FGTS mais uma vez vai salvar investimento imobiliário “micado” no Porto Maravilha

Por Helena Galiza* e Raquel Rolnik**

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Montagem com prédio da Caixa Almirante Barroso, com a fachada em obras (foto: HGaliza, jan 2018) e empreendimento Aqwa Corporate

O Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro publicou no jornal BancaRio, em novembro de 2017, que “o Conselho Diretor da Caixa Econômica Federal decidiu transferir os empregados e todos os setores do prédio da Avenida Almirante Barroso para o empreendimento Acqwa Corporate, pertencente à empresa internacional Tyshman Speyer”, localizado na área da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. A matéria considera esta “mais uma transação nebulosa” da Caixa, decidida sem qualquer debate e baseada em estudos técnicos de acesso restrito até para os funcionários da área de logística da empresa.

O vice-presidente do sindicato, Paulo Matileti, cobrou do presidente da Caixa Gilberto Occhi a suspensão do processo de mudança para a região portuária. Segundo o sindicalista, “o presidente da Caixa recebeu o ofício, mas não fez qualquer menção quanto à possibilidade de reversão da transferência”. Matileti afirma, ainda, que a direção da Caixa alegou que investiu “mais de R$ 5 bilhões do FGTS nas obras do Porto Maravilha, da qual grandes empresas fazem parte, e a transferência da empresa faz parte deste projeto”.

O presidente da Caixa declarou também que “o prédio da Barroso está deteriorado e que uma reforma custaria mais caro do que a mudança para o novo imóvel”. O atual imóvel ocupado pela empresa localiza-se no coração do Rio, na esquina das Avenidas Rio Branco e Almirante Barroso. Foi projetado e construído nos anos 1960, especialmente para a Caixa. Em 2003, passou a lastrear o Fundo de Investimento Imobiliário Edifício Almirante Barroso, administrado pelo banco BTG Pactual Serviços Financeiros S.A., cujo único locatário é a própria Caixa.

 

A Tishman Speyer é uma incorporadora e administradora imobiliária  transnacional de empreendimentos de alto padrão em todo o mundo. Em seu website, o AQWA Corporate é descrito como um arrojado “complexo corporativo Classe A assinado por Foster+Partners e desenvolvido com a expertise global”. O imóvel está localizado à beira da Baía de Guanabara e, segundo a empresa, “estrategicamente posicionado no coração da maior área de intervenção urbana do país – o Porto Maravilha”. Enfatizando a vista da beleza da cidade, o site informa, ainda, que o prédio terá 21 andares e disporá de 74.231 m² de área (locável).

O site especializado em economia Relatório Reservado, em nota intitulada “Porto fantasma”, de julho do ano passado, cita os efeitos da crise econômica e as dificuldades enfrentadas pela Tishman Speyer para fechar um só contrato de locação do Aqwa Corporate. Comenta ainda que, nessa época, “o índice de imóveis comerciais vazios na região portuária do Rio beira os 89%”. Mais recentemente, outra nota, intitulada “Legado olímpico – Porto Maravilha”, informa que a “Tishman Speyer já baixou em 40% o valor da locação do Aqwa Corporate, no Porto Maravilha, no Rio. Ainda assim, cerca de 70% do prédio seguem vazios”.

A Caixa tornou-se a maior investidora do Porto Maravilha quando, em 2010, comprou todos os certificados de potencial adicional de construção (Cepacs) da Operação Urbana Porto Maravilha, usando R$ 8 bilhões do FGTS. Assumiu também a gestão dos fundos imobiliários criados especialmente para a operação, dentre os quais o Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha (FII PM), onde foram depositados todos os Cepacs. Na condição de proprietário desses títulos, o fundo passou a investir nas torres comerciais de alto padrão e associou-se aos empreendedores da região, que não mais precisaram comprar os certificados correspondentes àqueles empreendimentos.

Notícia do jornal Valor sobre o primeiro negócio desenvolvido pela parceria Caixa-Tishman Speyer menciona que o FII Porto Maravilha participou do projeto com o terreno e os Cepacs, enquanto a empresa estrangeira entrou com “o investimento total necessário para o projeto”. A Caixa, gestora do FGTS e do FII PM, assumiu esse tipo de associação também nos demais empreendimentos imobiliários da região.

 

Com a débâcle do Porto Maravilha, a Caixa, ou melhor, o FGTS – fundo público de propriedade dos trabalhadores –, tem amargado prejuízos. A decisão da estatal de alugar o edifício é, uma vez mais, a repetição da clássica “solução” brasileira: usar o fundo público, os recursos dos trabalhadores e trabalhadoras, para salvar investidores e incorporadoras transnacionais..

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Helena Galiza é Arquiteta, doutora em urbanismo, pesquisadora do Laboratório Ettern/Ippur/UFRJ. Trabalhou mais de trinta anos no governo federal (BNH, Iphan e Caixa Econômica Federal), com política urbana, habitação social e reabilitação de áreas centrais. Presta assessoria técnica voluntária a movimentos sociais de luta pela moradia nas áreas centraiscordi. Teve a operação Porto Maravilha como estudo de caso da tese doutorado (UFRJ, 2015). Lattes

** Raquel Rolnik é urbanista, professora de Planejamento Urbano da FAU USP e coordenadora do LabCidade. Livre-docente pela FAU USP e doutora pela New York University, foi coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis, diretora de Planejamento Urbano da cidade de São Paulo, secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. É autora dos livros “O que é a Cidade”, “A Cidade e a Lei”, “Folha Explica São Paulo” e “Guerra dos Lugares”. Lattes

Saberes [auto]construídos: nova publicação do Praxis UFMG

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Capa da publicação

Já está disponível para visualização o e-book Saberes [auto]construídos, organizado pela arquiteta e urbanista Denise Morado, por iniciativa do Praxis UFMG e C/Arte, com apoio de Fapemig, Capes, CNPq, ProEx/UFMG. 

Para visualizar a publicação, clique aqui.

Em breve a versão para download estará disponível no site da Editora C/Arte.

A seguir, compartilho com vocês o texto de apresentação que escrevi para o livro

 

Territórios de resistência e experimentação

Raquel Rolnik

Este livro é um registro – e reflexão – sobre uma experiência: os diálogos estabelecidos entre professores, pesquisadores e estudantes de arquitetura e autoconstrutores de suas casas e bairros em ocupações em Belo Horizonte ao longo de cinco anos.

Em sua leitura vai sendo revelada a tessitura desta experiência: o encontro e confronto de saberes, relações de poder e solidariedade, a comunicação e a entropia, a vontade de desistir, a vontade de resistir. Neste percurso vão aparecendo os atores desta trama: as trajetórias de vida dos moradores da ocupação se revelando no registro das transformações da casa, as novas lideranças que emergiram na ultima década, inconformadas com “o lugar que lhes cabe ” no atual programa de construção massiva de casas, os estudantes e pesquisadores revisitando os processos de autoconstrução, 30 anos depois que a sociologia urbana brasileira descobriu a periferia e a autopromoção da casa – e da cidade – pelos próprios trabalhadores.

