Prioridades nos gastos públicos em tempos de crise

Diariamente somos bombardeados com notícias de que a crise econômica, entre outros efeitos, diminuiu drasticamente a arrecadação dos governos, implicando em cortes nos gastos públicos.

As crises recentes enfrentadas em São Paulo –como os graves problemas das escolas públicas estaduais, a greve na USP (Universidade de São Paulo), as panes quase diárias nos sistemas de trens na metrópole– estariam, em tese, associadas a estas necessidades de corte e às difíceis escolhas de prioridades neste contexto.

Esta semana refleti sobre esse tema quando participava de uma banca de doutorado sobre o Metrô e suas opções de investimento ao longo da história. A discussão girava em torno dos critérios das escolhas realizadas para definição das linhas e os desafios para a implementação de um sistema que, até hoje, embora se denomine “Metrô” (abreviação de metropolitano) e esteja sob o controle do governo do Estado, circula apenas na capital.

Comentávamos na banca sobre as idas e vindas de uma proposta de ligação do sistema com Guarulhos (Grande SP), a segunda cidade mais populosa do Estado, e as dificuldades do sistema da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) de ganhar maior qualidade em todas as regiões da metrópole que atende. Foi quando um dos participantes da banca chamou a atenção para o fato de que o Orçamento do Estado de São Paulo para a área de transportes vem caindo, enquanto o de uma área como a segurança pública vem aumentando ano a ano.

Resolvi, então, examinar os números oficiais do Orçamento do Estado para 2016. Primeira surpresa: a previsão de receita do governo estadual para este ano –de mais de R$ 207 bilhões–, proposta no final de 2015, quando já estava claro que enfrentamos uma crise econômica, é maior que a dos anos anteriores. Ou seja, os recursos estaduais não exatamente despencaram, embora certamente não tenham crescido, considerando a inflação e eventuais erros de previsão.

Examinando então os gastos previstos –que é onde podemos identificar as prioridades–, de fato, o orçamento da segurança pública, com quase R$ 25 bilhões previstos para 2016, cresce sem parar, enquanto outras áreas têm previsão de receitas reduzidas em relação aos anos anteriores.

A maior parte do orçamento da segurança pública é destinada ao policiamento (cerca de R$ 17 bilhões), mas chama a atenção o fato de que o volume de recursos investido somente no sistema penitenciário (R$ 4,3 bilhões) é maior do que o de áreas como cultura (R$ 822,5 milhões), desenvolvimento social (R$ 928,5 milhões), habitação (R$ 1,6 bilhão) e saneamento e recursos hídricos (R$ 1,8 bilhão). O orçamento da segurança pública é muito próximo ao da educação e maior que o de uma área fundamental como a saúde, que conta com R$ 21,3 bilhões de acordo com o orçamento de 2016.

Na área de transportes, nota-se que os investimentos no Metrô sofreram uma queda de mais de 20%, considerando o que foi realizado em 2015 e o que está previsto para 2016 (de R$ 3,9 bilhões para R$ 3,1 bilhões). Também os investimentos na CPTM sofreram cortes: R$ de 1,77 bilhão para R$ 1,63 bilhão.

Analisando esses dados, que estão disponíveis no site da Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão, a pergunta que não quer calar é: por que os gastos em policiamento e no sistema penitenciário são a grande prioridade do governo Geraldo Alckmin (PSDB)? Isso reflete uma lógica que prioriza a repressão e punição, minimizando a importância de investimentos em áreas fundamentais para o desenvolvimento humano, como saúde, educação, habitação e cultura, cujos efeitos na segurança certamente são muito maiores que o da repressão e o do encarceramento.

A crise das escolas públicas, onde faltam condições básicas para um ensino-aprendizagem de qualidade, e das universidades públicas estaduais, onde muitos funcionários, estudantes e professores estão em greve; o lentíssimo ritmo de expansão da rede de transporte coletivo de massas, que faz com que os sistemas do Metrô e da CPTM operem com muitos problemas de superlotação e desconforto para os usuários, sem contar o alto custo da tarifa; a grave crise habitacional que atinge especialmente a população mais pobre são apenas alguns exemplos que mostram os efeitos das escolhas de prioridade do governo. Mais do que nunca, em momentos de crise, é necessário discutirmos abertamente a priorização dos gastos públicos.

*Publicado originalmente no site da Folha.

 

Eleições municipais, incógnitas e desafios

Daqui a quatro meses teremos eleições municipais no Brasil. Mas como os dramas e as incertezas do cenário político nacional têm ocupado 100% do debate público, as questões locais até agora não ganharam espaço. O que podemos esperar, então, dessas eleições?

Se nos pautarmos pelas narrativas presentes nas ações jurídicas e midiáticas, assim como no discurso das novas/velhas lideranças políticas envolvidas no processo de impedimento da presidente afastada Dilma Rousseff, certamente os candidatos aos governos municipais prometerão “honestidade” e “responsabilidade em relação aos gastos públicos”. Entretanto, para que conquistem os eleitores, estas promessas enfrentam dois problemas.

O primeiro é que, na atual conjuntura –na qual muitos dos que clamam contra a corrupção aparecem em denúncias que os envolvem em escândalos–, não está mais tão fácil convencer os eleitores da sinceridade dessas promessas. O segundo é talvez a grande incógnita desta eleição municipal: as pautas e demandas em torno do direito à cidade que emergiram nos últimos anos e que se encontraram nas ruas em 2013 serão capazes de penetrar no debate eleitoral? Refiro-me às mobilizações em torno do transporte coletivo de qualidade e acessível, do acesso à água e a outros bens comuns, como as escolas e os espaços públicos da cidade.

Parece-me que no centro da questão –e destas lutas– está o tema do processo decisório sobre as políticas públicas. As tradicionais formas de representação política estão claramente em crise… E não apenas no Brasil, mas em vários lugares do mundo, como na Espanha, onde estive recentemente. Ali emergiram, a partir de movimentos como o 15M e o Indignados, novas agremiações políticas que, no processo de disputa das eleições locais, colocaram no centro de seus programas a proposta do exercício da democracia direta, experimentado por estes novos grupos em seus espaços de organização e mobilização: as ocupações.

Em nosso país, 40 anos atrás, quando o sistema político que sustentava a ditadura militar estava em crise, um importante componente da luta pela redemocratização foi a aposta na “democracia direta local”. Assim, em várias cidades, como, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e Diadema, ao longo dos anos 1990 ocorreram experimentações importantes de democratização dos processos decisórios. Orçamentos participativos, conselhos e conferências, com a participação direta de cidadãos eleitos em processos independentes e paralelos ao processo de representação eleitoral mediado por partidos políticos, eram apostas que buscavam promover na lógica fechada da política como negócio um giro em direção à democracia direta.

Embora tenham trazido inovações e experimentações, infelizmente, esses processos não foram capazes de romper a lógica predominante no modelo de tomada de decisões, tendo sido inclusive muitas vezes engolidos por ela.

Hoje, entretanto, estamos vendo surgir no Brasil, entre os chamados novos movimentos sociais pelo direito à cidade, um novo ciclo de experimentação com relação às formas de tomada de decisão, que incluem processos mais horizontais e diretos, com ampla atuação presencial, mas também por meio de redes sociais e ferramentas tecnopolíticas, e que hoje não apenas reivindicam mais espaço nas decisões, mas também instituem práticas de autogestão nos espaços que ocupam.

