808 imóveis foram executados na Espanha. Os dados que incluí em meu relatório, no entanto, dão conta de que, de 2007 até outubro de 2011, 328.720 unidades já haviam sido hipotecadas. Os bancos com maiores percentuais de execução são, respectivamente, Bankia (16%), o BBVA (12%), e o Santander (10%). E a maior parte das hipotecas executadas é de imóveis de menor valor, ou seja, atinge a população mais pobre. Entre as pessoas que perderam suas casas, 1/3 é de não espanhois, entre eles, muitos migrantes latino-americanos.

A questão fundamental é que as famílias que hoje estão desesperadas optaram por comprar suas casas através de financiamento bancário porque não tiveram outra alternativa na política habitacional para garantir uma moradia adequada. Na Espanha, assim como cada vez mais em vários países do mundo, políticas sociais de moradia desapareceram ou nunca chegaram a existir. As opções são se sujeitar a alugueis totalmente desregulados, ocupar um assentamento informal ou… comprar a casa própria oferecida pelas construtoras, com a intermediação de bancos. Elas aceitam esta opção porque não existem políticas públicas de habitação que ofereçam outras opções de acesso à moradia.

A principal conclusão a que cheguei no relatório é que este modelo de política habitacional através da compra da casa própria via crédito virou o paradigma dominante no mundo, inclusive no Brasil, impondo-se como modelo único na maior parte dos países. Mas ele não dá conta de atender as necessidades da população mais pobre e vulnerável. O que está acontecendo na Espanha é apenas um dos exemplos trágicos disso.

* Leia o relatório sobre financeirização da produção habitacional:

Clique aqui para versão em espanhol.

Clique aqui para versão em inglês.

* Acompanhe a Relatoria da ONU para o Direito à Moradia Adequada nas redes sociais:

Facebook: www.facebook.com/righttohousing

Twitter: @adequatehousing

O Lado B da política habitacional do município de São Paulo

Ao longo da última década, o setor habitacional do município de São Paulo foi crescentemente se estruturando e avançou em vários aspectos, como por exemplo, na produção de um cadastro de todas as favelas e loteamentos irregulares, disponível online (HABISP); na contratação de projetos específicos  para a realização de cada intervenção nos assentamentos precários e para a construção de conjuntos habitacionais, e, especialmente, na elaboração de um Plano Municipal de Habitação, que trata do tema no longo prazo, a partir de uma leitura da situação atual, contendo metas, recursos etc.

Entretanto, existem aspectos dessa política habitacional que ainda precisam avançar muito mais e já dispomos de instrumentos jurídicos e urbanísticos na cidade para isso. Um dos aspectos que mais preocupa são as remoções. Milhares de famílias estão sendo removidas em função de projetos de infraestrutura, realocação de áreas de risco, e até mesmo no âmbito da urbanização de favelas. Porém não existem informações e transparência nestes processos nem para as famílias atingidas, nem para o público em geral. Além disso, não há uma base de dados que informe quantas famílias são removidas, para onde são conduzidas, qual o volume de recursos destinado a estas família, quantas recebem bolsa aluguel, por quanto tempo, qual o prazo entre a atenção emergencial da bolsa e a solução definitiva… Enfim, nada disso está disponível.

Tanto na USP como na Relatoria da ONU para o Direito à Moradia Adequada, recebemos muitas notícias e denúncias de remoções forçadas. Foi pensando na necessidade de dar visibilidade a estes processos que os Laboratórios de Direito à Cidade (Lab Cidade) e de Habitação e Assentamentos Humanos (Lab Hab) da FAU USP, em parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o SAJU da Faculdade de Direito da USP, o Escritório Modelo da PUC SP, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, e movimentos de moradia como a CMP, a UMM e FLM, se uniram para desenvolver o Observatório das Remoções, que será lançado nesta quinta-feira (27), às 17h, no auditório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Leia aqui o convite.

Na ocasião, serão apresentados os primeiros resultados do mapeamento realizado a partir de informações veiculadas na imprensa, coletadas em pesquisas realizadas nos laboratórios envolvidos no projeto, e também a partir de denúncias recebidas pela Defensoria Pública e pela Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

Outro importante evento acontece hoje, às 19h, na Câmara dos Deputados. Trata-se de um debate sobre duas propostas de substitutivo ao Plano Municipal de Habitação, uma elaborada pelo Executivo, outra pela bancada do Partido dos Trabalhadores (PT). Além das questões sobre as alterações no zoneamento da cidade que já comentei aqui no blog, também está em jogo neste debate o tema das remoções, infelizmente ausente do PMH. É fundamental que esta questão seja inserida neste debate, de forma clara, já que este é um dos pontos frágeis do Plano.