Apesar de se referir a um universo pequeno – de poucas comunidades – e, talvez justamente por estar enraizado nelas -, trata-se de um livro sobre as tensões e perplexidades do atual momento na  trajetória da luta pela moradia – e pelo direito a cidade – no Brasil. A mesma autoconstrução – das vilas, favelas e loteamentos – que foi berço destas lutas no final dos anos 1970 e que conduziu a experiências de alternativas habitacionais e de democracia direta nos anos 1980/1990, hoje volta como forma de luta e resistência ante ao atual modelo de política pública hegemônico. Um modelo marcado, contraditoriamente por uma imensa massa de recursos orçamentários destinados a subsidiar a moradia para quem mais precisa, submetido única e exclusivamente a uma logica de produção pouco aderente as práticas, ritmos e economias destes mesmos grupos. Um ordenamento jurídico prenhe de instrumentos para garantir a função social da cidade e da propriedade e um cotidiano de negação destas mesmas funções. Um espaço institucional criado para a participação direta nos processos decisórios sobre as políticas publicas, e o fortalecimento, ao largo destes espaços, de arenas decisórias controladas por atores econômico-políticos, onde não estão presentes os eternamente excluídos.

Deriva talvez exatamente destas contradições, a potência deste relato: nele estão imbricados o velho e o novo. Os velhos desafios da educação popular paulo freireana aliados às novas ferramentas comunicacionais como a web, a mais pura tradição da “assistência técnica” dos arquitetos, às mais novas articulações entre coletivos culturais e artísticos e as lutas populares. A velha forma de fazer casa e cidade dos mais pobres, na lógica da precariedade dos meios e as novas tecnologias experimentais de sistemas de esgoto, drenagem, urbanização…

O livro é um retrato. Como todo retrato, congela um momento no tempo, revelando o que se passou até chegar ali, mas deixando em aberto o futuro. Um futuro feito de incertezas, porém certamente compartilhadas.

Aprendendo com o Regent Park

A Revista Minha Cidade publicou um artigo da pesquisadora Maria da Silveira Lobo(*), sobre um bairro central na cidade de Toronto transformado em renda-mista, com governança baseada no Orçamento Participativo brasileiro. Confira abaixo.

Aprendendo com o Regent Park – Por uma arquitetura e um urbanismo de miscigenação social

por Maria da Silveira Lobo

Sala da assembléia. Foto: Maria da Silveira Lobo

Sala da assembléia. Foto: Maria da Silveira Lobo

O parque temático da habitação social e da cidadania universal, inspirado no Orçamento Participativo brasileiro

Imagina 69 acres de moradia social irreconhecivelmente misturada com condomínios de classe média, sem qualquer grade, câmara ostensiva ou policial entre os blocos ou no seu entorno. Como no Epcot da Disney World, neste parque temático da habitação social convivem pessoas de etnias de inúmeros países do mundo. E para eliminar qualquer sombra de apartheid que se insinue entre as diferentes comunidades, um Plano de Desenvolvimento Social e um gerente sul-africano, refugiado da invasão do gueto de Sowetto, em 1975, e apaixonado pelo futebol e o orçamento participativo brasileiros. Na sala da assembléia, inquilinos com contrato de aluguel social (30% da renda bruta) e de aluguel de mercado usufruem de seus direitos de modo igual aos proprietários, votando sobre como dispor de 30% do orçamento para a manutenção do parque residencial bem como para os investimentos do Plano de Desenvolvimento Social. Terraços jardins, um parque aquático e um centro comunitário de arte e cultura congregarão novos e antigos moradores e também vizinhos dos bairros próximos.

Prédio de aluguel social (1º plano) e condomínio (2º plano). Foto: Maria da Silveira Lobo.

Prédio de aluguel social (1º plano) e condomínio (2º plano).
Foto: Maria da Silveira Lobo.

Imaginou? Gostou? Pena que só o seu avatar possa morar neste parque de residentes com renda-mista pois ele se encontra na área central de Toronto, no Canadá, apesar das regras do seu jogo participativo terem sido inventadas em Porto Alegre, capital do Orçamento Participativo premiado pela ONU-Habitat. Regent Park é uma espécie de parque temático da cidadania universal. É a gema da coroa do sistema de habitação social da companhia pública Toronto Community Housing, estruturada a partir de 2002 por um suíço-canadense genial, ganhador do prêmio Jane Jacobs de 2009. Para poder renovar o patrimônio público de habitação social do município e da província de Ontario, Derek Ballantyne unificou-os, submeteu-os a uma avaliação de mercado e lançou bônus no mercado da dívida pública, conseguindo assim financiamento necessário para as obras. Depois, ele descentralizou a administração em 16 comunidades residenciais operativas, capitaneadas por gerentes que prestam contas aos conselhos de inquilinos. Diz Derek:

“Queríamos democratizar a companhia e usar isso para criar capacidade social nas comunidades, pois se as pessoas podem organizar conosco assuntos residenciais, elas poderão então organizar outras coisas na vizinhança. Por exemplo, a escola precisa melhorar, mas a escola não é nossa responsabilidade. Mas se damos àquela comunidade capacidade de liderança, então ela poderá lutar para melhorar a escola. O orçamento participativo é muito bom para isso, pois oferece algo bem concreto para trabalhar e fazer desenvolver lideranças”.

Além do Conselho de Inquilinos, Derek bolou um esquema de gerar mais receitas para a companhia a partir da prestação de serviços de lavanderia, publicidade, energia e aluguel de antenas de celular. O resultado para a revitalização do Regent Park, por exemplo, foi viabilizar a reconstrução de todas as 2.083 unidades de aluguel social e introduzir 3.300 unidades do mercado imobiliário, provendo moradia para um total de 12.500 pessoas numa comunidade de renda mista de mais de 5.100 unidades novas.

Prédio original do Regent Park. Foto: Maria da Silveira Lobo

Prédio original do Regent Park. Foto: Maria da Silveira Lobo

O Regent Park está sendo reconstruído como uma comunidade mista de moradores com níveis de renda diversos num bairro aberto e integrado. Cinqüenta anos antes, Regent Park fora desenhado como uma comunidade de baixa-renda, composta inteiramente de habitação social mas cercada por barreiras que minavam o acesso ao emprego, à boa educação e às oportunidades para os seus residentes, como tantos outros conjuntos habitacionais no resto do mundo. Sua atual renovação está abrindo-o, adicionando novas ruas e parques para reconectá-lo à vizinhança e para receber novos residentes com uma gama maior de níveis de renda, profissões, qualificações, relacionamentos e origens étnicas (1).