Em Madrid, Barcelona e outras cidades da Espanha, um dos eixos centrais dos governos municipais recém-eleitos a partir de organizações desse tipo, em um movimento autodenominado “municipalismo”, é justamente a abertura de espaços para estratégias e formas de participação que incorporem a potência dessas novas organizações e, sobretudo, suas práticas.

Acredito que candidaturas para as prefeituras de nossas cidades que queiram de fato construir alternativas que convençam os cidadãos de que seu discurso não se trata de blá blá blá terão que, desde já, na campanha, entrar em sintonia com esta nova noção de construção da cidade como bem comum, com a qual o mundo da política terá que em algum momento dialogar.

*Publicado originalmente no site da Folha.

Uma luz no fim do túnel para imóveis vazios e degradados

Quem percorre nossas grandes cidades percebe a enorme quantidade de prédios vazios, abandonados ou subutilizados, degradando a paisagem e as áreas onde estão localizados. Parte desses imóveis tem hoje imbróglios jurídicos e fundiários que dificultam enormemente seu aproveitamento. Dentre estes –pasmem!–, vários são imóveis públicos, que em tese poderiam ser aproveitados para abrigar equipamentos públicos e moradia social sem que as prefeituras e governos tivessem que passar pela via-crúcis das desapropriações.

Infelizmente, embora pareça óbvio que a utilização de prédios públicos, especialmente aqueles melhor localizados, é o caminho mais lógico e curto para obter bons imóveis para implantar equipamentos e serviços necessários para a cidade, ninguém imagina a verdadeira corrida de obstáculos que um governo tem que percorrer para poder, finalmente, usar este patrimônio com projetos de interesse público e social.

Um exemplo disso são os prédios que pertencem ao INSS: a previdência social tem um enorme patrimônio de imóveis vazios e subutilizados em todo o país, fruto sobretudo de pagamentos de dívidas. A existência desses imóveis significa inclusive um custo permanente com manutenção e pagamento de impostos, sem gerar nenhum benefício para o fundo previdenciário e os aposentados.

No mês passado, a cidade de São Paulo deu um importante passo para resolver essa questão. 28 imóveis do INSS estão sendo transferidos para a prefeitura, como forma de pagamento de dívidas do órgão com o município. Quatro dentre estes já tiveram a transferência concluída: um deles é a Casa Amarela, na avenida Consolação, que já tem funcionado como ocupação cultural e terá esse uso consolidado. Outros três, depois de reformados, serão transformados em habitação popular, em projetos que contarão com os financiamentos habitacionais do governo.

Agora que foi concretizada, essa operação pode parecer simples. Mas para que fosse viável hoje, um longo percurso precisou ser percorrido até aqui. Há 12 anos, o Ministério das Cidades iniciou um trabalho de levantamento dos imóveis do INSS localizados em áreas centrais, em cidades de todo o país, de realização de vistoria destes imóveis em conjunto com prefeituras e com a Caixa, de assinatura de convênios entre o Ministério, o INSS e a Caixa, de encaminhamento e aprovação de mudanças legais que precisaram ser feitas com relação às normas que regem a gestão dos bens da previdência, entre inúmeras outras ações que buscaram equacionar a questão.

No âmbito da Prefeitura de São Paulo também não foi nada fácil –para receber estes imóveis como dação em pagamento por parte do INSS, muito precisou ser feito, incluindo mudanças legais. Em janeiro do ano passado, por exemplo, a Câmara Municipal aprovou lei que autoriza o Instituto de Previdência Municipal (IPREM) a receber imóveis do INSS para quitar dívidas previdenciárias, podendo a prefeitura destiná-los a programas de habitação popular, educação, saúde, cultura e direitos humanos.

Mas até estes imóveis virarem moradia de fato, certamente a prefeitura ainda enfrentará muitos obstáculos. Sei que muitas nem começam esse processo porque sabem o tamanho das dificuldades pelo caminho. Deixando de lado a visão imediatista, o município de São Paulo acertadamente correu atrás.

É importante lembrar que o INSS tem dívidas com institutos de previdência em vários municípios e estados. Isso significa que esse modelo pode e deve ser replicado em todo o país. Sim, é triste ter que passar por toda essa gincana para desfazer o emaranhado burocrático e viabilizar a utilização desses imóveis resguardando o interesse público. Mas o exemplo de São Paulo mostra que, ao contrário do que prega o senso comum, não é buscando o mais fácil e rápido que faremos o melhor. Em alguma hora temos que enfrentar aquilo que parece muito difícil e impossível. E dá certo!

*Texto publicado originalmente no site da Folha.

Licenciamento ambiental: ruim com ele, muito pior sem ele

A prova concreta de que os processos de licenciamento ambiental para grandes obras são muito frágeis no Brasil é o caso da barragem do Fundão, em Mariana (MG), cujo rompimento, no final do ano passado, nos levou ao maior desastre ambiental da história do nosso país.

E o que poderíamos esperar do poder público depois desse desastre? Deixar tudo como está, obviamente, não é a saída. Hoje, os processos de licenciamento ambiental são transgredidos por todos os lados.

As empresas, responsáveis por contratar os estudos de impacto ambiental (EIA), muitas vezes pressionam os técnicos responsáveis por realizá-los e chegam até mesmo a alterar o conteúdo dos relatórios.

Do outro lado, os próprios governos pressionam para que os relatórios sejam aprovados, uma vez que já decidiram, muito antes da elaboração dos estudos, que vão realizar as obras de qualquer jeito.

Ou seja, os processos de licenciamento ambiental hoje não servem para decidir se obras ou empreendimentos serão feitos a partir das considerações sobre seus impactos socioambientais, nem sequer para definir diretrizes básicas para os projetos.

Como não existe independência na elaboração dos estudos de impacto, estes terminam servindo tão somente para apontar quais problemas podem ser mitigados e que compensações devem ser feitas, muitas delas às vezes sem nenhuma relação com os impactos do empreendimento.

Ainda assim, a regra trifásica –EIA, Licença de Implantação e Licença de Operação–, que em tese deveria servir para verificar se as medidas compensatórias e mitigadoras estão de fato sendo implantadas, é em diversos casos uma ficção: muitos empreendimentos já se encontram em plena operação antes de estas licenças serem expedidas.

Assim, diante da forma como vem sendo implantado esse modelo, no mínimo esperam-se mudanças no sentido de aperfeiçoar os processos de licenciamento, melhorando a qualidade dos relatórios de impacto, ampliando a participação da sociedade desde a concepção dos projetos, promovendo a articulação entre os diversos órgãos públicos envolvidos e sua capacidade de fiscalização.

É assustador, porém, ver que as discussões em curso hoje, ao menos no âmbito do legislativo federal, vão completamente na contramão disso tudo.

Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 65/2012, do senador Arcir Gurcacz (PDT-RO), que inclui um parágrafo a mais no artigo 225 da Constituição Federal, determinando que basta a apresentação de um estudo prévio de impacto para que a execução da obra seja autorizada, sem que esta possa posteriormente ser suspensa ou cancelada.Na prática, essa PEC simplesmente anula o licenciamento ambiental.

O Congresso também discute hoje o projeto de lei nº 654/2015, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), apresentado no âmbito da chamada “Agenda Brasil”, pacote proposto pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) para enfrentar a crise econômica.

Esse PL propõe simplificar o licenciamento ambiental para obras de infraestrutura consideradas estratégicas. Isso significa que justamente as obras mais complexas e de maior impacto socioambiental, como usinas, represas, barragens, estradas etc, ficariam praticamente livres do licenciamento.

