O novo e o velho no recém aprovado Código de Obras

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Na semana passada foi sancionado pelo prefeito de São Paulo, João Doria, o novo Código de Obras da cidade. O projeto já vinha sendo debatido desde a gestão de Fernando Haddad e só não foi sancionado antes porque a oposição, à época, entrou com mandado de segurança alegando que havia faltado quórum qualificado na votação em segundo turno que o aprovou na Câmara de Vereadores.

O Código de Obras define regras e procedimentos de aprovação que as construções devem obedecer. A nova legislação vem sendo apontada pela prefeitura como um avanço no sentido da modernização do processo de licenciamento e fiscalização. De fato, ele simplifica, no sentido positivo, processos que anteriormente se configuravam como verdadeiras gincanas para conseguir aprovar um projeto. Um dos principais exemplos disso é que a nova lei deixou de exigir detalhamento interno das unidades construídas, focalizando muito mais naquilo que tem relação com o resto da cidade. O novo código também aumenta a responsabilidade dos construtores e responsáveis técnicos pelas obras, retirando da prefeitura a necessidade de fiscalizar todos os detalhes de cada empreendimento.

Outro dos destaques também positivos é a introdução de uma seção sobre a requalificação de edificações antigas, processo conhecido como  retrofit, que consiste em reabilitar para novos usos edifícios subutilizados, como transformar um antigo prédio de escritórios em um edifício de apartamentos, por exemplo. Esse processo muitas vezes era inviabilizado porque a lei antiga exigia que um prédio construído sob outra legislação, normalmente menos exigente, se enquadrasse nos parâmetros em vigor no momento da reforma. Com o novo código é possível aprovar o empreendimento se ficar demonstrado que a acessibilidade, segurança contra  incêndio e etc. serão atingidas ainda que em outros padrões.

Mas nem tudo é modernização e avanço nesse Código de Obras. Velhos hábitos se manifestam, por exemplo, no modo como foi excluída a obrigação de pagamento de várias taxas e multas por não cumprimento do código a templos religiosos e “moradias econômicas”. A isenção dada aos espaços de culto foi introduzida em função da pressão da bancada evangélica, que ameaçava, desde a gestão Haddad, não aprovar o código caso esse ponto não fosse garantido. Nada mais velho do que isso, pois a medida não responde a nenhuma demanda técnica, não produz nenhum impacto positivo para a cidade e atende apenas a uma negociação política. Não há nenhum motivo para que os templos não se submetam às regras.

Texto publicado originalmente no Portal Yahoo!

Imóveis de luxo e a guerra por um lugar na cidade

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Com base em informações divulgadas pelo Secovi, jornais de grande circulação publicaram um balanço sobre a venda de imóveis em São Paulo nos últimos meses. Enquanto o número de imóveis vendidos na cidade em fevereiro deste ano caiu 4,5 % em relação a fevereiro do ano passado, a receita obtida com essas vendas aumentou 13%.

A explicação para essa equação aparentemente contraditória é simples: os imóveis que estão sendo vendidos hoje na cidade são mais caros. O crescimento no volume de vendas e valor de imóveis deste tipo (também conhecidos como superprime) tem pouco a ver, evidentemente, com necessidades habitacionais ou de expansão de negócios. Em plena crise econômica, a demanda por espaços comerciais não deve crescer, assim como é muito improvável uma explosão demográfica repentina em famílias de alta renda.

O que se passa neste mercado, assim como em outras cidades do mundo, é que estes imóveis caros e luxuosos não estão sendo comprados por quem necessita utilizá-los, mas, sim, como forma de investimento ou “entesouramento” por parte de capitais financeiros, muitas vezes globalizados.

Em Londres, por exemplo, uma matéria recente do jornal The Guardian aponta que este mercado mantém um estoque de milhares de casas e apartamentos vazios, mesmo com a cidade vivendo uma crise habitacional como não se via desde a última grande Guerra Mundial.

Muitos dos imóveis que permanecem vazios são de propriedade de milionários, que os utilizam como “safe deposit Box” de suas fortunas, nas palavras de Manuel B. Aalbers, professor de Geografia da Universidade de Leuven. Fortunas, aliás, nem sempre de origem lícita.

Estudos realizados pela Transparência Internacional apontam que muitos dos imóveis implicados nessa lógica em São Paulo são adquiridos por offshores, empresas sediadas em paraísos fiscais onde não se pagam impostos e as informações sobre seus beneficiários são mantidas em segredo.

Para além das questões ligadas à origem deste dinheiro – ou do fato de que se trata de fortunas que não contribuem, sob a forma deimpostos, para nenhuma economia, de nenhum país –, quero aqui ressaltar os impactos urbanísticos de sua presença no território.

Em primeiro lugar, a existência de um mercado deste tipo na cidade faz com que os moradores (que precisam de casas e de espaços comerciais, de serviços etc.) tenham que concorrer pela localização com o oligarca russo ou com o sheik do petróleo, que procuram imóveis não para morar, mas para deixar parte de suas fortunas seguras.

A segunda implicação é o fato de que boa parte destes imóveis permanece vazia por meses ou anos e isso tem também um enorme efeito: estamos ocupando lugares preciosos em nossas cidades para produzir espaços sem uso nem função…

Os 100 dias de Doria… e o almoço grátis

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Em quase todas as colunas, posts e tweets que escrevo, defendendo o acesso público, livre e gratuito a espaços, serviços e equipamentos, aparece sempre algum comentarista que faz questão de dizer: “tem gente que acredita que existe almoço grátis”.

Esta frase virou uma espécie de mantra de uma suposta nova cultura (na verdade, bem velhinha, de mais de um século atrás) de gestão da coisa pública, de viés liberal, para a qual o mercado – “a iniciativa privada” –, por ser mais eficiente, moderno e “imune à política”, é mais capaz de administrar os espaços, equipamentos e serviços públicos da cidade.

João Doria identifica-se completamente com esse ideário. Além de defender a proposta de privatizar ativos, conceder serviços públicos para a iniciativa privada, desestatizar a gestão, o novo prefeito de São Paulo apresenta-se, ele próprio, como um empresário sem vínculos com a política e, portanto, portador das virtudes que esta condição automaticamente lhe conferiria.

Poderia discorrer longamente sobre as verdades e inverdades contidas nestas afirmações, assunto para muitos artigos, que certamente virão. Mas quero agora apenas chamar a atenção para o relato oficial divulgado pela assessoria de imprensa da Prefeitura, no dia 10 de abril, sobre as ações dos primeiros 100 dias do governo Doria em São Paulo.

De acordo com o comunicado, são 60 os programas e ações lançados até o momento, entre ações concretas (como o “Corujão da Saúde”, o “Calçada Nova” ou a “Operação Tapa-Buraco”), intenções (como o “Plano Municipal de Desestatização”, o “Nossa Creche” ou o projeto “Redenção”, de atendimento a moradores de rua) e atos que não podem ser considerados propriamente políticas públicas, como a doação do salário do prefeito para instituições de caridade.