Bairros de renda-mista são utopia posta em prática. São pesquisa científica aplicada. São vontade política sem cinismo nem ceticismo

As pesquisas demonstraram que Comunidades de renda-mista podem ter um impacto positivo nas oportunidades e desempenhos para residentes de todas as origens sociais. Demonstraram também que sem intervenções ocorrem freqüentes divisões entre grupos de residentes em uma nova comunidade de renda-mista, baseadas em renda, etnia, idade, capacidade e duração de permanência na comunidade. Para evitar que Regent Park se tornasse uma comunidade auto-sabotadora foi necessário desenvolver um Plano de Desenvolvimento Social e promover a inclusão social como ingrediente chave de seu sucesso.

Moradora muçulmana com filho. Foto: Maria da Silveira Lobo.

Moradora muçulmana com filho. Foto: Maria da Silveira Lobo.

Uma Comissão Central de líderes de agências comunitárias, funcionários municipais e da companhia de Habitação Comunitária de Toronto deu as diretrizes do planejamento e seus participantes fizeram consultas aos membros da comunidade, aos conselhos de diretores das agências locais, aos funcionários das agências comunitárias, conselhos de pais, grupos religiosos, negociantes locais, fornecedores de serviços, residentes inválidos, viciados, sem-tetos, comunidades vizinhas, jovens, instituições escolares e de cuidados com infância etc. Esse processo de consulta e planejamento também incluiu pesquisas e planos prévios de iniciativas, serviços e equipamentos comunitários, bem como de emprego, qualificação, desenvolvimento econômico e de espaços livres (2)

Este plano de miscigenação social foi uma revolução no esquema consagrado de ‘segregação étnica positiva’ na cidade considerada a mais multicultural do mundo. Ao invés das “pequenas pátrias” privadas criadas pelos imigrantes do velho multiculturalismo, forjou-se nos anos 1970 e 1980, numa era de direitos humanos internacionais, sociedades pós-modernas e livre comércio, uma diversidade de estilos de vida valorizada e cultivada por muitos canadenses urbanos. Particularmente os mais jovens orgulhavam-se do direito coletivo de construir instituições comunitárias e manter a herança cultural e a língua no domínio público, previstos pela Constituição (3). Mas, se o Canadá nunca assumiu o éthos do “melting pot” nacional americano, tampouco sua juventude chegou a adotar a atitude do tipo “ne touche pas à mon pote”, da SOS Racisme francesa, presidida por Harlem Désir entre 1984 e 1992.

O novo multiculturalismo evocaria, ao invés disso, a visão da estrutura urbana como federação de comunidades e mosaico de culturas, cujo maior exemplo era a área da Grande Toronto com imigrantes de 169 origens étnicas. A onda da imigração liberalizada (450.000 imigrantes entre 1991-1996 estabeleceram-se na Grande Toronto) gerou “etnobúrbios”, enclaves de agrupamentos residenciais nos subúrbios, baseados em vínculos culturais, religiosos e comunitários, mais do que em raça.

Contudo, a atual revitalização do Regent Park, no centro de Toronto, segue na contramão desta tendência misturando de modo inédito etnias e rendas. Daí o clima de excitação entre a equipe que gere o parque, os antigos e novos habitantes e os visitantes. “Tudo é novidade para nós também. Estamos aprendendo a conviver na intimidade do dia a dia”, revelou o consultor para assuntos de saúde comunitária da revitalização, Lancefield Morgan. “Tenho que ser rigoroso com as regras aqui dentro. Meu papel é também de educador da cidadania e do respeito pelo outro”, disse Barry Thomas, o gerente do Regent Park – sul-africano, formado em ciência política – após reclamar simpaticamente com uma moradora somali que insistia em cozinhar num fogãozinho de lenha na varanda do prédio (4).

Quando perguntado sobre os efeitos gentrificadores do empreendimento revitalizador, cuja proporção é de introdução de 2 unidades de mercado para a reconstrução de 1 unidade de aluguel social, Derek Ballantyne respondeu tranquilamente que

“Minha filosofia pessoal é de que todos devemos ser classe-média; não há nenhuma glória em ser pobre. Quando criamos bairros que têm inquilinos de classe média, as instituições públicas, as escolas e os serviços tendem a melhorar. A cidade presta atenção por causa do impacto político. Pessoas pobres que vivem em bairros ricos vivem melhor. Até que a revolução chegue, estaremos melhor criando mais bairros de renda-mista. Para evitar gentrificação você precisa de bairros que protejam os inquilinos de baixa renda. No Regent Park sempre haverá 2000 residências de baixa-renda porque isto está protegido. Em outros bairros o poder público tem que construir ou adquirir casas de baixa-renda” (5).

A inclusão social é a missão central da revitalização; não o citymarketing

O plano de Regent Park atraiu a iniciativa privada, pois sua visão econômica é bem terra a terra. Para viabilizá-lo foi escolhida uma única empresa, a Daniels, uma incorporadora imobiliária sólida que atua há mais de 50 anos na indústria de construção e, há cerca de 20 anos, na construção de casas e apartamentos na Grande Toronto, particularmente. Claro que o empreendimento visa lucratividade. Alguma terra teve que ser vendida, mas a Toronto Community Housing tem a propriedade de 50% da companhia criada com a empresa Daniels e fica com a maior parte do lucro (70%) das vendas. Mas, de modo inteligente, o ponto de partida da revitalização do antigo bairro de habitação social, que se tornara isolado como um gueto sem trânsito de carros e pessoas da vizinhança, dominado pelo tráfico de drogas e a criminalidade, parece ter sido o Plano de Desenvolvimento Social.

O Plano de Desenvolvimento Social compreende um Plano e uma Força Tarefa de Emprego que envolve sustentadores locais e vizinhos, bem como os órgãos públicos. Para promover a mudança social foi feito um Mapa relacional e um Plano de Investimento Social, para o qual foi criado um Fundo. As escolas desempenham um papel fundamental no desafio de superar os obstáculos à inclusão social, podendo permanecerem abertas após o horário de aulas a fim de promoverem atividades que envolvem alunos, pais e a comunidade mais ampla.

Pesquisas comprovaram que as atividades informais que atraem pessoas de diferentes origens sócio-econômicas são as que mais conseguem aglutinar a comunidade de inquilinos e proprietários e construir pontes com os bairros vizinhos. Entre as atividades e os eventos com esta finalidade que mais de destacam na cidade toda de Toronto estão os Jardins Comunitários, as Feiras Comunitárias de Alimentos, os Festivais Gastronômicos comunitários, as Feiras dos Pequenos Fazendeiros, as apresentações musicais, além de esportes, dança e recreação infantil.

Os sustentadores do Plano de Desenvolvimento Social do Regent Park formam um conselho consultivo, um fórum, que se reúne trimestralmente para compartilhar informações, identificar questões, considerar oportunidades, resolver problemas emergentes e agir coordenadamente e, semestralmente, para monitorar e rever metas, processos comunicativos, planos de trabalho e estratégias de financiamento. Reuniões com os residentes são feitas regularmente para que estes possam se informar e acompanhar as questões emergentes do Plano de Desenvolvimento Social.