Segundo levantamento do Instituto Socioambiental, existem hoje no Congresso Nacional 34 propostas de alteração no licenciamento. Infelizmente, a maior parte dessas iniciativas tem como objetivo e justificativa simplesmente encurtar os prazos.

Ou seja, o único problema que deputados e senadores enxergam é a demora na aprovação dos licenciamentos. Não tocam em nenhuma das questões que de fato precisam ser enfrentadas. Pior, propõem destruir o pouco que temos hoje, que foi duramente construído ao longo de muitos anos, e isso inclui o aprendizado das próprias empresas para lidar com questões socioambientais, que não pode ser desprezado.

Assim, fico me perguntando por que, mesmo com casos tão recentes como o desastre de Mariana, que mostram que o licenciamento ambiental precisa ser urgentemente aperfeiçoado, surgem nesse momento propostas que representam tamanho retrocesso?

Não consigo não pensar no momento de crise política e econômica que vivemos, com um processo de impeachment em curso e investigações de corrupção. E aí percebo que estamos diante de um completo esvaziamento da ideia do espaço da política como aquilo que cuida do bem comum. E então me vem à lembrança o discurso personalista e messiânico de boa parte dos deputados na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara Federal.

O que importa, para estes, é fazer obra rápido, a tempo de inaugurar com o nome da mãe, agradecer a Deus em público, filmar e tirar foto para postar nas redes sociais. Aliás, permitir a inauguração de obras no curso de um mandato aparece como justificativa em um dos projetos de simplificação do licenciamento em tramitação. Não vem ao caso saber se precisamos ou não dessa obra e qual seu efeito na transformação do território e na vida das pessoas.

Apesar de todos os problemas, o licenciamento ambiental que temos hoje ainda é a única instância no processo de decisão e implantação de grandes transformações do nosso território que exige que as populações atingidas sejam de algum modo informadas e que elabora e publiciza um mínimo de informações sobre as obras e seus impactos.

O que está sendo proposto desmonta o pouco que temos de mecanismos de controle, afastando ainda mais as possibilidades de enfrentarmos os reais problemas socioambientais de nosso país.

*Coluna publicada originalmente no site da Folha.

O dia seguinte

As únicas certezas que podemos extrair do resultado da votação sobre a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, no último domingo (17), são a perda da base política do governo entre os deputados federais e o desejo de mudança expresso pela sociedade.

No mais, estamos longe de um desfecho da crise que atravessamos, já que a recessão econômica e a debacle institucional são temas ainda totalmente em aberto no país.

De fato, há muitas incógnitas pela frente: se a presidente Dilma Rousseff conseguirá ou não barrar o processo de impeachment no Senado ou no STF; se as denúncias que pesam sobre o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, serão ou não levadas adiante; se o vice-presidente Michel Temer será ou não afastado, entre outras. Mas, apesar de tomarem conta dos noticiários e do espetáculo midiático da crise, esses não são os elementos mais relevantes para o seu desfecho.

Obviamente, há um recado claro de desejo de mudança, ecoado por diferentes setores da sociedade. Para uma parte, majoritária até domingo passado pelo menos –mas longe de ser consensual–, esse desejo se converteu em ódio contra Dilma/Lula e o PT. Para estes, o impeachment de Dilma resolveria os problemas e o país voltaria a crescer. Para essa mesma parcela, o problema seria a “ladroagem” que, ao fazer escoar dinheiro público, teria afundado o país. Mas, insisto, trocar de governo e de partido não será solução para a crise que enfrentamos.

A exposição pública do Congresso nos últimos dias teve, no mínimo, um profundo sentido didático: os brasileiros puderam ver que grande parte dos deputados discursava apenas para marcar presença, sem qualquer tipo de conteúdo político, e que deputados sobre quem pesam denúncias de corrupção bradavam, justamente… contra a corrupção.

Ora, dos nossos 513 representantes na casa, 299 têm ocorrências judiciais, 76 já foram condenados e 57 são réus no Supremo, inclusive o que presidiu a sessão. Por outro lado, o vaivém de votos até o último momento revelou de forma clara que o que predomina neste modelo de política não é a disputa por diferentes projetos de sociedade e país –com exceções importantes, não podemos esquecer!–, mas sim a adesão pura e simples a coalizões com mais ou menos probabilidade de controlar o Estado para, assim, poder participar do “negócio” da política.

O que vimos, porém, foi apenas uma amostra, pois o que ocorre no Congresso Nacional não difere muito das dinâmicas presentes nas assembleias legislativas e câmaras municipais Brasil afora. E assim como em nível federal os presidentes não conseguem governar sem constituir maiorias no parlamento, prefeitos e governadores também enfrentam essa mesma questão, dependendo cada vez mais da composição com o mundo político-eleitoral estruturado pela corrupção e pelo fisiologismo (e nos seus entrelaçamentos).

Tomando o exemplo dos governos locais, podemos dizer que por trás de cada representante eleito que se beneficia de propinas e outras ações ilícitas, há um empresário dono de empreiteira, de concessionária de ônibus ou de lixo, entre outros… E a consequência disso não é apenas que uma parte do dinheiro público se esvai –para as offshores e contas secretas de políticos e empresários no exterior–, mas também que a organização e construção de nossas cidades fica submetida à lógica deste negócio econômico-político.

Nesse sentido, para enfrentar a crise deveríamos começar olhando para o conjunto de atores que hoje dão as cartas na gestão das cidades, a fim de entender claramente quem são e como interferem nas decisões relacionadas às políticas públicas. Mais do que isso, é necessário ver como esses atores se posicionam hoje nas relações entre Estado e sociedade, e dentro do próprio Estado.

Não é mera coincidência que nos “Panama Papers” recentemente divulgados constem não apenas nomes como o de Eduardo Cunha e de outros políticos, mas também de concessionários do transporte público e de outros setores envolvidos com prestação de serviços públicos e construção de obras em nossas cidades.

O resultado –insisto– não é apenas o desvio de dinheiro, mas políticas públicas que garantem lucros polpudos para certos segmentos econômicos, sem atender às demandas da população com equidade, qualidade e eficiência.

Como já afirmei, está claro que existe um desejo de mudança na sociedade. Mas para pensar o tema da mudança, independente do desfecho político-partidário das questões que hoje aparecem como incógnitas, é importante ir mais fundo, revelar de forma clara as articulações entre poder público e setor privado –bem como seus efeitos–, e assim poder discutir o que de fato interessa: nossos projetos de cidade, de território, de país.

Falar genericamente de crescimento do emprego e da renda e do acesso a serviços públicos todos podem e certamente falarão em seus palanques. Mas, infelizmente, parte muito significativa de quem hoje adota, no campo político-eleitoral, o discurso da mudança não tem o menor interesse em que esta ocorra de fato.

*Publicado originalmente no site da Folha.

Lixo, tragédia e oportunidades

Podemos definir como trágica a situação atual do lixo no Brasil. Hoje, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, apenas pouco mais da metade de todo resíduo sólido produzido no país –58%– tem destinação adequada, ou seja, o que não é separado para reciclagem vai para aterros sanitários. Isso quer dizer que em muitas cidades o destino do lixo ainda são os lixões, depósitos completamente insalubres, prejudiciais ao meio ambiente e à saúde das pessoas que ali atuam de forma precária, sem qualquer proteção.