Ao examinar a lista, chama atenção a quantidade de vezes em que os programas contaram – ou contarão, quando se trata de promessas  – com doações da iniciativa privada.

São roupas e produtos de higiene para moradores de rua, remédios para a rede de postos de saúde, exames laboratoriais, carros, reformas de banheiros, alimentos, tinta, entre tantos outros itens,  em grandes quantidades, para manter todos os equipamentos e serviços públicos funcionando. Entretanto estes equipamentos e serviços tem que funcionar , não apenas nos primeiros cem dias, mas em todas as centenas de milhares de dias que virão depois destes cem…

Será que a iniciativa privada doou para a Prefeitura, em um ato de filantropia e de amor a São Paulo, justamente os produtos de que a gestão precisa? Alguém acha mesmo que a indústria farmacêutica vai doar remédios mensalmente, até o final dos tempos, para os postos de saúde públicos? E que construtoras privadas, por pura generosidade, vão passar a fazer a manutenção mensal de todos os “equipamentos municipais” por sua conta?

É evidente que não! Como dizem meus amigos comentadores, “não existe almoço grátis”. Portanto, qual será a mágica que o prefeito fará para que estas empresas ganhem retorno financeiro com suas “doações”? Neste caso, podemos afirmar que, claro!, “o marketing é a alma do negócio!”.

Porque, sim, no momento das doações, as empresas ganham uma semana de holofotes e fama que custa (talvez) menos que 1 minuto de propaganda no horário nobre da TV. Mas, então, a pergunta que não quer calar é: passado esse momento, como faremos para continuar reformando tudo que precisa ser reformado sem parar (como nas nossas próprias casas) para manter os equipamentos e serviços públicos?

Mais uma vez recorro a meus amigos comentadores: não existe almoço grátis ‘e, portanto, quando acabar a fantasia do tudo grátis pela boa ação do privado, “sem custos para os cofres públicos”, nós vamos continuar financiando tudo com recursos públicos mesmo. Recursos que vêm dos impostos que pagamos e que, no Brasil, são cobrados de forma totalmente injusta, já que quanto mais rico se é, menos se paga, quando deveria ser bem o contrário… mas isso é tema para outra coluna.

Texto publicado originalmente no Portal Yahoo!

Sabesp: enxurrada de lucros, benefícios sociais no conta-gotas

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Rio Tietê (SP). Crédito: @mundoirys/Instagram

Na semana passada, após um comentário meu no Twitter sobre o lucro recorde da Sabesp de quase R$ 3 bilhões e a remuneração de seus acionistas, a companhia respondeu argumentando que esta era uma “ótima notícia para todos”, pois a maior parte deste recurso seria aplicada em melhorias de infraestrutura e serviços.

Infelizmente, essa afirmação não tem respaldo nas ações efetivas desta empresa de economia mista, com ações negociadas na bolsa de valores desde 1994.

Encarregada de quase todos os serviços de água e esgoto da metrópole paulistana, além de muitas outras cidades do Estado de São Paulo, a Sabesp é uma das grandes responsáveis pela poluição dos rios, na medida em que coleta o esgoto e neles despeja a maior parte, sem tratamento. Segundo a ONG SOS Mata Atlântica, 70% da poluição dos rios de São Paulo vêm destes esgotos não tratados.

Desde 1992, há 25 anos, portanto, a Companhia lançou um projeto de despoluição do Rio Tietê –  Projeto Tietê – com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Na ocasião do lançamento do projeto, o então governador Luiz Antonio Fleury Filho prometeu que, em 2005, ele “beberia um copo de água do Tietê”. Quem fizer isso em 2017 sairá certamente contaminado. E nestes 25 anos, com lucros recordes ou modestos, os investidores estão bem satisfeitos com o desempenho da companhia, mas o prazo para despoluição já foi adiado inúmeras vezes, tendo gerado inclusive uma ação do Ministério Público contra a Sabesp.

A complexidade do projeto tem sido utilizada para justificar os atrasos sistemáticos. Mas há também um enorme debate sobre o modelo de captação/tratamento dos esgotos, que centraliza o tratamento em poucas – e imensas – estações. Isso faz com que, muitas vezes, o esgoto coletado nas residências tenha que percorrer 80 quilômetros entre coletores e interceptores para conseguir atingir a estação de tratamento, que, por sua vez, fica por anos subutilizada até que todos estes interceptores sejam implementados.

A menor mancha de poluição do rio, 71 quilômetros, foi apurada em 2014, justamente quando o despejo de esgoto foi menor em função da crise de abastecimento de água, que diminuiu forçosamente o consumo. No período seguinte, entre 2014 e 2015, o valor investido na despoluição do Tietê recuou 36%, o que contribuiu para o retrocesso nos índices de poluição, passando rapidamente daqueles 71 quilômetros mortos para os atuais 137 quilômetros.

Por sua vez, o lucro recorde da empresa vem depois de dois aumentos de tarifa e da eliminação da política de bônus para quem economizava no consumo, e é acompanhado de um novo aumento de desperdício de água em função de vazamentos nas redes da empresa.

A eficiência financeira da Sabesp, explicitada pelos números e prêmios recebidos por esta empresa, lamentavelmente não significa que o lucro recorde seja uma boa notícia…

Texto publicado originalmente no Portal Yahoo!

MP 759: Regularizar a exclusão

Favela da Erundina (SP). Foto: DiCampana Foto Coletivo/Instagram
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Está tramitando no Congresso Nacional uma Medida Provisória (MP 759/16) que trata de três questões muito importantes para o país: a regularização de terras envolvidas em projetos de assentamento de reforma agrária, a regularização fundiária urbana e a venda das terras públicas pertencentes à União. Os assuntos são extensos e complexos, apresentados em um juridiquês de difícil compreensão para a maioria dos cidadãos. Mas trata de um assunto fundamental no Brasil: o acesso à terra.

A MP 759/16 é mais uma das centenas de leis que tratam da possibilidade de regularização de terras ocupadas irregularmente com casas, condomínios, comércios, indústria e todo tipo de uso e formas de ocupação do solo.

Algo comum a essas leis é a lógica que estabelece uma data limite para anistiar somente aqueles que ocupam uma área irregularmente até a data de sua publicação, ou seja, o passivo, o passado. Essa lógica reforça um modelo que vigora no Brasil desde a metade do século 19: a terra é bloqueada para os sem-terra, sem posses. E uma irresolução jurídica sobre a quem pertencem às terras que no momento da Independência, eram majoritariamente públicas, permite que essas sejam sendo ocupadas de fato. Dentro dessa lógica, vigoram mecanismos que permitem às pessoas com mais recursos regularizar essas terras a posteriori. Por outro lado, para os pobres a regularização e o reconhecimento de seus direitos de posse se transformaram numa importante moeda de troca para políticos. Como é possível observar em recorrentes cerimônias de entrega de título.