Pesquisas indicam que as associações de moradores podem desempenhar um papel de orientação e de resolução de disputas de modo muito eficaz para o estabelecimento de harmonia no interior da comunidade. O sistema de governança busca aproximar toda a vizinhança, mas também permitir que os prédios possam fazer suas escolhas independentes. A participação das organizações e dos indivíduos deve ser sempre voluntária. Como as pessoas precisam ter mais experiência em falar publicamente para participar em reuniões formais e de organização, o Conselho de Moradores busca proporcionar oportunidades para isso. Ressalte-se que no entorno do Regent Park há várias Co-op housing, isto é, moradia administrada pelos próprios residentes onde cada membro tem um voto e, todo ano, todos os membros elegem um conselho de diretores. Uma vizinhança empoderada que agrega valor ao sistema do Orçamento Participativo da Toronto Community Housing. O OP é composto por Conselhos de representantes dos inquilinos de cada unidade residencial (cerca de 250 membros) e por um Grupo Inter-Comunitário, composto por delegados e suplentes de cada uma das 16 unidades comunitárias, o qual decide quais dos principais projetos que foram submetidos pelos Conselhos serão financiados pelos 20% dos fundos reservados para decisão dos inquilinos (6).

Na terceira fase do Regent Park será experimentada a mistura no mesmo prédio de moradores de aluguel social e moradores de aluguel de mercado e proprietários. O processo ainda está no início e se funcionará conforme o planejado, só o tempo dirá. Contudo, os primeiros indícios são bastante positivos.

As remoções e realocações foram feitas de acordo com as regras da ONU-Habitat. Ninguém do Regent Park foi obrigado a se realocar, se não desejasse. Para as demolições foi necessário esvaziar as unidades e foi dada a opção de mudar para outra unidade ou para qualquer outro lugar que escolhessem. Apenas 5% escolheu mudar para outro lugar, mais perto do trabalho ou por qualquer outro motivo. A maioria ficou dentro do Regent Park ou perto de lá. Todos que mudaram tiveram a prioridade para voltarem e a mantém durante toda a vida, isto é, mesmo se após 10 anos decidirem voltar, poderão fazê-lo quando houver unidades disponíveis.

O desenho urbano e a arquitetura sem sobrancelhas erguidas, olhares de soslaio e dedos mindinhos levantados

As pesquisas também demonstraram que um desenho urbano que minimize qualquer distinção visível entre moradia de aluguel social e moradia de propriedade privada ajuda os residentes a se sentirem fazendo parte da mesma comunidade.

Apartamentos e casas de renda mista. Foto: Maria da Silveira Lobo.

Apartamentos e casas de renda mista. Foto: Maria da Silveira Lobo.

Não é a lógica do citymarketing que dita quais equipamentos comunitários novos serão construídos em Regent Park. A prioridade é dada às propostas que visem os objetivos do processo de rehabilitação, incluindo co-locações, maior visibilidade e redução de barreiras. Os fornecedores de serviços devem informar sobre as exigências do uso de espaços bem como apresentar um plano de negócios que identifique os custos operacionais após a conclusão das obras. A seleção dos novos fornecedores de serviços e dos novos equipamentos é feita de acordo com o Plano de Uso do Espaço Comum pela Companhia de Habitação Comunitária de Toronto e o Conselho de Inquilinos. A recomendação é de que se proporcione condições favoráveis para que os serviços e programas, especialmente os mais populares, sejam acessíveis, por meio de pagamento, a pessoas das faixas de renda média e alta e gratuitas para as famílias de baixa-renda.

Jardim-terraço-comunitário. Foto: Maria da Silveira Lobo.

Jardim-terraço-comunitário. Foto: Maria da Silveira Lobo.

Por Deus, Gilberto Freyre, Lúcio Costa e Nelson Mandela

Quando penso que Gilberto Freyre alertou para os problemas migratórios antes da construção de Brasília; que Lúcio Costa fez de tudo para que não houvesse cidades satélites antes da saturação do Plano Piloto da Novacap; que Mandela passou 27 anos na prisão lutando contra o apartheid e seus miseráveis “compounds”, sinto profunda tristeza e indignação pelo fato de que, em pleno século XXI, o plano de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro – onde 67% dos terrenos são públicos – não inclui nenhum projeto de habitação social ousado.

Quando será que nós ousaremos superar os vícios da nossa sociedade auto-sabotadora dando um basta na herança fatídica da casa-grande e senzala, do coronelismo, enxada e voto, dos sobrados e mocambos, dos bungalôs e cortiços, dos barracos e puxadinhos na laje, dos conjuntos habitacionais periféricos e dos condomínios cercados de favelas por todos os lados?

Notas

Regent Park Social Development Plan. Executive Summary. Toronto Community Housing, set. 2007 (tradução da autora).

2 Idem, ibidem.

3 QADEER, Mohammad A. Segregação étnica em uma cidade multiculturalToronto, CanadáEspaço & Debates, São Paulo, v. 24, n. 45, jan./jul. 2004, p. 34-46.

4 Visita guiada no Regent Park em junho de 2011.

5 Entrevistas gravadas em vídeo com seis vencedores do Prêmio Jane Jacobs, Toronto, jun. 2011.

How Does Participatory Budgeting Work? Toronto Community Housing. <www.torontohousing.ca/key_initiatives/community_planning/how_does_participatory_budgeting_work>.

(*)Sobre a autora: Maria da Silveira Lobo é socióloga-urbanista, com graduação em sociologia e ciências políticas pela PUC-RJ, mestrado e doutorado em estruturas ambientais urbanas pela FAU-USP (Fapesp) e pós-doutorado pelo Prourb FAU-UFRJ (CNPq 2007-2008 e Faperj 2009). Publicou recentemente o Guia do Cidadão do Porto do Rio de Janeiro e participa do Forum Comunitário do Porto. É também membro do Docomomo-Rio, nacional e internacional.

O bom de São Paulo: Guia de Bens Culturais da Cidade

imagem do guia_siteDPH

Vários leitores do meu post sobre o aniversário da cidade de São Paulo reclamaram que enfatizei apenas os problemas da cidade, deixando de lado o que a metrópole tem de bom… Pois bem, ainda no embalo dos 459 anos, aproveito para falar aqui das joias da cidade: seus bens culturais.

O Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura lançou, em dezembro do ano passado, o excelente “Guia de Bens Culturais da Cidade de São Paulo”. Esse guia propõe percursos em 26 regiões da cidade para conhecer cerca de 200 bens culturais da cidade. Os bens estão divididos por área da cidade (identificadas em mapas), sendo que cada um é acompanhando por uma ficha, contendo diversas informações, como o responsável pelo projeto, os usos original e atual, sua história, entre outros.

O livro também contém uma tabela relacionando os usos e os programas dos bens culturais selecionados e um índice remissivo com os profissionais citados, dentre os quais estão engenheiros, arquitetos, urbanistas, construtores, paisagistas e artistas plásticos. Há, ainda, uma versão em inglês, no final do livro, com a tradução de todos os textos.

Aproveite a oportunidade para conhecer a cidade e descobrir algumas de suas preciosidades!

Para maiores informações, consultem o site do DPH e da Imprensa Oficial.