Serviço:

Debate substitutivos ao PMH
Dia 25/9, às 19h
Local: plenário da Câmara Municipal

Lançamento Observatório das Remoções Forçadas
Dia 27/9, às 17h
Local: auditório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Clique aqui para mais informações.

Remoções forçadas em tempos de novo ciclo econômico

Confiram abaixo artigo meu publicado semana passada pela Agência Carta Maior.

Remoções forçadas em tempos de novo ciclo econômico

A política habitacional atual é concebida como elemento de dinamização econômica para enfrentar uma possível crise e gerar empregos, sem qualquer articulação com uma política de ordenamento territorial e fundiária que lhe dê suporte, especialmente no que se refere à disponibilização de terra urbanizada para produção de moradia popular. Por outro lado, grandes projetos em curso abrem frentes de expansão imobiliária e atração de investimentos, flexibilizando e excepcionalizando normas e leis. O artigo é de Raquel Rolnik.

Na última metade do século 20, um intenso processo social de construção de uma cultura de direitos ocorreu no Brasil. A luta pelo direito à cidade – e pelo direito à moradia, um de seus componentes centrais – emergiu como contraposição a um modelo de urbanização excludente, que ao longo de décadas de urbanização acelerada absorveu, em poucas e grandes cidades, grandes contingentes de pessoas pobres, sem jamais integrá-las efetivamente às cidades.

No final dos anos 1970, consolidaram-se as bases de um movimento pela Reforma Urbana, coalizão integrada por moradores de assentamentos informais, periferias e favelas das cidades, mas também por setores das classes médias urbanas que naquele momento também reconstruíam suas organizações sindicais. Essa coalizão constituiu uma base política que conseguiu eleger, ao longo da década de 1980, prefeituras comprometidas com um modelo redistributivista e de ampliação da cidadania que incluía a melhoria de serviços públicos, investimentos em favelas e periferias, e apoio a cooperativas e programas de geração de renda, entre outras formas de enfrentamento da crise econômica e da reestruturação produtiva que atingiam os grandes centros industriais e portuários do país.

Dessa época datam as primeiras experiências municipais relevantes de inserção e reconhecimento das favelas no âmbito do planejamento urbano e da legislação urbanística nas cidades brasileiras, como é caso do Recife e de Belo Horizonte. Essas experiências inovaram não por investir nas favelas – o que já vinha sendo feito de forma pontual em várias cidades do país –, mas por identificar e demarcar essas áreas no zoneamento da cidade como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), reconhecendo sua existência e estabelecendo compromissos na direção de sua regularização e incorporação definitiva à cidade.

A introdução de ZEIS nos zoneamentos das cidades, as políticas de regularização e urbanização de favelas, e a promulgação de legislações específicas contendo instrumentos de regularização e de reconhecimento dos direitos de posse de moradores de assentamentos informais se generalizaram no país, principalmente a partir de sua incorporação no Estatuto da Cidade, em 2001. Embora, aparentemente, isso pudesse significar que a partir daí as cidades brasileiras caminhariam nessa direção, a luta cotidiana dos assentamentos informais e ocupações no país para resistir às remoções forçadas e se integrar definitivamente à cidade é bem mais complexa e contraditória.

Hoje as cidades brasileiras vivem um cenário que não pode ser mais definido e compreendido no interior dos paradigmas que marcaram o crescimento urbano dos anos 1960-1980. O novo ciclo econômico por que passa o país, embora carregue a inércia do velho modelo de desenvolvimento urbano patrimonialista e excludente e reproduza práticas políticas presentes no período do “milagre brasileiro”, ocorre sob a égide de uma nova política econômica, sustentada por uma nova coalizão política.

Do ponto de vista do impacto nas cidades, pelo menos dois elementos marcam a constituição de um novo cenário: a integração dos trabalhadores no mercado de consumo (inclusive da mercadoria “casa”) e a inserção da acumulação urbana brasileira nos circuitos financeiros globais.

Do ponto de vista político, os mesmos partidos que, como oposição ao regime militar, lideraram experimentações locais de gestão democrática em governos populares, nas décadas de 1980 e 1990, compõem hoje uma coalizão em âmbito federal, com lideranças que emergiram do movimento sindical, exercendo uma nova hegemonia no establishment político e influenciando enormemente a agenda do desenvolvimento. O modelo de “integração pelo consumo” e crescimento com geração de empregos e melhoria das condições salariais definiu a priorização do uso de recursos públicos para promover grandes projetos de infraestrutura produtiva, com enorme impacto sobre o território do país, sem fortalecer espaços de planejamento e ordenamento territorial nem construir um sistema de gestão do território federativo, que levassem em consideração as fragilidades e potências dos processos locais.

A política habitacional atual é concebida como elemento de dinamização econômica para enfrentar uma possível crise e gerar empregos, sem qualquer articulação com uma política de ordenamento territorial e fundiária que lhe dê suporte, especialmente no que se refere à disponibilização de terra urbanizada para produção de moradia popular.