Dessa forma, a terra, que é a base da vida, permanece bloqueada para a maioria da população e a irregularidade continua sendo, para as maiorias, a única forma de acessá-la.

A MP, no entanto, não trata desse assunto. Pelo contrário. Ela facilita a venda das terras públicas da União, que, em alguns Estados da Amazônia, por exemplo, constituem a maior parte do território, para quem oferecer o maior valor. Dessa forma, a aprovação da lei inviabiliza que uma solução, ainda que teórica, para permitir o acesso à terra para quem tem poucos recursos  – a utilização dessas terras públicas para construção de habitações de interesse social – se torne possível.

A preocupação em torno do assunto já tem mobilizado urbanistas, advogados, comunidades que vivem da terra e movimentos de moradia. Amanhã (23), às 18h30, uma audiência pública na Câmara de Vereadores de São Paulo irá tratar do assunto. É uma boa oportunidade para entender melhor as mudanças propostas.

A CIDADE É NOSSA

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Desfile Bloco do Beco, no Jardim Ibirapuera, em São Paulo. Foto: Divulgação/Facebook

Quem esteve em São Paulo nos dias de carnaval e circulou pelos blocos da cidade vivenciou uma experiência rara na metrópole paulistana: a ocupação das ruas pela festa. Seguir as bandas e trios elétricos era entrar em contato com a cidade de uma forma distinta daquela a que estamos acostumados: não enquadrada pelos tempos e ritmos do trabalho e da circulação, e sim embalada pelos sons da festa.

Mas, afinal, quem foram as pessoas que estiveram nas ruas brincando o carnaval e também tomando o espaço da cidade por algumas horas/dias?

É impossível responder a esta pergunta inteiramente. Uma multiplicidade de festas aconteceu dentro da festa: uma enorme variedade de músicas e ritmos, mas também de fantasias, ironias e, particularmente neste carnaval, de palavras de ordem, como uma espécie de continuação de junho 2013, que não acabou…

Neste curtíssimo espaço, vou falar apenas de um dos gritos que esteve presente, entre tantos outros, nas ruas carnavalescas: “a cidade é nossa” – uma espécie de síntese das reivindicações de movimentos socioculturais atuantes em São Paulo já há mais de uma década, que vão na direção da apropriação do espaço da cidade, especialmente os espaços públicos, por seus moradores.

A existência crescente de praças e parques, o uso cada vez mais disseminado das bicicletas, as festas, encontros e manifestações de rua: não apenas uma, mas várias mudanças nas formas de relacionamento dos moradores com o espaço público vão desconstruindo a cidade fragmentada, fechada em muros, a cidade dos enclaves e guetos, procurando ultrapassar fronteiras reais e imaginárias.

O grito “a cidade é nossa”, porém, encontra eco não apenas no carnaval e na embriaguez das baladas de rua, mas também no cotidiano de uma cidade que tem negado possibilidades de existência para centenas de milhares de moradores, recusando sua permanência em casas, bairros, quebradas e ocupações onde construíram territórios de vida lá onde existia apenas mato, abandono ou degradação. As lutas pela moradia e contra remoções presentes nesses territórios se somam a uma diversificada e potente cena político-cultural que afirma a riqueza destes lugares, apesar do estigma e das políticas discriminatórias a que estão permanentemente sujeitos.

Por fim, “a cidade é nossa” é uma resposta àqueles que veem nos espaços e serviços públicos da cidade – assim como nos locais privados – apenas uma fonte de rentabilidade para os capitais investidos, sem relação ou conexão com os desejos e necessidades da gente que aqui habita. “A cidade é nossa” afirma que São Paulo é nosso bem comum, nossa propriedade coletiva. Não é do prefeito, vereador, governador, presidente, nem do partido, da empreiteira ou do juiz. Não está à venda, e, sendo nossa, só nós mesmos é que podemos decidir sobre seu futuro.

Texto originalmente publicado no Portal Yahoo!

Mudanças no FGTS e no Minha Casa Minha Vida: e os mais pobres?

Foto: @felixfranklin/Instagram

Recentemente, a equipe do presidente em exercício Michel Temer anunciou duas medidas que envolvem diretamente o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS): a liberação do saque pelos trabalhadores para o pagamento de dívidas e a revisão dos limites de renda atendidos pelo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) por meio do fundo.

Por um lado, poder sacar os recursos do FGTS é bom para o trabalhador, que pode usá-lo como bem entender, inclusive comprando ou construindo sua própria casa, em vez de depender das unidades de péssima qualidade ofertadas historicamente pelos programas públicos. Mas, por outro, essas ações depenam os recursos do fundo, que ainda são a principal fonte de financiamento para habitação e saneamento no país.

Para entender a gravidade da questão, é necessário lembrar que a política habitacional no Brasil, desde a criação do já extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), sempre foi baseada na produção de casas e apartamentos por meio dos recursos do FGTS, fundo público composto pelo recolhimento compulsório de 8% do salário dos trabalhadores com carteira assinada.

Assim, além de funcionar como uma espécie de poupança do trabalhador, o FGTS foi criado com a justificativa de financiar habitação social e saneamento. Como se trata de um dinheiro que o governo toma emprestado com juros muito baratos, pois o fundo remunera muito pouco o trabalhador – 3% ao ano, mais Taxa Referencial (TR), abaixo da inflação, e muito, muito abaixo dos juros cobrados pelos bancos –, o fundo pode viabilizar, em tese, o financiamento de produtos acessíveis para os mais pobres.

Mas, claro, a história de fato nunca foi bem assim. Os mais pobres, com rendimentos de até três salários mínimos, justamente aqueles que mais necessitam de habitação, quase nunca tiveram acesso às políticas de apoio para garantir seu direito à moradia. Isso porque o FGTS sempre visou preferencialmente à classe média, capaz de retornar os recursos do empréstimo para o fundo.

Além disso, cada vez mais, os recursos do fundo foram sendo usados para outros investimentos, participando do mercado financeiro em operações estruturadas, fundos imobiliários privados, compra de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) e outras atividades que nada têm a ver com necessidades de interesse público ou social. Ou seja, a história mostra que o que ocorreu foi uma espécie de captura do dinheiro do trabalhador, a baixo custo, para ser usado no mercado financeiro, garantindo altos rendimentos às grandes empresas envolvidas nas operações.

Em 2009, a criação do Minha Casa Minha Vida, apesar de todas as suas deficiências, incorporou pela primeira vez os mais pobres às políticas de financiamento habitacional, ao ampliar de forma significativa os subsídios públicos, mobilizando para isso recursos do orçamento do governo federal. Esse subsídio cobre praticamente 100% do valor dos imóveis destinados às pessoas de baixa renda ou sem renda alguma – a chamada “faixa 1” do programa. Para as outras faixas de renda, inclusive aquelas historicamente já atendidas por outras políticas públicas, o programa usa recursos do FGTS, e, quanto menor a renda, inclui também subsídios.