Estatuto da cidade: para que serve?

Na semana passada a Agência Carta Maior publicou artigo do prof. Flávio Villaça, da FAU USP, sobre o Estatuto da Cidade. Confira abaixo.

Estatuto da cidade: para que serve?

Grande parte do Estatuto procura definir princípios ou conceitos que já estão, ou deveriam estar, em nossas Constituições federal e estaduais e mesmo nas Leis Orgânicas Municipais. O lugar correto para a definição das atribuições da federação, dos estados e dos municípios é a Constituição Federal. Os princípios e listagens que definem essa distribuição de atribuições e que estão em nossa Carta Magna são para isso suficientes. O artigo é de Flávio Villaça.
Flávio Villaça (*)

É da “tradição” brasileira que qualquer dúvida a respeito de uma lei só possa ser sanada através de outra lei. Também é “tradição” atribuir isso a nossa “cultura”. Essas são formas altamente suspeitas de se passar a ideia de que é bom nos acostumarmos com isso, porque, sendo da “cultura”, seria algo permanente e intrínseco ao nosso povo, portanto, difícil de ser alterado. É uma maneira de deixar a sociedade como está. Um modo de esconder as possibilidades de alteração dessa “tradição” ou dessa “cultura”, ou seja, é uma posição conservadora.

Nesse sentido, há entre nós uma excessiva produção de leis. Não são raras as leis desnecessárias, os dispositivos legais inúteis ou inofensivos, os de cumprimento facultativo e os de cumprimento impossível. Muito do Estatuto da Cidade se enquadra nessas categorias de dispositivos. O Estatuto da Cidade nasceu da necessidade de ser atendido o disposto no artigo 182 da Constituição de 1988, cujo parágrafo 4º diz:

“É facultado ao Poder Municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de […]”. Seguem-se três penalidades.

Há então três necessidades explicitadas no mesmo parágrafo: lei específica, área incluída no Plano Diretor e lei federal. As duas primeiras são da alçada municipal. A terceira, da alçada federal. Treze anos foram necessários para que essa tal lei federal aparecesse. Ela veio a ser o Estatuto da Cidade. Era de se esperar que servisse apenas para regular a exigência de lei federal disposta na Constituição. Mas não; desnecessariamente, ela foi muito além disso.

O Estatuto criou dificuldades para a aplicação do artigo 182 e se tornou uma dessas leis detalhadas que no Brasil aparecem para regular outra lei. Veio para atender a ilusória crença de que uma lei detalhada e supostamente completa evitaria dúvidas, distorções, abusos e seria de compreensão, aplicação e fiscalização mais fáceis.

Ilusão. Em primeiro lugar porque, em geral, esse tipo de lei pretende ser completa e esgotar um tema. Em segundo lugar, porque tal detalhamento envelhece logo e precisa ser substituído. Em terceiro lugar porque este aumenta os espaços para as dúvidas e contestações, em vez de diminui-los. Em oposição ao detalhamento, há os princípios gerais. Estes, ao contrário, correm menor risco de ser incompletos, demoram mais tempo para envelhecer e se tornar obsoletos e, finalmente, são menos vulneráveis a dúvidas e contestações.

Uma lei básica, como o Estatuto da Cidade, quanto mais detalhada pior. Se algo escapa à “lei completa”, aumenta-se as dúvidas. O Estatuto da Cidade não pensou, por exemplo, em definir o que é a “propriedade urbana” à qual se refere o parágrafo 2º do artigo 182. É a propriedade (de imóveis, imagina-se) localizada na zona urbana? Então um restaurante, posto de gasolina ou motel localizado – como há às centenas – em zona rural às margens de uma rodovia não é propriedade urbana? As dúvidas aumentam em vez de diminuir.

O artigo 2 do Estatuto tem nada menos que 16 itens que procuram definir o que se entende por “função social da cidade e da propriedade urbana”. Trata-se de um conceito fundamental e, por isso, deveria ser tratado na Constituição. Essa longa listagem, além de se assemelhar a um mau compêndio de urbanismo, contém diretrizes gerais inúteis, abstratas, acadêmicas e que não guardam qualquer relação com a nossa realidade social. É um bom exemplo do detalhamento falso, perigoso e ilusoriamente necessário.

O detalhamento, em vez de diminuir a insegurança, aumenta-a. O item VI, do art. 2, por exemplo, fala em “ordenação e controle do uso do solo”. O que é ordenação do uso do solo? Não bastaria falar “controle do uso do solo”? Será que esse controle visaria a “desordenação”? Esse item diz que essas “ordenação e controle” destinam-se a evitar, dentre outras coisas, “o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana”. Tema para compêndio de urbanismo. No entanto, não temos notícia de qualquer projeto de parcelamento do solo que preveja seu uso “adequado” em relação à infraestrutura.

Quanto ao envelhecimento da lei, tome-se, por exemplo, a questão ambiental. A Constituição de 1988 foi gestada antes do tema ganhar o destaque que tem hoje. A pouca importância relativa dada ao assunto pela Carta Magna tornou-o obsoleto? Ela não tem princípios gerais que possam abrigá-lo? Se for assim, teremos que ter uma nova Constituição a cada dez anos. A obsolescência da lei detalhada é mais rápida que a dos princípios gerais. A questão ambiental pode ser enquadrada em alguns dos princípios gerais que aparecem na Constituição e em eventuais decisões posteriores dos tribunais. Os princípios gerais demoram para envelhecer. A lei detalhada, não.

Grande parte do Estatuto procura definir princípios ou conceitos que já estão, ou deveriam estar, em nossas Constituições federal e estaduais e mesmo nas Leis Orgânicas Municipais. O lugar correto para a definição das atribuições da federação, dos estados e dos municípios é a Constituição Federal. Os princípios e listagens que definem essa distribuição de atribuições e que estão em nossa Carta Magna são para isso suficientes.

No entanto, o Estatuto da Cidade entra na questão da atribuição dos municípios, através de inúmeros “ poderás”. Os “poderás” que aparecem no Estatuto são diferentes daqueles do parágrafo 4º anteriormente citado. Quando este diz que “[…] é facultado ao poder municipal nos termos da lei federal […]”, ele está criando uma condicionante. A lei, no caso, cria um “poderá”, porém, sob condições (nos termos da lei federal). No Estatuto, o “poderá” ou faculta ou permite o que não é proibido.

Os artigos 32, 34, 35 etc., por exemplo, dizem o que se “poderá” fazer. Artigos inúteis, pois o “poderá”, nesse caso, não tem o sentido de conferir atribuição ou definir condicionantes, mas o de facultar. Quando essa lei diz que “lei municipal poderá”, está querendo dizer “é facultado ao município”, sem para isso criar condições. O município poderá ou não se utilizar dessa faculdade. Trata-se, portanto, de dispositivo que contraria o princípio elementar de que tudo o que não é proibido é permitido.