Por outro lado, grandes projetos em curso – entre operações urbanas e obras de preparação das cidades para a Copa do Mundo e as Olimpíadas – abrem frentes de expansão imobiliária e atração de investimentos, flexibilizando e excepcionalizando normas e leis. Os megaeventos marcam, simbólica e concretamente, a entrada das cidades do país no circuito dos territórios globais.

A liberação de terra bem localizada para empreendimentos e grandes negócios tem levado a um aumento exponencial de remoções forçadas de assentamentos populares, muitos com décadas de existência, e – pasmem! – vários já regularizados e titulados de acordo com os instrumentos legais. As conquistas no campo do direito à posse da terra desses assentamentos são ignoradas e tratadas de maneira ambígua e discricionária. Ou seja, espoliam-se os ativos dos mais pobres, sem reconhecer seus direitos, porque é mais barato. Mas também porque, dessa forma, limpa-se a imagem da cidade a ser vendida nos stands globais: sem assentamentos populares à vista.

Exatamente quando recursos públicos vultosos estão disponíveis para investimentos na urbanização das favelas do país – com o PAC das favelas –, o que se observa é a desconstituição dos processos e fóruns participativos, uma geografia seletiva de favelas a serem urbanizadas e processos massivos de remoção em decorrência da implementação de projetos e obras, muitas vezes com uso da violência. Mais grave ainda é o generalizado não reconhecimento, por parte das autoridades municipais, da regularização fundiária como um “direito” dos moradores, tratando o tema como “questão social” e, portanto, dependente da discricionariedade e, na maior parte dos casos, do não equacionamento desse direito através da implementação de alternativas sustentáveis à remoção.

Não se pode negar a importância do crescimento econômico, da geração de empregos, da valorização do salário, mas, se não houver uma política de enfrentamento da lógica corporativa e patrimonialista de gestão das cidades e um fortalecimento da regulação pública sobre o território, é muito provável que esses ganhos se tornem perdas no futuro. E mais: o caminho da desconstituição de direitos pode ser perigoso; podemos saber hoje onde começa – sobre os mais vulneráveis –, mas é difícil prever onde termina.

Eu sou você amanhã: a experiência chilena e o ‘Minha Casa, Minha Vida’

Acabo de retornar de uma visita ao Chile, onde fui conhecer a política habitacional do país e os processos de reconstrução pós-terremoto de fevereiro de 2010. O Chile foi um dos primeiros países do então terceiro mundo a adotar, durante a ditadura de Pinochet, no final dos anos 1970, as fórmulas neoliberais propostas pela Escola de Chicago em vários domínios das políticas, reduzindo, em tese, a intervenção do Estado, promovendo a participação do mercado e focalizando subsídios públicos aos grupos de extrema pobreza. Setores como a educação e serviços públicos foram privatizados, e políticas públicas, como as de habitação, foram reformadas.

Implementada sistematicamente durante mais de três décadas, inclusive durante os governos da Concertación (coalizão de centro-esquerda), o modelo de política habitacional adotado pelo Chile é quase igual à fórmula do programa “Minha Casa, Minha Vida”: subsídios públicos individuais permitem às famílias de menor renda comprar no mercado produtos ofertados por construtoras privadas. O modelo se completa com disponibilidade de crédito: quanto menor é a renda, maior é o subsídio e menor é a parcela de crédito que entra para viabilizar a compra.

Este modelo praticamente pôs fim à produção informal de habitação no Chile e criou, ao longo do período, mais de um milhão de soluções habitacionais, transformando-se em grande referência de política habitacional, louvada por organismos e consultores internacionais. Hoje, no entanto, além das manifestações estudantis maciças denunciando a privatização da educação, que produziu um ensino caro e de baixa qualidade, o Chile vive o dilema do que fazer com os seus “com teto”.

As centenas de milhares de casas e apartamentos da supostamente exitosa política habitacional chilena produziram um território marcado por uma segregação profunda, onde o “lugar dos pobres” é uma periferia homogênea, de péssima qualidade urbanística e, muitas vezes, também, de péssima qualidade de construção, marcada ainda por sérios problemas sociais, como tráfico de drogas, violência doméstica, entre outros. Para se ter uma ideia, vários conjuntos habitacionais já foram demolidos (!) e muitos outros se encontram em estudo para demolição.

Deixada para o mercado a decisão de onde e como deveria ser produzida, encarada como um produto que se compra individualmente, como um carro ou uma geladeira, a cidade que resultou é simplesmente desastrosa. Nada nos leva a supor, que, em menos de dez anos, não estaremos enfrentando no Brasil o mesmo cenário com o programa “Minha Casa, Minha Vida”.

Originalmente publicado no Yahoo!Blogs.