As mudanças anunciadas pelo governo, aliadas à paralisação da produção de unidades para a faixa 1 do programa, à imposição de um teto para os investimentos públicos, reajustável nos próximos 20 anos apenas com base na inflação, ao aumento para R$ 1,5 milhão do valor limite dos imóveis que podem ser financiados com recursos do FGTS, e também ao aumento do teto de renda familiar – agora de R$ 9 mil – para conseguir financiamento via Minha Casa Minha Vida, fazem com que tenhamos regredido décadas nas políticas públicas de habitação para a população mais pobre. É que, com essas alterações, a política pública passa novamente a privilegiar as famílias com maior renda, sem que o Estado tenha qualquer fonte de financiamento para viabilizar uma política habitacional para os mais pobres.

Todo esse cenário faz com que ações como a #PaulistaOcupada, ocupação liderada pelo MTST no entorno da sede da Presidência da República, na mais importante avenida de São Paulo, que reivindica uma política habitacional para as faixas de renda mais baixas, se multipliquem pelo Brasil, já que a perspectiva é que a situação habitacional no país, já bem ruim, piore ainda mais.

Publicado originalmente no Portal Yahoo!

O dilema da exclusividade: é possível equilibrar a democratização dos espaços e a preservação de suas qualidades?

Fernando de Noronha. Foto: @Rosanetur/Flickr

Você já deve ter tido a experiência de visitar um lugar paradisíaco, uma praia, uma montanha, um povoado remoto ou uma cachoeira deserta e, alguns anos depois, ao voltar lá, encontrá-lo lotado de carros, barraquinhas, lixo, cheio de gente.

A experiência do contato com uma natureza pouco antropizada, ou seja, pouco transformada pelos homens, é única e excepcional. É ela que confere uma qualidade para lugares que, por serem inacessíveis ou muito distantes dos eixos de concentração demográfica e dinâmica econômica, são muito pouco visitados e, portanto, muito preservados em suas características naturais originais. Esses ecossistemas são, entretanto, frágeis e facilmente destruídos pela presença intensa de turistas. E são normalmente os turistas pioneiros ou os moradores eventuais que usam esses lugares como refúgio que mais resistem à popularização de tais paraísos, pensando justamente na preservação dessas qualidades excepcionais. Contra essa posição estão certamente os empreendedores do turismo, vendo ali uma possibilidade de rentabilidade econômica, e, muitas vezes, os moradores originais ou nativos que veem o aumento da presença de visitantes como uma perspectiva de geração de trabalho, de mobilidade social, de oportunidades que até então não existiam.

Dessa forma, arma-se um conflito, polarizado entre um desejo de preservação, que acaba se apresentando como manutenção de “exclusividade”, e o de “desenvolvimento”, que, conhecendo a história de inúmeros locais como esses no país, acaba por atrair tantos negócios e tantos turistas que as paisagens naturais e culturais que encantavam os visitantes acabam por ser destruídas.

Em tese, a legislação ambiental ou mesmo as regras de uso e ocupação municipais deveriam definir limites, estabelecendo padrões, assim como vetando ou permitindo a ocupação em determinados locais. Mas, na prática, não é o que ocorre. Para além dos condomínios que são abertos em áreas de preservação ao arrepio da lei e que se mantêm abertos e se consolidam graças a liminares em um judiciário que só conhece a regulação da propriedade, e não suas funções socioambientais, as próprias normas de ocupação não dão conta desse dilema.

Nas cidades, as leis de zoneamento são uma tentativa de resolver essa situação. As áreas exclusivamente residenciais, por exemplo, são uma forma de manter as características paradisíacas de bairros tranquilos, mas às custas de um modelo de ocupação para poucos, com pouca diversidade, com pouca gente, voltado apenas para as altas rendas. Isso significa que não há outra forma de preservação senão a elitização? Será que não somos capazes de organizar formas de controlar densidades e relação com o meio físico sem que isso implique em cair na equação maldita do local paradisíaco exclusivo e vetado para as maiorias versus o espaço destruído e depredado disponível para as massas?

É preciso buscar soluções, fórmulas que ainda não estão prontas para enfrentar essas questões. Sua formulação passa por romper, antes de mais nada, com a lógica predatória que (des)organizou a forma de ocupação do território do país desde sempre. Mas, seguramente, também por outras formas de diálogo entre os interesses envolvidos.

Originalmente publicado no Portal Yahoo!

São Paulo, 463 anos. Gestão Doria, 25 dias

Foto: @nandobenevenute/Instagram

Foto: @nandobenevenute/Instagram

Para além de anúncios ainda genéricos em seus primeiros 25 dias, o novo prefeito da cidade de São Paulo, João Doria Jr., já tomou algumas medidas concretas: aumento da velocidade nas marginais, extinção de modalidades de bilhete único temporal e tentativa de aumentar as tarifas de integração e o Programa Cidade Linda, que incluiu ações de limpeza urbana, com alvos como grafites e pixações e moradores de rua.

Apesar de ainda restritas, essas decisões impactam diretamente sobre uma das mudanças mais significativas que a cidade estava vivendo nos últimos anos: a ruptura com a hegemonia do automóvel sobre todas as demais formas de circulação e a ampliação das possibilidades de circulação e presença, especialmente dos jovens moradores das periferias mais distantes, o que, em conjunto, vinha mudando a cara da capital paulista.

O aumento da velocidade das marginais é um recuo explícito na tentativa de reversão de uma submissão histórica aos automóveis e sua ditadura da velocidade a qualquer custo, inclusive de vidas humanas. No caso do Cidade Linda, trata-se do apagamento da presença de jovens do espaço público, especialmente dos que vivem nas periferias, transcendendo sua presença física ao invisibilizar marcas da expressão simbólica desses grupos na cidade. Essas medidas se aliam à reversão da presença física desses mesmos jovens nos espaços centrais e mais visíveis da cidade, que foi sendo crescentemente garantida através do aumento da mobilidade conquistada com a integração entre ônibus e trilhos, a priorização do transporte coletivo e as várias modalidades de bilhete único.

É essa presença, física e simbólica, que tem mudado a cara da cidade, nos lembrando quem é  a maioria dos habitantes de São Paulo, que estas primeiras medidas tomadas pelo novo prefeito  desejam agora reverter. Os grafites começaram como presença transgressora na paisagem da cidade, mas de certa forma foram a ela  incorporados, especialmente quando o ex-prefeito Fernando Haddad promoveu espaços para sua realização, como nos muros da Avenida 23 de Maio ou nos Arcos da Rua Assembléia, agora pintados de cinza. A ação de Doria, portanto, além de tentar invisibilizar essa expressão e seus protagonistas, busca apagar da cidade as marcas da gestão anterior, em uma clara lógica político-partidária.