Uma característica do Estatuto – como de muitas leis no Brasil – é que ele vem de cima para baixo, vem da razão pura para a prática social, do pensamento para a sociedade. Assim, em vez de emanarem da sociedade (virem de baixo para cima), muitas leis pretendem corrigi-la pela implantação do “certo”, vindo de cima para baixo. Muito do Estatuto da Cidade procura dirimir hipotéticas dúvidas ou polêmicas originadas na razão abstrata e não na prática social, originadas nas disputas e contestações levadas aos tribunais.

Abrange, por exemplo, questões como o direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas, transferência do direito de construir e impacto de vizinhança, temas sobre os quais quase não há experiência no Brasil e, portanto, poucas dúvidas emanadas da prática. Poucas contestações na Justiça. Entretanto, pode haver – e na realidade há – inúmeras dúvidas emanadas da razão pura. Apegando-se a estas, o Estatuto é uma lei que vem de cima para baixo.

Apresenta inúmeros dispositivos irreais de cumprimento impossível ou infiscalizável, destinados a serem ignorados pelos que deveriam cumpri-los. Apoia-se fortemente, por exemplo, no desmoralizado e pouco utilizado Plano Diretor – que nesse caso mais dificulta do que ajuda. Se por um lado, por meio do seu artigo 41 o Estatuto da Cidade amplia muito sua inútil obrigatoriedade, definida originalmente naquele mesmo artigo 182, por outro, exige algo que a Constituição já exigia, ou seja, um Plano Diretor para os municípios que pretendessem utilizar instrumentos previstos no parágrafo 4º do artigo 182.

Abundam no Estatuto as exigências de leis específicas ou de áreas delimitadas no Plano Diretor. Com isso, sobrecarrega-se – uma prática incompreensível, para dizer o mínimo – um instrumento que não existe, aprovado por lei, na maioria dos municípios onde é obrigatório. O capítulo III aumenta os requisitos para a elaboração desses planos, bem como a já longa lista dos municípios para os quais eles são obrigatórios. Ou seja, o Estatuto agrava uma exigência já desmoralizada, pois é grande o número de municípios que não têm Plano Diretor aprovado por lei, apesar de obrigados a tê-lo.

Em pelo menos um aspecto o Estatuto da Cidade foi um clamoroso retrocesso. Pôs fim ao caráter social e distributivo contido na experiência paulistana das operações interligadas, subordinando-as (agora sob o nome de Operações Urbanas Consorciadas) aos interesses imobiliários. Isso ocorreu ao se introduzir no texto a exigência contida no parágrafo 1º do item VII do art. 33, que determina que os recursos obtidos através de uma operação “serão aplicados exclusivamente na própria operação urbana consorciada”.

Com isso, os recursos que a experiência paulistana canalizava para moradias de interesse social – em geral, localizadas longe das valorizadas áreas das Operações Urbanas – agora serão destinados a valorizar ainda mais a própria área da operação, ou seja, a área de interesse dos empreendedores imobiliários. Na verdade, as Operações Urbanas constituem um instrumento colocado à disposição do setor imobiliário para ser utilizado segundo suas conveniências. Assim sendo, não é surpreendente que tenham fracassado aquelas Operações sem interesse para o setor, como as Operações Urbanas Centro e Anhangabaú, em São Paulo, e que tenham sido um sucesso (para o capital imobiliário) as Operações Urbanas Águas Espraiadas e Faria Lima, também na capital paulista.

Conclusão: estamos diante de um tipo de lei que mais dificulta do que facilita. Além disso, há no Estatuto inúmeros dispositivos sem sanções para aqueles que não os cumprirem. Exigências que nasceram para ser desmoralizadas, já que nada acontece para quem não as cumprir. Depois dizem que no Brasil há leis que “pegam” e leis que “não pegam”. O fato é que há leis que já nascem para “não pegar”. Lamentavelmente o Estatuto se insere nesse rol.

Para concluir, um comentário a respeito das leis federais que pretendem regular o uso da propriedade imobiliária urbana. Estranhamente, elas levam muitos anos, mais de dez, para ser aprovadas, arrastando-se por nossas casas legislativas. Assim, levaram (e ainda levam) mais de dez anos nessas casas:

– A Lei 6766/79 – conhecida como Lei Lehmann –, que regulou loteamentos. Em 1969 (dez anos antes, portanto) os diretores do Senam (Serviço Nacional dos Municípios) e do Cepam (Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal, do governo do Estado de São Paulo) informavam que o anteprojeto da lei já havia sido enviado “pelo Sr. Ministro do Interior, à consideração do Sr. Presidente da República”. (Seminário sobre o uso do solo e loteamento urbano. São Paulo, 1969).

– O Estatuto da Cidade (de 1988 a 2001)

– O Projeto de Lei no 3057/2000 – a chamada Lei de Responsabilidade Territorial – sobre parcelamento do solo urbano e regulação fundiária “sustentável”(?) vem se arrastando em Brasília há 12 anos.

(*) Professor Emérito e Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Fonte: Agência Carta Maior.

Resíduos sólidos urbanos e seus impactos socioambientais

No mês de março do ano passado, participei do “I Encontro Acadêmico Internacional “Resíduos Sólidos Urbanos e seus impactos socioambientais””, organizado pelo Instituto de Eletrotécnica e Energias (IEE) da USP.

O evento aconteceu meses depois da promulgação da Lei 12.305, que trata da Política Nacional de Resíduos Sólidos, e contou com a participação de especialistas, docentes, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, representantes de órgãos governamentais e acadêmicos de universidades estrangeiras.

Como resultado do encontro, os organizadores produziram o livro “Resíduos sólidos urbanos e seus impactos socioambientais”, que reúne as transcrições das apresentações realizadas pelos participantes, organizadas tematicamente. Minha contribuição está no capítulo 2 da primeira parte da publicação.

Para acessar o pdf do livro, clique na imagem abaixo.

A questão da localização na produção de habitação do programa Minha Casa, Minha Vida no Rio de Janeiro

Compartilho aqui trecho de um artigo do arquiteto urbanista Antônio Augusto Veríssimo sobre a produção de habitação do programa Minha Casa, Minha Vida no Rio de Janeiro, com enfoque na questão da localização. Para ler o artigo completo, clique aqui.

Habitação, Emprego e Mobilidade: subsídios para o debate sobre a localização da HIS na cidade do Rio de Janeiro

Antônio Augusto Veríssimo
Arquiteto Urbanista, Coordenador da Coordenadoria de Planejamento e Projetos da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

O presente artigo foi escrito no início de 2010 como uma reação ao movimento de certos setores empresariais que reivindicavam, junto aos executivo e legislativo municipal, mudanças na legislação com o objetivo de integrar ao perímetro urbano áreas de ocupação restrita por se situarem em  regiões inadequadamente servidas por infraestrutura ou  utilizadas por atividades agrícola na Região Administrativa de Santa Cruz.

Na defesa de seus interesses, estes agentes argumentavam que a liberação dessas áreas para a produção de conjuntos habitacionais, a serem financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida,  viria suprir a necessidade de produção de milhares de unidades necessária para atender o défict habitacional existente  e aquela demanda adicional que seria criada pela atração de novos moradores provocada pela implantação de novas unidades industrias no polo de Santa Cruz.