Desde 2010, porém, temos uma Política Nacional de Resíduos Sólidos que diz exatamente de que forma os diversos tipos de lixo devem ser coletados e qual destino deve ser dado a cada um. A política inclui desde a ideia da logística reversa para produtos especialmente poluentes, como equipamentos eletrônicos, baterias e lâmpadas, responsabilizando a cadeia produtiva pelo manejo do destino final dos itens descartados, até as políticas públicas necessárias para universalizar a coleta e a destinação final adequada do lixo.

A lei que instituiu a política também determinou que, até agosto de 2014, todos os municípios deveriam eliminar os lixões, implementando alternativas adequadas, como os aterros sanitários e a coleta seletiva. Entretanto, na data estabelecida muitos ainda não tinham conseguido atingir essa meta e, com isso, o Congresso Nacional passou a discutir a possibilidade de prorrogação do prazo, introduzindo datas escalonadas de acordo com o tamanho do município, ate 2020. Essa discussão ainda não foi concluída.

A gestão do lixo é complexa e envolve uma multiplicidade de atores e questões, de natureza tanto ambiental como social, passando pela responsabilidade individual de cada um em diminuir a produção do próprio lixo, bem como pelo desenvolvimento de alternativas de reaproveitamento e modos de coleta e reciclagem.

Sabemos que uma parte da população mais pobre e vulnerável do país vive do lixo. São catadores que trabalham nos lixões e nas ruas, coletando itens que possam gerar alguma renda. São estes, na verdade, os primeiros recicladores do país –e, em algumas cidades, os principais–, trabalhando quase sempre em condições precaríssimas, em situação de clandestinidade em relação às políticas públicas.

Mas em várias cidades do país a coleta seletiva tem avançado com a participação direta dos catadores, que, organizados em cooperativas, participam direta e oficialmente do sistema de coleta seletiva e reciclagem do lixo.

Em São Paulo, nos últimos anos, a Prefeitura tem empreendido um grande esforço para ampliar a coleta seletiva e a capacidade de reciclagem. Hoje, 85 dos 96 distritos da cidade são atendidos pelo Programa de Coleta Seletiva, cobrindo 53% do território municipal. Em metade dos distritos atendidos o serviço é universalizado, ou seja, está disponível em todas a ruas.

Das 12 mil toneladas de lixo coletadas nas casas das pessoas diariamente por esse sistema, 2,5% é reciclado –2% pelas concessionárias de lixo e 0,5% por 31 cooperativas de catadores. Nos próximos três meses, com a entrada de novas cooperativas no sistema, o trabalho será ampliado, atingindo 70% do território municipal.

A reciclagem em São Paulo mais que dobrou nos últimos anos com as iniciativas implementadas – além da incoporação das cooperativas, duas centrais de triagem mecanizadas foram construídas -, mas ainda é muito baixa. Para uma cidade que, como outras do país, já eliminou os lixões há tempos, os desafios ainda são imensos para avançar e superar a precariedade na coleta e, especialmente, na destinação do lixo.

*Publicado originalmente no site da Folha

Para além do espetáculo da crise

Diante da grave crise política, econômica e institucional que vive o país, dirijo-me aos que, como eu, estão preocupados com essa situação e desejam ver uma saída o mais rápido possível.

Aos que, como eu, se entusiasmaram com a possibilidade de imaginar o tal país do futuro chegando, com mais oportunidades e menos desigualdade, com uma democracia na qual todos pudessem ter direito a ter direitos.

Também me dirijo aos que, como eu, se decepcionaram ao descobrir que a trilha das mudanças estava cada vez mais implicada no caminho da continuidade. Continuidade do quê? Da política como negócio.

Com isso, não estou me referindo apenas aos votos como mercadoria política, nem mesmo somente à corrupção, ou seja, o uso de cargos públicos para enriquecimento pessoal ou para o financiamento do mercado de votos.

Estou me referindo a algo mais estrutural e duradouro em nosso país: à apropriação do que é público (recursos, bens comuns) por interesses privados, por meio de processos que envolvem empresas, bancos e grupos privados, e que contam com participação ativa de políticos e gestores públicos, por meio do controle de cargos, e também com forte atuação do Judiciário.

Refiro-me à enorme dificuldade –marca de nossa história predatória e escravista– de até mesmo construir as noções de bem comum e de universalidade de direitos, conceitos tão fundamentais para a democracia que, justamente por isso, não conseguimos ainda consolidá-la.

BODE

Pois bem, nos decepcionamos porque o PT e a coalizão que liderou não apenas não foram capazes de romper com esta lógica, como também ajudaram a fortalecê-la durante os anos de construção de sua hegemonia política –estratégia adotada para viabilizar seu triunfo eleitoral, assim como a implantação de sua política de distribuição de renda e construção de um ainda incipiente estado de bem-estar social no país.

E agora?

Em pleno 2016, não consigo deixar de comparar o que estamos vivendo hoje com a situação da Alemanha do início da década de 30 do século passado: crise econômica e política e, diante dela, a emergência de uma solução fascista: buscar um culpado, apontar um responsável e mobilizar as massas para execrá-lo, ativando ódios e preconceitos.

Hoje este “bode” se chama Dilma, Lula ou PT.

Ora, não é preciso muita profundidade analítica para saber que a saída de Dilma ou do PT do governo não resolve minimamente o tema da política como negócio que tanto nos revolta. Muito menos a necessidade de aprofundamento da democracia, quando, em nome da execração pública dos “culpados”, afronta-se, justamente, a institucionalidade democrática.

Mas, do ponto de vista da onda conservadora (que deseja manter e aprofundar esse modus operandi do Estado brasileiro), é absolutamente central construir a ideia de que todas as aflições –reais– que vivemos hoje serão resolvidas com o impeachment da presidente Dilma.

MORALISMO RETRÓGRADO

Para o conservadorismo, é absolutamente central construir o espetáculo da culpa e com ele nos entreter, enquanto no Congresso e no debate público avançam pautas de desconstituição de direitos, criminalização de movimentos sociais, privatização de bens comuns, entre outras, muitas vezes protagonizadas pelo próprio governo, que luta para não perder bases alimentadas por um moralismo retrógrado.

E nós, que não aceitamos esse espetáculo, que já vimos esse filme antes na história e sabemos aonde ele pode chegar, o que podemos fazer?

Antes de mais nada, afirmar que não existem apenas dois lados nesta crise: os “coxinhas” e a “turma do PT”.

Tenho certeza de que aceitar esse jogo binário é compactuar com a máquina mortífera da onda conservadora que não quer distribuir nada da renda, nada do poder, que preferiria ver os negros nas senzalas, os LGBT no paredão e as mulheres na cama e na cozinha, e que estão pouco se lixando se a água acabar, se florestas forem derrubadas, se povos tradicionais desaparecerem.

Para estes, o território –urbano e rural– é pura fonte de remuneração do capital financeiro investido, e pouco importam temas prosaicos como a cultura, a memória, as necessidades e os direitos de todos.

Diante da crise, nosso papel é resistir sem medo, defendendo o que já construímos, e apostando, sim, nas possibilidades de formulação e experimentação de alternativas que apontem para um outro futuro.

*Publicado originalmente no site da Folha

O acordo da Samarco ou as raposas cuidando do galinheiro

Está em fase final de discussão a minuta de um acordo que tem por objetivo definir as ações de reparação ambiental, compensação e indenização às vítimas do maior desastre ambiental já ocorrido no país, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), em novembro do ano passado.