Para além da disputa de “marcas” de gestões vinculadas a partidos distintos, apagar grafites e pixações carrega sentidos mais amplos. Isso fica evidente, por exemplo, no caso da Ponte Octávio Frias de Oliveira, conhecida como Ponte Estaiada, ícone de uma São Paulo corporativa e globalizada. Sua escolha como “símbolo” da cidade projeta a imagem de uma centralidade de alta renda, dependente do automóvel e vinculada à arquitetura que o complexo imobiliário financeiro implantou na cidade, desprezando sua heterogeneidade. Desde sua inauguração, o local  já foi  alvo de protestos por não permitir a circulação de ônibus ou bicicletas. Justamente em uma ação de contestação a tudo isso, a ponte foi pixada. Numa ação muito eloquente da mais nova batalha desta  guerra simbólica,  o novo prefeito não só mandou apagar os pixos, como também instalar ali  câmeras de segurança  e policiamento por meio da GCM 24 horas  no local.

Essas medidas, entretanto, não estão sendo implementadas sem contestação e resistência, haja vista os protestos que já têm tomado as ruas e as redes sociais e a ação contrária às ações municipais no judiciário. Daqui para frente, devemos esperar mais embates ainda, conforme se concretizem outras medidas de mesmo teor, como a proposta anunciada de confinamento da Virada Cultural no Autódromo de Interlagos.  Essa proposta tem tudo a ver com a proposição por parte do novo prefeito de criar “grafitódromos”, locais específicos onde grafiteiros e pixadores possam se expressar, demonstrando total ignorância sobre a natureza dessas expressões.

São Paulo não merece esse tipo de retrocesso como presente de aniversário. A ocupação heterogênea dos espaços públicos, com todo conflito que isso tem provocado, é uma enorme conquista. Cabe a nós ter a imaginação e inteligência político-social para administrar essa nova realidade e transformar a gestão desses espaços de forma a melhor acolher essa diversidade. Negá-la, reprimi-la e apagá-la apenas exacerbará os conflitos.

Publicado originalmente no portal Yahoo!

O aumento inovador no transporte público de São Paulo

MAPAS UNIDOS

Desde o último dia 8, moradores de várias cidades do estado de São Paulo pagaram  mais caro para se locomover de ônibus, trem e metrô. Na capital, o valor das tarifas básicas de nenhum dos modais mudou. Mas, mesmo assim, muita gente pagou bem mais  para andar pela cidade entre domingo e esta quarta-feira (11). Isso porque o prefeito João Doria e o governador Geraldo Alckmin aumentaram o preço da integração entre os sistemas.

O congelamento da tarifa durante os quatro anos de mandato era uma promessa de campanha de Doria, que logo depois de eleito reduziu o compromisso para o primeiro ano de governo. O posicionamento do prefeito causou constrangimento a Alckmin, que teria que arcar sozinho com os custos políticos de aumentar ainda mais uma tarifa já bastante elevada em meio à crise econômica, e assim a estratégia adotada foi  congelar as tarifas, mas compensar  com grandes aumentos nas integrações, além de cortes nos bilhetes temporais.

Uma decisão liminar do juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho determinou que o aumento das integrações não deveria entrar em vigor. Um oficial de justiça tentou notificar o governador no dia 6, dia da decisão do magistrado, mas ele não estava no Palácio dos Bandeirantes. Assim, o Governo do Estado alegou não ter sido notificado e a tarifa da integração não só aumentou no domingo (8) como continuou em vigor até a noite de ontem (10), quando um outro juiz indeferiu o pedido de Alckmin para revogar a decisão anterior.

Em São Paulo, é possível usar o mesmo bilhete eletrônico para pagar ônibus e trilhos (trem da CPTM ou metrô) que, antes do aumento custava R$ 5,92. Com o reajuste, o chamado bilhete integração  passou para R$ 6,80, alta de 14,8%, bem acima da inflação do período, de 6,43%. Também houve aumento de RS 230 para R$ 300 no valor do bilhete mensal. Além disso, nos terminais de ônibus de Piraporinha, Diadema, São Mateus, Campo Limpo e Capão Redondo, para quem usa o transporte intermunicipal que chega ou sai desses terminais,  a entrada passaria a ser paga a partir do dia 22, com valores que variavam entre R$ 1,12 e R$ 1,65. Esses aumentos, promovidos pelo governo do Estado, estão, entretanto,  por ora suspensos pela Justiça.

Na cidade também existem modalidades de integração temporal, de responsabilidade da prefeitura, em que o usuário paga um valor para andar livremente durante um determinado período. A modalidade semanal, que permitia a realização de quantas viagens o usuário quisesse durante sete dias por trilhos ou ônibus por um valor total R$ 60, foi extinta, assim como o bilhete mensal temporal estudantil, permanecendo apenas a possibilidade de compra de cotas limitadas. Essas decisões ainda estão em vigor.

Na prática, para muita gente, especialmente para quem mora mais longe, e que usa vários modais, essas medidas tornariam bem mais caro se locomover em São Paulo. Já quem vive próximo de estações de metrô ou corredores, condição que normalmente significa maior renda, pode não ser afetado diretamente pelo aumento. O mapa acima mostra os percursos feitos pela maioria dos passageiros que usam os ônibus da cidade, tendo embarcado anteriormente em trens ou no metrô, de acordo com os  dados mais recentes da  SPTrans, de outubro de 2016. A Secretaria Estadual dos Transportes não  disponibiliza dados sobre o volume de passageiros que entram nos trens e metrôs oriundos de viagens de ônibus com bilhete de integração.

Mas mesmo com essa limitação, é possível detectar uma geografia do aumento: moradores da Zona Leste, especialmente de sua periferia, seriam os mais afetados, assim como aqueles das regiões  Sul e Norte.

Além disso, como vários municípios da Grande São Paulo aumentaram as tarifas dos ônibus, quem mora em cidades como Osasco ou Cotia, por exemplo, e trabalha em São Paulo, ainda terá que arcar também com os aumentos municipais das tarifas, o que, aliado ao aumento do bilhete de integração , encarece enormemente o custo das viagens.

A integração dos modais metropolitanos foi uma das medidas tomadas pelos governos  municipais e estadual de São Paulo que mais incidiu positivamente no aumento da mobilidade de quem vive na cidade e  nos municípios vizinhos. É exatamente essa política – junto, evidentemente, com o aumento da renda, inclusive entre os mais pobres, que ocorreu  na cidade entre 2003-2013 – que provocou uma das transformações mais importantes no uso dos espaços da cidade, com a democratização de lugares como a Av. Paulista, os parques e equipamentos e o uso mais intenso dos espaços públicos da cidade.