Os dados coletados e as análises efetuadas neste estudo tiveram por objetivo demonstrar: (i) que já havia um extremo desequilíbrio na distribuição das oportunidades de emprego  e moradia na cidade, com profundos e perniciosos impactos sobre a mobilidade da população; (ii) que a região da AP 5, zona oeste do Rio, onde está inserido o bairro de Santa Cruz, já era uma “região dormitório” fornecedora de mão de obra para outras regiões da cidade e que incentivar a produção habitacional de interesse social nessa região, para além de uma certa medida, somente aprofundaria a segregação sócio espacial da cidade e a formação de mais guetos de pobreza; (iii) que o desafio efetivo a ser superado era o de aproximar as oportunidades para moradia dos trabalhadores das suas oportunidades de emprego, portanto, incentivar a produção habitacional, prioritariamente, na área central (AP 1),  zona norte e nos bairros do subúrbio imediato (AP3).

Cabe reconhecer, no entanto, que no decorrer deste tempo a administração municipal se deu conta dessa tendência de concentração e passou a estabelecer maiores restrições para a localização dos conjuntos  bem como buscar alternativas de melhor localização dos empreendimentos por meio da aquisição direta de terrenos bem localizados para a promoção dessa produção.

Questão urbana ganha espaço semanal na Carta Maior

A Carta Maior acaba de inaugurar em seu portal uma seção semanal para discutir temas relacionados à questão urbana. O espaço está sendo coordenado pela professora Ermínia Maricato, que abre a seção com o artigo “Cidades-Urgente: colocar a questão urbana na agenda nacional”, que reproduzo abaixo.

Cidades-Urgente: colocar a questão urbana na agenda nacional

Enchentes, desmoronamentos com mortes, congestionamentos, crescimento exponencial da população moradora de favelas (ininterruptamente nos últimos 30 anos), aumento da segregação e da dispersão urbana, desmatamentos, ocupação de dunas, mangues, APPs (Áreas de Proteção Permanente) APMs (Áreas de Proteção dos Mananciais), poluição do ar, das praias, córregos, rios, lagos e mananciais de água, impermeabilização do solo (tamponamento de córregos e abertura de avenidas em fundo de vales), ilhas de calor… e mais ainda: aumento da violência, do crime organizado em torno do consumo de drogas, do stress, da depressão, do individualismo, da competição. As cidades fornecem destaques diários para a mídia escrita, falada e televisionada. A questão urbana ocupa espaço prioritário na agenda política nacional. Certo?

Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional.

As conquistas institucionais nos anos recentes não foram poucas: promulgação do Estatuto das Cidades, aprovação dos marcos regulatórios do saneamento, dos resíduos sólidos, da mobilidade urbana, aprovação de uma enxurrada de Planos Diretores, criação do Ministério das Cidades, retomada das políticas de habitação e saneamento após décadas de ausência do Estado. No entanto, a crise urbana está mais aguda do nunca. Por que?

Numa sociedade persistentemente desigual as cidades não poderiam expressar o contrário. Mas há algo nas cidades que é central e ignorado. Trata-se do poder sobre o “chão”, ou seja, o poder sobre como se dá a produção e a apropriação do espaço físico. De todas as mazelas relacionadas acima, a primeira parte tem a ver com o “espaço urbano” ou com as formas de uso e ocupação do solo, essa evidência que nos cerca no cotidiano das cidades, mas que está oculta para Estado e sociedade. Assim como no campo, a terra urbana (pedaço de cidade) é o nó na sociedade patrimonialista.

A importância do espaço urbano como ativo econômico e financeiro escapa à percepção da maior parte dos urbanistas, engenheiros e economistas no Brasil (exceto dos que trabalham para o capital imobiliário). O valor da terra e dos imóveis varia de acordo com as leis ou investimentos realizados nas proximidades. Poderosos lobbies atuam sobre os orçamentos públicos dirigindo os investimentos e os destinos das cidades. Trata-se do que os americanos, Logan e Molotch, chamaram de “máquina do crescimento”: a reunião de interessados na obtenção de rendas, lucros, juros e… recursos para o financiamento de campanhas, acrescentamos nós. O planejamento urbano é o fetiche que encobre o verdadeiro negócio. É comum que um conjunto de obras contrarie o Plano Diretor. O mais frequente é vermos obras sem planos e planos sem obras.

O governo federal retomou as políticas de habitação e saneamento e se propõe a retomar a política de mobilidade urbana após décadas de ausência promovida pelo ideário neoliberal. Mas a retomada desses investimentos sem a reforma fundiária e imobiliária urbana (de competência municipal) traz consequências cruéis como a explosão dos preços dos imóveis. Durante os 50 anos em que urbanistas e movimentos sociais defenderam a Reforma Urbana, a exclusão territorial foi foi reinventada pelos que lucram com a cidade como ocorreu durante o período do BNH.

Ao contrário de um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente equilibrado, um dinâmico crescimento imobiliário reproduz características históricas de desigualdade e predação ambiental que, somadas ao grande número de carros que entopem a cada dia os sistemas viários, apontam para um rumo de consequências trágicas. Este tema deveria ocupar um lugar central na Rio +20.

Pesquisas recentes da USP ampliaram o conhecimento sobre o número de patologias causadas, na RM de São Paulo, pela poluição do ar, do som, ou pelos congestionamentos de tráfego: doenças cardíacas, transtornos mentais, ansiedade, depressão, estresse. O tempo médio das viagens diárias está próximo das 3 horas, sendo que para um terço da população passa disso. 30% das famílias são chefiadas por mulheres que após a jornada de trabalho chegam em casa e têm que dar conta dos filhos e do serviço doméstico. Tanto sofrimento exigiria repensar a prioridade dada ao automóvel em detrimento do transporte coletivo. Deve haver outras formas de criar empregos e aumentar o PIB sem gerar tal irracionalidade (do ponto de vista social e ambiental) urbana.

Os megaeventos (Copa, Olimpíadas) acrescentam alguns graus nessa febre. Por isso, os despejos de comunidades pobres que estão (e sempre estão) no caminho das grandes obras está ganhando dimensões não conhecidas até agora.

Embora a agenda social tenha mudado nos últimos 9 anos favorecendo ex-indigentes e miseráveis (bolsa família, pró-uni, crédito consignado, aumento do s.m.), embora as obras urbanas se multipliquem a partir do PAC e do MCMV, ambos por iniciativa do governo federal, as cidades pioram a cada dia.. Distribuição de renda não basta para termos cidades mais justas, menos ainda a ampliação do consumo pelo aumento do acesso ao crédito. É preciso “distribuir cidade”, ou seja, distribuir terra urbanizada, melhores localizações urbanas que implicam melhores oportunidades. Enfim, é preciso entender a especificidade das cidades onde moram mais de 80% da população do país e representam algumas das maiores metrópoles do mundo.