O acordo está sendo negociado e deverá ser assinado entre a mineradora Samarco, a Vale e a BHP Billiton – responsáveis pela tragédia -, a União, os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, bem como o Ministério Público Federal e os respectivos ministérios públicos estaduais.

O problema fundamental desse acordo, que prevê R$ 18,8 bilhões de gastos inteiramente custeados pelas empresas, por um período de 15 anos, é que caberá a elas – e a mais ninguém – decidir como e onde esse dinheiro será aplicado e quem terá direito à indenização.

Explico:segundo a minuta que está em discussão,as empresas criarão uma fundação de direito privado, por meio da qual executarão ações de “reparação, mitigação, compensação e indenização pelos danos socioambientais e socioeconômicos” decorrentes do desastre.

Caberá a essa fundação elaborar um plano de investimentos para a região, a fim de reparar os impactos do desastre nos campos ambiental, social, histórico-cultural e econômico, a partir de um rol bastante abrangente e minucioso de considerações e ações que constam do acordo.

Entretanto,a forma como vem sendo discutido e elaborado este acordo mostra que tudo que está sendo proposto ficará sob controle das empresas responsáveis pelo desastre. Por exemplo, o conselho de administração da fundação será composto por 7 membros, sendo 6 representantes das empresas e um indicado por um “comitê interfederativo” (que, em tese, representa dezenas de órgãos governamentais de municípios, estados e do governo federal).

Não há qualquer previsão de participação das vítimas ou de representantes dos indivíduos e comunidades atingidas, nem sequer em um conselho consultivo (sem poder de deliberação). Aliás, os afetados pela tragédia não tiveram até agora nenhuma participação na formulação e negociação desse acordo, o que é uma flagrante violação de seus direitos.

Assim, as próprias empresas que causaram o desastre terão o poder de decisão sobre todo o processo de reparação ambiental, compensação e indenização das vítimas. Sem qualquer forma de controle social, sem a participação de organizações independentes que possam representar os atingidos, e com diminuta participação dos governos de todas as esferas e mesmo do judiciário.

A própria fundação será encarregada de realizar o levantamento e o cadastro das vítimas – ou seja, decidir quem terá direito aos reparos, compensações e indenizações – e definir de que forma tudo isso será feito.Além disso, caso alguém queira contestar suas decisões, a fundação é que proverá assistência jurídica a essas pessoas… ou seja, ela mesma pagará os advogados que “defenderão” quem a ela se opuser!

Um acordo nos termos que estão sendo propostos apenas repete a lógica que preside a avaliação dos impactos de atividades como a mineração: são as próprias empresas que contratam os laudos ambientais que apresentam ao poder público. Só que,muitas vezes, esses laudos são elaborados sob enorme pressão das empresas, que devolvem aos consultores seus relatórios revisados e editados, minimizando os impactos apontados. No fundo, são elas mesmas que definem se suas atividades são ou não seguras. É possível afirmar, inclusive, que esta é justamente uma das causas do desastre.

Após a divulgação da minuta do acordo pela imprensa na semana passada, fontes do planalto afirmaram à imprensa que o governo defende a inclusão das vítimas nos fóruns de discussão e decisão referentes a esse processo. Esperamos que isso seja feito.

Como afirmou Sérgio Abranches em entrevista recente à Rádio CBN sobre o assunto,se em um desastre ambiental dessas proporções a resposta é a transigência, podemos esperar que isso seja um convite para um novo desastre.

Prefiro acreditar que ainda está em tempo de evitar que isso aconteça eque não seja tão pífia a resposta ao maior desastre ambiental do nosso país.

*Publicado originalmente no site da Folha

Tecnologias de transporte e modos de vida

Ao longo da história, testemunhamos inúmeros exemplos de como o modo de mover pessoas e coisas não apenas interfere no tempo de deslocamento, mas implica também em formas de viver e se relacionar nas cidades. Isso fica claro hoje, por exemplo, com a expansão do uso da bicicleta como meio de transporte, quando percebemos que não se trata apenas de um modo de se deslocar, mas também da abertura de diferentes formas de relação das pessoas com as cidades, propiciadas por uma nova forma de contato corporal entre os indivíduos, e destes com o espaço construído.

Mas nunca tinha percebido isso tão claramente quanto na semana passada, quando entrei pela primeira vez no metrô de Delhi, capital da Índia, e passei o dia utilizando este meio de transporte para me deslocar, depois de semanas percorrendo outras cidades a pé, de trem, de automóvel ou de autorriquixá, também conhecido como tuk tuk. Foi um choque: parecia que havia passado por um portal e entrado em outro planeta, silencioso, limpo, liso, longe da profusão de buzinas e sons das ruas, e de pessoas disputando espaço com motos, carros, vendedores, peregrinos, vacas, carroças e templos.

Às 6h da tarde, em uma estação onde se cruzam várias das oito linhas que compõem hoje os 213 km da rede atual do metrô de Delhi –a Central Secretariat–, a multidão se acotovela como em qualquer outra estação central, como as de Tóquio ou de São Paulo. Mas essa multidão com a qual convivi nas últimas semanas percorrendo a Índia, me lembrando sempre que estava em um país de 1,2 bilhão de habitantes, era totalmente diferente: não tinha cheiro, não tinha som, não tinha cor. Era como se aquele subterrâneo, além de um meio rápido de percorrer distâncias, fosse também uma espécie de filtro que, deixando para trás antigos modos de ser, impunha uma outra lógica, anódina, asséptica, homogênea.

Não por acaso, E. Shreedharan, então diretor da Delhi Metro Rail Corporation, empresa pública criada em 1995 por uma parceria entre o governo nacional da Índia e o governo da capital federal para implantar a rede de metrô em Delhi, declarava à imprensa, em 2002, quando da inauguração da primeira fase da rede, que “o metrô de Delhi é mais do que um modo mais eficiente e menos poluído de transporte, ele transformará totalmente nossa cultura social, nos conferindo um sentido de disciplina, limpeza, e promovendo nosso desenvolvimento”.

De fato, o metrô de Delhi foi um dos primeiros a receber créditos de carbono após o protocolo de Kyoto, em função da redução de gases de efeito estufa propiciada por sua tecnologia. Entretanto, estudos recentes têm demonstrado que um dos objetivos expressos da construção da rede –reduzir o congestionamento e a poluição da cidade, uma das mais poluídas do mundo– não foi de fato atingido, já que o consumo de carros e, sobretudo, de motocicletas (60% do transporte motorizado é em duas rodas), tem crescido sem parar, assim como as taxas de motorização, elevando os níveis de poluição e de congestionamento na cidade.

Na ausência de qualquer política de desestímulo ao uso de automóveis e motos, a implementação da rede de metrô tem provocado, na verdade, não a redução da poluição e do congestionamento, mas um processo muito intenso de reestruturação urbana, talvez o mais radical que a Índia já conheceu desde a ocupação britânica.

Neste processo, cidades-satélites como Gargaon e Noida, conectadas pelo sistema de metrô, têm testemunhado um boom de lançamentos imobiliários residenciais e corporativos, gerando verdadeiras novas cidades, muito semelhantes às “world class cities”, cidades genéricas, cuja paisagem se reproduz mundo afora, convivendo –e conflitando– com as cidades tradicionais indianas.

O espaço nesta coluna é insuficiente para comentar de forma mais aprofundada o impacto dessas transformações em Nova Delhi e, sobretudo, avaliar quem ganha e quem perde com elas. Quis apenas registrar aqui o caráter estruturador das opções de transporte e mobilidade urbana, que vão muito além do tema do transporte em si, propiciando, bloqueando ou promovendo novas geografias não apenas espaciais, mas também econômicas, sociais e culturais.

*Coluna publicada originalmente no site da Folha

Mumbai, prédios e densidades

Mumbai-2_foto-Isabel-Gouvea_jan2016

Mumbai, na Índia. Foto: Isabel Gouvêa.

Estando em Mumbai, na Índia, falar sobre seu trânsito caótico, quase selvagem, ou sobre a poluição que cobre as folhas de suas árvores com uma camada espessa, é registrar apenas as primeiras impressões.

A cidade, que os habitantes insistem em chamar de Bombay (ou Bombaim, em português), seu antigo nome, desafia percepções e teorias urbanísticas. Ela se formou –e continua se expandindo– através de aterros que, inicialmente, ocuparam antigos canais entre ilhas situadas ao sul de uma península, e que seguem se espalhando, agora em escala metropolitana, sobre uma imensa área pantanosa ao norte.

Capital da colônia inglesa até 1947, cidade-porto voltada para atender as rotas comerciais da metrópole britânica, Mumbai explode em população e área a partir da independência e, sobretudo, com a industrialização e modernização promovida pelos governos subsequentes e com a enorme migração da população das pequenas aldeias para a cidade.

Assim como em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras metrópoles brasileiras, a cidade indiana possui quilômetros de periferias construídas por seus próprios moradores, com parcos recursos. Isso gera, diariamente, uma incrível quantidade de viagens de trem e, especialmente, de ônibus, carro, caminhão e autoriquixa –veículo aberto, de três rodas, que carrega passageiros–, em direção ao Sul da península, onde se concentram a principal atividade comercial e os serviços.

Aqui em Mumbai, assim como nas metrópoles brasileiras, fala-se muito na necessidade de adensar a cidade, construindo prédios para aumentar o número de moradores em determinadas áreas, ultrapassando o limite de três ou quatro pisos que predomina nos edifícios do centro e verticalizando as periferias onde se espalham casas térreas e sobrados.

Hoje, enormes torres despontam no horizonte, especialmente na área mais central e nos centros de bairros, em locais próximos às estações de trem e à orla do mar. Entretanto, em Mumbai, muito mais radicalmente do que em qualquer grande cidade brasileira, a densidade residencial tanto do centro como das periferias já é impressionante.

No centro, há centenas de edifícios encortiçados que abrigam uma população predominantemente de baixa renda, resultado sobretudo do rent control act, o congelamento dos aluguéis decretado pela administração municipal em 1949, para todo o parque residencial construído até aquele momento. Nos interstícios das áreas centrais, e nas imensas periferias, becos e passagens levam a uma a sucessão de pequenas casas, muitas com um só cômodo, superlotadas. Nesse contexto, falar em adensar os centros e subcentros da cidade parece piada –de mau gosto!

É evidente que nem os edifícios encortiçados, nem as ocupações e loteamentos populares autoconstruídos oferecem hoje condições adequadas de moradia. E é também clara –e urgente– a necessidade de melhorar tais condições.

Entretanto, a “pegadinha” dessa história é: em nome do adensamento, pretende-se destruir esses assentamentos e, em seu lugar, construir torres que nunca serão destinadas às famílias de baixa renda que hoje moram nessas áreas. Como em um anúncio que vi na primeira página do jornal “Indian Times”: condomínio de torres, um apartamento por andar, vista de 180 graus para a baía, e paisagismo de canais venezianos com gôndolas. Certamente não é deste “adensamento” que a população de Mumbai está precisando.

Nas cidades brasileiras, e muito mais radicalmente em Mumbai, é preciso diferenciar claramente o que são densidades construtivas (de metros quadrados de construção em altura) e densidades demográficas (de pessoas por metro quadrado). Em contextos de desigualdade extrema de renda e de mercado imobiliário restrito, estes conceitos podem ter relação completamente oposta. Isso significa que verticalizar nem sempre implica em permitir que mais pessoas morem em uma mesma área.

*Publicado originalmente no site da Folha

Tarifa de transporte e a tal da conta que não fecha

Na semana passada, as tarifas de ônibus subiram em cidades de todo o país, principalmente nas capitais. Em São Paulo, onde também o governo do Estado reajustou as tarifas de metrô, o valor da passagem de ônibus foi de R$ 3,50 para R$ 3,80, mesmo valor adotado no Rio de Janeiro.

Já em Belo Horizonte, o preço passou de R$ 3,40 para R$ 3,70, o segundo aumento em menos de seis meses. O anúncio dos reajustes, em pleno mês “morto” de janeiro, foi acompanhado por protestos convocados pelo MPL (Movimento Passe Livre). Assim como em Junho de 2013, as manifestações foram e continuam sendo violentamente reprimidas pela polícia, sem respeito aos princípios e direitos envolvidos no protesto.

A justificativa oficial para o aumento é o equilíbrio das contas dos municípios e Estados, a “conta” que precisa fechar. A tese por trás deste cálculo é simples: a tarifa deve cobrir o custo –e o lucro– das empresas que operam o transporte (São Paulo é uma das poucas cidades do Brasil em que subsídios do orçamento municipal entram na composição do preço da passagem). E são os usuários pagantes que arcam com este acréscimo, já que as gratuidades para estudantes e idosos, entre outras, incidem sobre a mesma conta. Se à primeira vista o raciocínio parece muito fácil de entender, alguns pontos importantes são encobertos por este tipo de argumento.

O primeiro deles é o impacto do aumento da tarifa na renda dos usuários de transporte público. Se pegarmos o caso da cidade de São Paulo, pagar R$ 3,80 por trajeto vai significar, em um mês, um gasto de 19% sobre o salário mínimo, já reajustado para R$ 880,00. E isso se considerarmos apenas uma passagem de ida e outra de volta por dia, o que não é a realidade da maioria dos passageiros.

A porcentagem aumenta ainda mais se considerarmos que o transporte público não é utilizado apenas em dias úteis e para locomoção para o trabalho ou escola, mas também para acessar equipamentos de consumo, lazer e outros. Moral da história: esta é certamente uma “conta que não fecha” para os usuários de baixa renda.

O segundo ponto importante é a questão da inflação. É muito comum ouvirmos que a tarifa sobe de acordo com a inflação, o que levaria a concluir que o reajuste será sempre necessário a cada aumento do nível geral de preços. Entretanto, um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostra que, para o período de 2000 a 2012, o aumento das tarifas de ônibus foi acima da inflação, enquanto que o crescimento de itens associados ao transporte privado foi abaixo do patamar inflacionário.

Pesquisas feitas pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 2012 mostram que, se comparadas com outras grandes cidades do mundo, São Paulo e Rio estão no topo do ranking de peso dos gastos com transporte em relação ao salário mínimo. Medido dessa forma, são as cidades com o transporte público mais caro do mundo.

A comparação com cidades de outros países ainda nos leva ao terceiro ponto. Em nenhuma grande cidade do mundo o custo do transporte público é coberto apenas pela tarifa. Os subsídios –ou seja, a participação de recursos dos orçamentos públicos e de outras fontes de receitas–, chegam, segundo dados das European Metropolitan Transport Authorities para 2012, a 70% em cidades como Praga, 64% em Turim e superam os 50% em Varsóvia, Budapeste, Helsinque e Copenhague.

Em média, estes mesmos dados indicam que mais da metade do custo unitário do transporte público é custeado pelo governo. Essa comparação mostra que o preço da tarifa é uma questão de política pública, e é uma decisão sobre quem deve pagar pela locomoção nas cidades e para onde o dinheiro público deve ir.

Em São Paulo, no final de 2015, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) anunciou um pacote de concessões, especialmente para rodovias e aeroportos, no valor de R$ 13,4 bilhões, em regime de parceria público-privada e em que serão gastos R$ 690 milhões de repasses federais apenas para pagar desapropriações.

Já o prefeito Fernando Haddad (PT) acaba de anunciar a construção de duas novas avenidas para desafogar as marginais. O valor do projeto é estimado em R$ 2 bilhões, também no formato de parceria público-privada, o que certamente não impedirá que uma grande quantia do erário público seja gasta.

Foram escolhas sobre onde e como gastar –e não uma conta genérica– que orientaram a decisão dos prefeitos e do governador. Onerar os usuários de ônibus e metrô é uma escolha política. É, portanto, absolutamente necessário que se abra um diálogo sobre estas opções.

*Coluna publicada originalmente no site da Folha.

 

O que esperar da política urbana em 2016? Ou o lado bom da crise

Em meio ao terremoto político-econômico que marcou 2015, vale a pena pensar que perspectivas essa crise traz para as cidades brasileiras em 2016. Um dos motivos principais da crise é a emergência –no sentido de tornar públicos, visíveis e conhecidos– dos mecanismos e relações que aliam o interesse de grandes empresas com os de grandes partidos políticos, e que, historicamente, têm enorme impacto na política urbana.

É possível até mesmo afirmar que a política urbana tem sido, na sua quase totalidade, definida por essa relação, que tem o poder de determinar, a partir de acordos entre empresas, partidos e governos, que investimentos serão feitos, assim como onde e de que forma a cidade se desenvolverá. Os anos de abundância de dinheiro, inclusive, alimentaram de forma avassaladora esta máquina perversa de associação entre interesses privados e as políticas públicas, com megaprojetos milionários e obras faraônicas de questionável necessidade.

Hoje esse “modus operandi” que exerce enorme influência no destino de nossas cidades está finalmente em xeque. Assim, apesar das dificuldades que momentos de crise apresentam, esse é um primeiro elemento que pode ser muito positivo para o futuro de nossas cidades, desde que estejamos dispostos a ir até as últimas consequências para superar esse modelo, que envolve hoje, repito, a totalidade dos grandes partidos no Brasil.

Transformar radicalmente esse modo de fazer política abre a perspectiva de que a política urbana possa de fato atender às necessidades dos cidadãos em cada cidade, e não às expectativas de lucro nos negócios de empresas financiadoras de campanhas, apoiadas em suas relações com partidos políticos e seus representantes nos legislativos e executivos país afora.

Para além disso, em função da crise econômica já estamos vivendo uma forte redução de investimentos públicos, e as pessoas já têm menos dinheiro no bolso e menos capacidade tanto de gastar como de poupar ou investir. É claro que os efeitos da recessão são muito negativos, especialmente para a população mais pobre, que mais depende de políticas públicas. Mas existe um outro lado nessa história…

Outros momentos de crise econômica e redução drástica na capacidade de gastos dos governos –penso especialmente nos anos 1990– mostraram-se muito férteis em termos de políticas municipais inovadoras, particularmente no campo da moradia e da política urbana. Foi nesse período que conseguimos realizar experiências de construção de moradias populares com mutirões e autogestão dos moradores, avançamos nos processos de reconhecimento e urbanização de favelas, com programas implementados com a participação direta da população, desenvolvemos experiências de orçamentos participativos… enfim, foram tempos de escassez em que governos conseguiram se virar e mobilizar a população para enfrentar nossos grandes desafios.

A diferença é que, naquela época, novos partidos de expressão popular ainda estavam nascendo ou se consolidando, repercutindo anseios e necessidades da população em nível local. Foi quando administrações democrático-populares foram eleitas e políticas inovadoras, com profundo sentido redistributivo e desejo de radicalização democrática, foram experimentadas. Tudo isso foi esvaziado, quando não totalmente desmontado, na era da abundância, quando até mesmo os novos partidos, já com grande presença no cenário político nacional, escolheram o caminho da velha forma de fazer política.

É importante que se diga, porém, que embora o mundo da política em geral esteja muito contaminado por essas velhas práticas, isso não significa que a totalidade dos parlamentares e detentores de cargos políticos tenha adotado esta posição. Muitos foram marginalizados, ou sequer tiveram espaço para crescer dentro dos partidos, por não compactuar com tais práticas. O enorme desafio para todos que fazem política com seriedade é constituir novas lideranças capazes de ecoar os desejos de mudança que existem na sociedade.

As duas grandes incógnitas que 2016 nos coloca, portanto, são: se conseguiremos de fato desmontar e enterrar esse velho modo de fazer política, e se teremos capacidade de inovar na elaboração de políticas públicas para enfrentar o cenário econômico adverso.

Enfim, muitos atravessaram 2015 com perplexidade diante da atual situação. Prefiro ser mais otimista e vislumbrar, no horizonte de 2016, a esperança de construção de mudanças profundas… se estes são tempos difíceis, que possam ser também tempos de transformação, inovação e criatividade para formular e implementar políticas alternativas, melhores e mais eficazes do que parte do que fizemos na farra dos anos de fartura.

*Publicado originalmente no site da Folha.

O fato político mais relevante de 2015

Operação Lava Jato? Contas do Eduardo Cunha na Suíça? Processo de impeachment da presidente Dilma? Carta do vice-presidente Michel Temer? Nenhum desses é o fato político mais relevante de 2015. A meu ver, 2015 entra para a história política especialmente pela vitoriosa mobilização dos estudantes secundaristas de São Paulo contra o projeto de reorganização das escolas que o governo Alckmin tentou implementar, que, entre outras medidas, fecharia 90 escolas estaduais.

Durante quase um mês, estudantes do ensino médio promoveram ocupações em mais de duzentas escolas e realizaram diversas manifestações públicas nas ruas, sendo violentamente reprimidos pela polícia. Com amplo apoio não apenas de familiares e de setores ligados à área educacional, mas também da população em geral, a mobilização estudantil finalmente levou o governador a recuar da proposta, revogando, no último dia 5, o decreto da reorganização das escolas. No mesmo dia, o secretário de educação entregou sua carta de demissão.

A vitória dos estudantes é o fato político mais importante de 2015 especialmente por três razões. Em primeiro lugar, porque revela o que o imaginário dominante sobre a escola pública oculta: o profundo vínculo dos estudantes com esse espaço. Esse sentimento de pertencimento que a mobilização dos estudantes expressa contraria o discurso hegemônico que costuma resumir a escola pública à ideia de falta de qualidade e a lugar de violência, depredação e abandono. O que testemunhamos neste mês de mobilização foram justamente diversas das qualidades que estão presentes neste lugar.

Segundo, porque no momento em que ocupam um espaço público como a escola, reclamando a necessidade imperiosa de participação ativa nas decisões sobre seu destino, esses estudantes estão afirmando que os espaços públicos não são propriedade privada nem de governos, nem de políticos, mas sim propriedade coletiva dos cidadãos. Por isso não tem cabimento classificar de invasão a ação dos estudantes, como fez sistematicamente o governador. Trata-se, mais propriamente, da ocupação de um espaço que já é deles, e justamente para esclarecer a natureza do que é público, já que muitas vezes governantes e gestores se esquecem disso.

Exatamente por ser a escola pública nossa propriedade coletiva, não cabe a adoção, de cima pra baixo, de políticas que impactam na sua existência, funcionamento e dinâmica, sem qualquer diálogo com a sociedade e, especialmente, com aqueles que vivenciam seu cotidiano: estudantes, professores e funcionários.

A terceira razão é que, diante do cenário catastrófico do mundo político brasileiro atual, jovens com idade entre 15 e 18 anos, em média, dão ao país uma esperança, mostram uma luz no fim desse túnel macabro em que nos encontramos. Essas meninas e meninos estão dando uma verdadeira aula de organização, mobilização e, especialmente, de ressignificação das noções de “público” e de “democracia”, ao se apropriar do que é comum, ao exercer formas horizontais e amplas de tomada de decisão, enfrentando a tecnocracia, a discriminação e o autoritarismo, marcas pesadas de nossa organização social e política.

*Publicado originalmente no site da Folha. 

Para compreender nossas cidades

Quando estreei esta coluna, em setembro de 2013, o Brasil vivia uma espécie de perplexidade diante da onda de protestos que tomou conta do país a partir de junho daquele ano.

Como afirmei à época, as chamadas jornadas de junho —cujo pontapé foram as manifestações contra o aumento das passagens do transporte público— reposicionaram o tema das cidades na agenda do país. E foi isso, especialmente, o que me animou a ocupar este espaço na Folha, procurando contribuir com esse debate.

Nesses pouco mais de dois anos, procurei abordar temas relacionados com a questão urbana, trazendo ângulos que considerava ausentes ou silenciados na abordagem que os grandes meios de comunicação fazem dos conflitos que marcam a luta cotidiana pela apropriação de nossas cidades. Procurei também debater, em uma linguagem menos técnica, temas que, em função de sua complexidade, se tornam opacos para o público e restritos aos estreitos círculos de “especialistas”.

Foi assim que procurei acompanhar pautas como a revisão do Plano Diretor de São Paulo, a crise habitacional, a mobilidade urbana, os espaços públicos, o planejamento e a gestão urbana, a participação dos cidadãos na definição das políticas, entre outras.

Como paulistana, e escrevendo em um jornal da cidade, centrei a atenção principalmente nas dinâmicas de São Paulo, mas, por vezes, também tive a oportunidade de comentar temas nacionais, como a recente tragédia em Mariana (MG), as mobilizações do movimento Ocupe Estelita, do Recife, a aprovação da PEC que incluiu o transporte no rol dos direitos sociais constitucionais básicos, ou os perigos do regime direto de contratações de obras públicas.

Aproveitando as oportunidades que tive durante este período, de andar por cidades do mundo, participando de seminários e eventos profissionais e acadêmicos, busquei também trazer experiências internacionais, relacionando-as com debates em curso em São Paulo e no país.

Assim, a lógica do adensamento das cidades em Tóquio, as experiências internacionais de mobilidade urbana, as transformações urbanísticas em torno do High Line Park, em Nova York, por exemplo, serviram como elementos para pensar, com outros olhares, temas que desafiam também as cidades brasileiras.

Hoje, me despeço deste espaço no jornal impresso para permitir o rodízio de colunistas praticado pela Folha. Agradeço aos leitores que acompanharam a coluna até aqui, que comentaram os textos e enviaram críticas e sugestões.

Agora, podemos continuar esse diálogo no site da Folha, onde continuarei escrevendo quinzenalmente, às segundas-feiras.

Tenho certeza de que a conjuntura que vivemos hoje, de profundo questionamento de nosso sistema político, especialmente na sua relação com os interesses dos grandes grupos empresariais e financeiros do país, pode ter enorme impacto no destino de nossas cidades.

A conexão urbana de operações como a Lava Jato ainda irá emergir. E seus efeitos, como repeti várias vezes neste espaço, vão muito além da corrupção. Por isso, mais do que nunca, temos que aprofundar a compreensão crítica dos modos de fazer a cidade brasileira.

*Coluna publicada originalmente no Caderno Cotidiano da Folha.

Tragédia em território devastado

Nos últimos dias, o país vem assistindo estarrecido ao desastre ocorrido no município de Mariana (MG), com o rompimento de duas barragens pertencentes à mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP. Um mar de lama de rejeito da mineração invadiu várias cidades e já chegou ao Espírito Santo, causando mortes, destruição e danos ainda incalculáveis.

Essa é, obviamente, uma tragédia de imenso impacto –humano, ambiental e econômico–, como toda a imprensa vem mostrando. Mas é necessário dizer também que se trata de um evento extremo em um território já completamente arruinado pela atividade mineradora que ali se implantou. E isso não diz respeito somente a esse lugar, mas a muitas outras áreas de mineração do país.

O modelo de implementação dessa atividade no Brasil é, em si, devastador. A forma como se implanta não apenas a lavra –a extração do minério propriamente dito–, mas toda a sua estrutura de produção, envolvendo a captação de água, instalação de energia elétrica, logística de distribuição etc., destrói territórios, desconstitui atividades produtivas e desestrutura modos de vida. A dimensão e ritmo dessa exploração agravam ainda mais a situação.

Hoje, a lavra é realizada por meio de uma concessão para explorar o subsolo, que é patrimônio público. Mas para conseguir explorar o que está embaixo, as mineradoras vão comprando, total ou parcialmente, as terras da população local. Essas verdadeiras desapropriações feitas pelo privado são parte de estratégias agressivas de implantação do complexo minerador que vão inviabilizando a sobrevivência de outras atividades locais. Além disso, se dão através de processos judiciais em que muitas vezes pequenos produtores têm que enfrentar gigantes multinacionais. Assim, comunidades inteiras são afetadas na sua relação com o território e muito pouco, ou quase nada, recebem em troca.

Quem continua a viver nessas regiões quase sempre enfrenta a poluição de rios e do ar e a impossibilidade de continuar com a produção agrícola local. Enfim, a atividade mineradora acaba com as condições de sobrevivência no lugar e no seu entorno, gerando poucos empregos locais e deixando lucros bem limitados. As barragens de rejeitos, como as do Fundão e de Santarém, em Mariana, que ocupam áreas gigantescas, são apenas um exemplo do que ocorre nesse tipo de atividade.

Certa vez ouvi do ex-prefeito de Ouro Preto Ângelo Oswaldo a seguinte frase, “o ouro deixou o barroco, o ferro, o barraco.” Com todas as ressalvas necessárias –não podemos pensar o ciclo do ouro sem lembrar que ele se realizou com trabalho escravo e muita exploração para enriquecimento da metrópole–, o que se destaca nessa frase é a pobreza promovida pela mineração em tempos atuais, quando isso não deveria mais ser admissível.

Afinal, em nome de que e por que ainda convivemos com isso? A extração de minério no Brasil atinge enormes escalas não para atender à indústria local e suas perspectivas futuras, mas para exportar. Por isso, a exploração exige ritmo e intensidade tão fortes. O que estamos vendo, portanto, é uma tragédia sobre outra tragédia, que já estava em curso há muito tempo, e que continuará ali e em outras partes do país se não enfrentarmos esse problema.

*Coluna publicada originalmente no Caderno Cotidiano da Folha.