O encarecimento agora, em conjunto com a perda de poder aquisitivo, seguramente vai impor um retrocesso  nesse processo, restringindo novamente  o acesso aos espaços públicos, ainda muito concentrados nos bairros mais bem infraestruturados da cidade. Embora suspensos pela Justiça, esses aumentos ainda poderão acontecer  na medida em que o Governo do Estado ainda deve recorrer  da decisão liminar. Além disso,  a gestão Alckmin sinaliza que, impossibilitado de aumentar as integrações, deve subir o valor da tarifa básica para R$ 4,05.

Na nesta quinta-feira (12), o Movimento Passe Livre realizará um ato contra as medidas. A concentração está marcada para as 17 horas, na  Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, e a marcha deve seguir para a casa de Doria, no Jardim Europa. O prefeito será premiado com o Troféu Catraca na categoria Aumento Inovador.

Publicado originalmente no portal Yahoo!

Mais uma vez: quero um trem para o litoral!

Estação da Luz. Foto: @rodpeixoto/Instagram

Estação da Luz. Foto: @rodpeixoto/Instagram

Andei relendo minhas colunas no Yahoo! e acabei topando com uma, escrita em 2014, com o título “Queremos um trem para o litoral e interior”. Nela, além de reclamar dos enormes congestionamentos na volta de um feriado, comentei sobre um anúncio do governo do Estado de São Paulo, de 2013, lançando a ideia de construir uma linha de trem de média velocidade – chamado de Trem Intercidades – que, a 120 km por hora,  ligaria a capital a Campinas, Americana, Jundiaí, Santo André, São Bernardo, São Caetano, Santos, Sorocaba, São Roque, São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba.

Sim, mais de três anos depois, aqui estamos de novo xingando o sistema de mobilidade intercidades do país e imaginando que maravilha seria se pudéssemos sair de São Paulo em direção ao interior ou ao litoral confortavelmente em um trem, livre de trânsito.

Pois é. Os mais velhos vão lembrar que isso já foi assim. Até 1996 ainda existia um trem de passageiros para Santos, assim como para outras cidades do interior de São Paulo. Na verdade, a enorme malha ferroviária que cobria o Brasil, com 22 mil quilômetros, era o principal meio de transporte de passageiros e cargas até os anos 30. Em São Paulo, especificamente, essa malha era composta basicamente por ferrovias privadas, construídas por empresas que fizeram esse investimento em função dos enormes lucros e rentabilidade da produção e comercialização do café.

Mas, com a crise de 1929, e a débâcle da cafeicultura,  as empresas sofreram com a diminuição da rentabilidade das ferrovias, já que ela vinha principalmente do transporte de carga e não de passageiros. Naquele momento,  as empresas começaram a abandonar o negócio e a malha entrou em decadência. Em 1957, ela foi estatizada e uma empresa pública, a Rede Ferroviária Federal, é criada para geri-la em todo o país. No estado de São Paulo, algumas companhias de estrada de ferro paulistas já haviam sido encampadas pelo governo do Estado e, em 1971, elas formaram a FEPASA.

Nos anos 80, a malha – paulista e brasileira – se encontrava em péssimas condições. E nos anos 1990 tem início sua privatização, com a concessão de “pacotes” para exploração de transporte de carga por 20 anos, renováveis por mais 20.

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Notícia publicada no Estado de S. Paulo em 3 de outubro de 1957

O tema do transporte dos passageiros simplesmente não entrou na discussão e encaminhamento da privatização. No caso de São Paulo, a malha ferroviária que ligava a capital ao interior e a Santos, de propriedade da FEPASA, foi passada para a União como forma de pagamento de dívidas e entrou nos pacotes de privatização, à exceção das linhas de trens de subúrbio, que estão hoje sob controle da CPTM.

Moral da história: em muitos percursos os trilhos ainda estão instalados e seria possível retomar o transporte de passageiros, mas basicamente a forma como foi feita a privatização e o controle das concessionárias de carga – entre outros fatores – dificulta enormemente o reinvestimento em alternativas de transporte interestadual por trem.

E ficamos nós, mais uma vez, ano após ano, presos no congestionamento.

Publicado originalmente no portal Yahoo!

Com a Reforma da Previdência (e a aprovação do teto dos investimentos públicos), moradores das periferias não terão chance de se aposentar

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A Reforma da Previdência proposta pela equipe econômica de Michel Temer, em trâmite na Câmara dos Deputados, estabelece que a idade mínima para que homens e mulheres possam se aposentar no país passe a ser 65 anos com, no mínimo, 25 anos de contribuição previdenciária. A justificativa para impor essa idade mínima é que a expectativa de vida dos brasileiros vem aumentando nos últimos anos, o que tem onerado enormemente o fundo previdenciário.

Essa justificativa está baseada na expectativa de vida média do brasileiro, que atualmente, segundo o IBGE, é de 75,4 anos na população em geral e de 79,1 anos para as mulheres.  Porém, como toda média no Brasil, esse dado não representa absolutamente nada. Isso porque o país é marcado por uma extrema desigualdade e um dos indicadores onde isso é mais eloquente é, justamente, a expectativa de vida da população, um indicador que é fruto das condições ao longo da vida, que são, como sabemos, muito distintas a depender do pertencimento a diferentes grupos sociais, a diferentes territórios.

Em primeiro lugar, esse indicador apresenta diferenças enormes entre as regiões, os estados e entre os municípios. Santa Catarina, por exemplo, tem a maior expectativa de vida ao nascer do país, com 78,7 anos. Já no Maranhão, a longevidade média é oito anos mais curta. Mesmo em uma só cidade, como São Paulo, cuja média de expectativa de vida  está entre as mais altas do país, 77,8 anos, as desigualdades entre distritos é imensa. Segundo levantamento na Rede Nossa São Paulo, enquanto no Alto de Pinheiros, na zona oeste da cidade, distrito onde está localizada a residência do presidente Michel Temer, o tempo médio de vida está em 79,67 anos, quase um ano acima da expectativa de vida nacional média, em Cidade Tiradentes, na zona leste, esta média é de apenas 53,85 anos. No mapa é possível visualizar o tempo médio de vida por distrito. Entre os 96 da cidade, 36 apresentam médias inferiores aos 65 anos propostos na Reforma da Previdência.

Os bairros onde o tempo de vida é menor coincidem com os locais mais marcados por precariedades de todo tipo, mais distantes dos postos de trabalho e onde vive a maior parte dos trabalhadores com menores salários. Isso significa que a reforma penaliza especialmente os mais pobres, que ao longo da vida já desempenham as funções mais desgastantes e que, provavelmente, trabalharão até morrer.

Mais grave ainda é a combinação explosiva da proposta da Reforma da Previdenciária com o limite dos gastos públicos, aprovado nesta terça-feira (13), no Senado. Isso significa que investimentos importantes em saúde, moradia, saneamento e transportes públicos, por exemplo, que poderiam incidir positivamente na melhoria das condições daqueles que hoje, exatamente pela sua falta ou precariedade– além dos baixos rendimentos – apresentam os piores indicadores de expectativa de vida, não serão feitos!  Ou seja, as condições essenciais para diminuir a desigualdade do indicador não ocorrerão…

Além de todos os questionamentos sobre a necessidade e a qualidade da reforma previdenciária proposta, fica evidente o quanto ela é discriminatória, perpetuando as injustiças e desigualdades socioespaciais.

Publicado originalmente no Yahoo!

A torre da crise política… e a preservação das cidades

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Ilustrações de divulgação do empreendimento La Vue, em Salvador. Impacto na paisagem é diferente sob diferentes ângulos

As denúncias feitas pelo agora ex-ministro da Cultura Marcelo Calero sobre a pressão exercida pelo titular da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, para que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aprovasse um empreendimento na orla da Barra, bairro nobre de Salvador (BA), e o suposto conluio do próprio presidente da República com essas pressões gerou uma nova crise, derrubou um ministro, ameaça o presidente e seus auxiliares próximos e, uma vez mais, questiona os limites das práticas do uso das posições de comando nas estruturas de Estado para obter vantagens e benefícios pessoais para os agentes políticos e empresários envolvidos.

Assim como em relação ao Caixa 2, o superfaturamento de obras, as relações perversas entre empreiteiras, partidos e governos, pressões desse tipo são velhas práticas do modo de governar brasileiro que, neste momento, têm dificuldade de passar despercebidas, ou naturalizadas, como tem sido há décadas.

Mas, para além do debate do uso do Estado para benefícios pessoais, partidários e empresariais, o caso da torre na orla de Salvador, levanta outras questões da maior importância que, infelizmente, não têm aparecido no debate.

A primeira delas se refere à forma como tem sido tratados em nossas políticas urbanas os temas da paisagem, da memória, da preservação versus os processos de transformação, que, muitas vezes, implicam também em destruição. Hoje, as regras que definem o que se pode fazer em cada terreno da cidade estão geralmente definidas nas leis de zoneamento e planos diretores.

Esses, na maior parte dos casos, pressupõem que – à exceção de áreas em que um ambientalismo, claramente antiurbano, define como de “preservação ambiental” – todas as demais estão destinadas a, num futuro próximo ou distante, se transformar em torres e/ou outros produtos imobiliários lançados pelo mercado. Ou seja, justamente as dimensões da paisagem, da memória, da especificidade histórica dos conjuntos construídos têm pouca ou nenhuma relevância.

Esses últimos, por outro lado, se entrincheiraram em um lugar específico da gestão do Estado sobre o território – os chamados “órgãos de patrimônio”, que por sua vez, se definem como “gestores” daqueles bens considerados significativos e, portanto, tombados e responsáveis por sua tutela para que não sejam destruídos e nem que intervenções a seu redor atrapalhem sua fruição.

Com isso, o “patrimônio histórico”, que deveria estar integralmente embebido nos critérios do que destruir e do que preservar nos processos de transformação da cidade, acaba se transformando numa espécie de instância recursal, onde os conflitos que não tiveram vez nem voz nas decisões sobre a cidade se manifestam. Assim tem sido no caso do Cais da Estelita, em Recife, assim como e do Teatro Oficina, em São Paulo.

Com um pequeno, mas bem significativo detalhe: ao contrário das regras de uso e ocupação do solo que envolvem o debate público e acabam virando lei – ainda que, insisto, normalmente capturadas pelos interesses do mercado imobiliário, que é quem mais organizadamente interfere nessas questões na cidade – nas regras de patrimônio histórico raramente as definições do que pode e o que não pode ser feito em volta de um bem tombado estão claras.

São poucos os bens ou sítios tombados que tem um regramento claro do que exatamente se pode fazer a seu redor. Geralmente, são as propostas dos empreendedores que, analisadas caso a caso através de pareceres técnicos do órgão, acabam sendo aprovadas ou vetadas. Isso abre evidentemente margem para muitas interpretações e discricionariedades. Essa discricionariedade dá margem a pressões políticas de todos os lados, de quem quer aprovar, assim como de quem quer vetar.

O caso da torre da orla da Barra, em Salvador, veio à tona agora, mas é preciso dizer que esse tipo de embate ocorre às dezenas pelo país. Inclusive, com os próprios técnicos discordando de pareceres de outros técnicos e muitas vezes, com a participação do Ministério Público nas controvérsias.

Não queremos com estas considerações de forma alguma minimizar a gravidade dos fatos: um ministro de Estado usar seu cargo para fazer outro ministro mudar um parecer para viabilizar um apartamento supostamente de sua propriedade. Mas o que queremos aqui é chamar a atenção para a extrema fragilidade e subdesenvolvimento de nossa política urbana, inclusive e talvez principalmente, nos aspectos relativos ao que pode ou não ser destruído diante da máquina de crescimento econômico e rendimento financeiro que conduz nossas cidades.

A torre da crise, para além de levantar questões de corrupção, mais uma vez, mais esconde do que revela as nuances por trás disso: qual é a margem de discricionariedade? Como se dão esses processos de aprovação ? Quem define o destino da cidade? Como os cidadãos podem participar mais dessas definições? Como as decisões sobre o futuro das cidades (em sua relação com sua história e memória) podem ser tomadas de maneira mais transparente?

Publicado originalmente no blog Raquel Rolnik, no portal Yahoo!

Os embates da Praça Roosevelt e do Pôr Do Sol: construir muros e grades nunca é a solução

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Praça do Pôr do Sol depois de reunião. Crédito: Ana Flávia

Um fenômeno muito positivo para a cidade, a apropriação cada vez maior dos espaços públicos pelas pessoas, acabou gerando conflitos entre os usuários e os moradores do entorno desses locais. Pelo menos dois casos emblemáticos dessa tensão estão ocorrendo hoje em São Paulo: a Praça do Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros, na Zona Oeste, e da Praça Roosevelt, no Centro.

A Praça do Pôr do Sol nasceu como uma área verde de um loteamento de altíssima renda implantado nos anos 40 e tem um dos mirantes mais belos da cidade. Recentemente ela passou a ser muito mais frequentada, inclusive por pessoas que vêm da região metropolitana como um todo.  Esse uso intenso, que começa no pôr do sol e atravessa a madrugada, inclusive tocando música, acabou gerando uma insatisfação por parte dos moradores, na medida em que não foi acompanhado por uma mudança radical na gestão e cuidado do local de forma que pudesse dar conta da intensidade do novo uso. A partir daí, os moradores começaram a se organizar para reivindicar o cercamento da praça.

Essa também é a reivindicação dos moradores do entorno da Praça Roosevelt. O local é um importantíssimo equipamento central da cidade. Após uma longa espera por uma reforma depois de anos de abandono, moradores da vizinhança, usuários (que inclui teatros e equipamentos culturais do entorno) se mobilizaram pela sua reabertura, o que possibilitou a ocupação que existe lá hoje.  Mas o uso intenso do espaço, especialmente durante a noite, tem gerado vários conflitos entre os skatistas e os não-skatistas, os frequentadores das madrugadas, os artistas e os moradores.

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Skatistas aproveitam a Praça Roosevelt. Crédito:@Mark Hillary/Flickr

No caso das Praça do Pôr do Sol e da Roosevelt, a resposta da prefeitura e da Câmara Municipal à reivindicação do cercamento foi a proposta para que os locais deixem de ser praças e passem a ser parques. Dessa forma, como outros parques, passariam para a gestão da Secretaria do Verde e Meio Ambiente e teriam direito a eleger um conselho gestor, ter um horário de funcionamento pré-determinado, podendo também ser cercado para que esse horário possa ser cumprido.

O grande problema de casos como esses não é o conflito, mas a forma de lidar com ele e as respostas elaboradas e implementadas para enfrentá-los. Fazer uma cerca ou um muro é exatamente uma forma de não lidar com o assunto. Ou seja, na medida em que você tem uma incapacidade de resolver uma questão através de um processo de gestão que possa trabalhar com a diversidade, com o diferente, com as distintas opiniões e construir uma equação para isso, se constrói um muro, uma cerca, se impede o acesso…

Por outro lado, como se observa pela foto acima, a situação de devastação e precariedade após uma madrugada de intenso uso demonstra a urgência de se implantar um novo tipo de cuidado com o local, que envolve uma nova forma de limpeza, de organização das várias formas de uso e de pactuação com os usuários.

Evidentemente, um muro ou uma cerca não vai resolver o conflito. Muito pelo contrário, vai exacerbá-lo. Aqueles que estão sendo privados do uso não vão aceitar a medida e vão se revoltar. Por outro lado, com muros e cercas acabamos destruindo a paisagem da cidade e o caráter público e aberto desses espaços por uma incapacidade de construir uma forma de gestão que dê conta das complexidades e das dificuldades presentes.

No caso da Praça do Pôr do Sol, acaba de ocorrer uma eleição para seu Conselho Gestor. O resultado foi muito importante, porque um grupo de moradores da região se organizou para disputá-lo com a proposta de não cercar a praça, mas de enfrentar os conflitos sob a forma de uma gestão compartilhada, em diálogo com moradores e usuários.  A tranquilidade e a possibilidade de moradores dormirem e terem sossego é, absolutamente, um direito. Mas é também um direito a cidade oferecer espaços onde as pessoas possam conviver, onde possam exercer suas formas de ser.

Texto originalmente publicado no Portal Yahoo!

Resistência da Eletropaulo em enterrar fios deixa paulistanos no escuro

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@fiação_sp/Instagram

Há alguns dias, a chuva forte em São Paulo causou o rompimento de diversas redes elétricas pela cidade e deixou bairros inteiros no escuro por mais de 24 horas. Na Vila Leopoldina, por exemplo, moradores revoltados bateram panelas durante a noite para chamar atenção para o problema, recorrente na região.

Imediatamente após, como sempre ocorre a cada verão chuvoso, as árvores que caíram sobre os fios foram culpadas. Elas estariam fora de lugar, atrapalhando a fiação? Evidentemente,  não: as árvores, além de terem o importante papel de amenizar o clima na cidade, têm uma importante função paisagística e de qualificação do espaço urbano. Já os estimados 10 mil quilômetros de fiação elétrica da cidade é que estão totalmente fora do lugar e do tempo. Há décadas o bom urbanismo definiu as galerias técnicas subterrâneas, e não o emaranhado de fios pendurados nos postes, como o lugar mais adequado para instalação de todos os tipos de redes.

O enterramento dos fios, como já ocorre em São Paulo no centro antigo, na Avenida Paulista e na Rua Oscar Freire, entre outros locais, seria uma medida eficiente para evitar os rompimentos e acidentes em função da chuva, além de representar uma grande melhoria na paisagem da cidade. Mas a Eletropaulo, empresa privada que fornece a luz e é “dona” dos postes, resiste à ideia.

Quando o sistema elétrico foi privatizado, “esqueceram” de incluir nas cláusulas contratuais os compromissos e as metas relativas ao enterramento da fiação, especialmente nos centros urbanos com maior densidade de carga. Evidentemente esse aspecto diminuiria as margens de lucro e taxas de retorno dos investidores privados interessados no negócio.

Em 2005, uma lei municipal, regulamentada em 2006, determinou que a empresa e outras concessionárias de serviços via cabo, como telefonia e internet, enterrassem 250 quilômetros de fios por ano, sendo que todos os custos deveriam ser assumidos por elas. Finalmente, em janeiro do ano passado, as áreas prioritárias do projeto foram divulgadas no Programa de Enterramento de Redes Aéreas, uma exigência da lei aprovada dez anos antes. Mas, em junho do ano passado, a Justiça acatou pedido do Sindicato das Indústrias de Energia no Estado de São Paulo (Sindienergia), que representa a Eletropaulo, e suspendeu o programa, emperrando mais uma vez o enterramento da fiação.

O rompimento de cabos e a interrupção do fornecimento de energia provavelmente significam também para a Eletropaulo um grande prejuízo, não só em função dos custos crescentes de restabelecimento das redes, mas também porque o produto que ela vende aos consumidores deixa de ser comercializado durante os apagões. Ainda assim, a empresa resiste em relação a investir no enterramento.

A empresa mantém seus postes em espaços públicos e os aluga para outras concessionárias. Ou seja, os postes são uma fonte de receita para a Eletropaulo, ainda que provavelmente se trate de uma receita residual, pouco significativa diante da lucratividade do fornecimento de energia elétrica.

A Eletropaulo fala em custos altíssimos para a implantação das galerias, que seriam repassados para os consumidores, algo em torno de R$ 100 bilhões, valor que segundo vários especialistas em custos de infraestrutura parece bem inflado. Por outro lado, são várias as concessionárias e redes que hoje usam os postes para pendurar seus fios que poderiam usar também as galerias técnicas subterrâneas. Parece viável um investimento compartilhado, que produzirá benefícios não só para a cidade, mas também para as empresas que garantiriam maior estabilidade para os serviços que prestam.

Mas, infelizmente, as concessionárias privadas de serviços públicos que, em tese, deveriam estar comprometidas com as dimensões públicas da cidade – o que incluiu não apenas o serviço em si, mas também o impacto que o modo de execução deles tem na paisagem e na vida de pessoas, já que usam o espaço público – não estão nem um pouco preocupadas.

Logo após sua eleição, o novo prefeito de São Paulo, João Doria Jr., disse que, estando à frente da prefeitura, a lei seria cumprida, ainda que ele não tenha se comprometido com o programa de enterramento em seu programa de governo. Vai ser uma boa oportunidade para futuro prefeito lidar com a ineficiência do setor privado e os problemas que decorrem da privatização de um serviço essencial.

Publicado originalmente no portal Yahoo!