A Carta Maior ofereceu um espaço semanal para dar à questão urbana o lugar que lhe deveria caber na agenda política nacional. Na próxima semana leremos alguns dos mais informados e experientes profissionais e estudiosos de políticas urbanas no Brasil, que, além dessas virtudes, se classificam como ativistas de direitos sociais e justiça urbana.

Para seguir a trilha do desenvolvimento urbano, e não apenas crescimento urbano, revertendo o rumo atual, há conhecimento técnico, há propostas, há planos, há leis e até mesmo experiência profissional acumulada no Brasil. Ainda que no espaço de uma sociedade do capitalismo periférico ou “emergente”, como quer o main stream, é possível diminuir um pouco as selvagens relações sociais, econômicas e ambientais que vivemos nas cidades. Antes de apresentar propostas, que são rapidamente repetidas para serem também rapidamente esquecidas, é preciso mostrar porque a formulação de propostas, planos e leis não bastam. A questão é essencialmente política. É preciso mostrar a lógica do caos aparente, ou seja, a lógica dos que ganham com tanto sofrimento e suposta irracionalidade. As próximas eleições se referem ao poder local, ao qual cabe a competência sobre o desenvolvimento urbano de acordo com a Constituição Federal. Esperamos colaborar para diminuir o analfabetismo urbanístico e cobrar dos candidatos a prefeitos e vereadores maior conhecimento e compromisso com a justiça urbana.

(*) Erminia Maricato, arquiteta-urbanista, professora titular aposentada da FAU USP e professora da UNICAMP, é responsável por esta seção.

“Hoje, nosso slogan deveria ser ‘São Paulo não pode morrer'”

Sábado passado, o Correio da Cidadania publicou artigo do professor João Whitaker, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, sobre a cidade de São Paulo. Confiram abaixo.

São Paulo vai morrer

As cidades também morrem. Há meio século, o lema de São Paulo era “a cidade não pode parar”. Hoje, nosso slogan deveria ser “São Paulo não pode morrer”. Porém, parece que fazemos todo o possível para apressar uma morte anunciada. Pior, o que acontece em São Paulo tornou-se infelizmente um modelo de urbanismo que se reproduz país afora. A seguir esse padrão de urbanização, em médio prazo estaremos frente a um verdadeiro genocídio das cidades brasileiras.

Enquanto muitas cidades no mundo apostam no fim do automóvel, por seu impacto ambiental baseado no individualismo, e reinvestem no transporte público, mais racional e menos impactante, São Paulo continua a promover o privilégio exclusivo dos carros. Ao fazer novas faixas para engarrafar mais gente na Marginal Tietê, com um dinheiro que daria para dez quilômetros de metrô, beneficia os 30% que viajam de automóvel todo dia, enquanto os outros 70% se apertam em ônibus, trens e metrôs superlotados. Quando não optam por andar a pé ou de bicicleta, e freqüentemente demais morrem atropelados. Uma cidade não pode permitir isso, e nem que cerca de três motociclistas morram por dia porque ela não consegue gerenciar um sistema que recebe diariamente 800 novos carros.

Não tem como sobreviver uma cidade que gasta milhões em túneis e pontes, em muitos dos quais, pasmem, os ônibus são proibidos. E que faz desaparecer seus rios e suas árvores, devorados pelas avenidas expressas. Nenhuma economia no mundo pode pretender sobreviver deixando que a maioria de seus trabalhadores perca uma meia jornada por dia – além do duro dia de trabalho – amontoada nos precários meios de transporte. Mas em São Paulo tudo se pode, inclusive levar cerca de quatro horas na ida e volta ao trabalho, partindo-se da periferia, em horas de pico.

Uma cidade que permite o avanço sem freios do mercado imobiliário (agora, sabe-se, com a participação ativa de funcionários da própria prefeitura), que desfigura bairros inteiros para fazer no lugar de casas pacatas prédios que fazem subir os preços a patamares estratosféricos e assim se oferecem apenas aos endinheirados; prédios que impermeabilizam o solo com suas garagens e aumentam o colapso do sistema hídrico urbano, que chegam a oferecer dez ou mais vagas por apartamento e alimentam o consumo exacerbado do automóvel; que propõem suítes em número desnecessário, o que só aumenta o consumo da água; uma cidade assim está permanentemente se envenenando. Condomínios que se tornaram fortalezas, que se isolam com guaritas e muros eletrificados e matam assim a rua, o sol, o vento, o ambiente, a vizinhança e o convívio social, para alimentar uma falsa sensação de segurança.

Enquanto as grandes cidades do mundo mantêm os shoppings à distância, São Paulo permite que se levante um a cada esquina. Até sua companhia de metrô achou por bem fazer shoppings, em vez de fazer o que deveria. O Shopping Center, em que pese a sempre usada justificativa da criação de empregos, colapsa ainda mais o trânsito, mata o comércio de bairro e aniquila a vitalidade das ruas.

Uma cidade que subordina seu planejamento urbano a decisões movidas pelo dinheiro, em nome do discutível lucro de grandes eventos, como corridas de carro ou a Copa do Mundo, delega as decisões de investimentos urbanos não a quem elegemos, mas a presidentes de clubes, de entidades esportivas internacionais ou ao mercado imobiliário.

Esta é uma cidade onde há tempos não se discute mais democraticamente seu planejamento, impondo-se a toque de caixa políticas caça-níqueis ou populistas, com forte caráter segregador. Uma cidade em que endinheirados ainda podem exigir que não se faça metrô nos seus bairros, em que tecnocratas podem decidir, sem que se saiba o porquê, que o mesmo metrô não deve parar na Cidade Universitária, mesmo que seja uma das maiores do continente.

Mas, acima de tudo, uma cidade que acha normal expulsar seus pobres para sempre mais longe, relegar quase metade de sua população, ou cerca de 4 milhões de pessoas, a uma vida precária e insalubre em favelas, loteamentos clandestinos e cortiços, quando não na rua; uma cidade que dá à problemática da habitação pouca ou nenhuma importância, que não prevê enfrentar tal questão com a prioridade e a escala que ela merece, esta cidade caminha para sua implosão, se é que ela já não começou.

Nenhuma comunidade, nenhuma empresa, nenhum bairro, nenhum comércio, nenhuma escola, nenhuma universidade, nem uma família, ninguém pode sobreviver com dignidade quando todos os parâmetros de uma urbanização minimamente justa, democrática, eficiente e sustentável foram deixados para trás. E que se entenda por “sustentável” menos os prédios “ecológicos” e mais nossa capacidade de garantir para nossos filhos e netos cidades em que todos – ricos e pobres – possam nela viver. Se nossos governantes, de qualquer partido que seja, não atentarem para isso, o que significa enfrentar interesses poderosos, a cidade de São Paulo talvez já possa agendar o dia se deu funeral. Para o azar dos que dela não puderem fugir.

João Sette Whitaker Ferreira, arquiteto-urbanista e economista, é professor da Faculdade de Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie.