A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #1: Chuvas e Enchentes

Até agora, são 69 mortos só na região metropolitana de Belo Horizonte. Ontem, foi a vez de São Paulo. Depois das fortes chuvas, a cidade parou em importantes vias da cidade, como as marginais dos rios Pinheiros e Tietê. Pior que isso, famílias da periferia estão desabrigadas, em razão de estragos nas suas residências decorrentes de deslizamentos. Insistimos que o problema não é a precipitação, e sim a organização urbana precipitada, que desfavorece os mais vulneráveis. Em um panorama de mudanças climáticas, esses chamados desastres tendem a se agravar.



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Recomeço da temporada de chuvas: efeitos dos deslizamentos e alagamentos evidenciam a ausência de planejamento territorial

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Marginal Pinheiros, em São Paulo. Crédito: Gabriel Cupaiolo/Instagram

Muitas vezes vivemos eventos climáticos excepcionais. Mas o que já sabemos é que em várias regiões do país, especialmente no sudeste, os verões chuvosos são marcados por temporais e volume de chuva extremamente concentrado. O que é absolutamente chocante é ver que, em todo verão, se repetem tragédias decorrentes dos alagamentos e deslizamentos. O grande problema não são as enchentes e desmoronamentos em si, mas o que está no meio do caminho deles. Ou seja, os rios, quando enchem, alagam as casas e os bairros onde as pessoas vivem.

Engana-se quem acha que esses são problemas restritos a assentamentos irregulares e favelas. A ocupação de áreas sujeitas a enchentes e deslizamentos está presente no modelo mesmo de uso e ocupação do solo no nosso país, que não considera as necessidades que os rios, os córregos e as águas têm de se movimentar durante o período chuvoso.

Os rios foram sendo canalizados e tiveram suas margens utilizadas para aumentar a área urbanizável, abertas para o loteamento e promoção de atividades econômicas e residenciais.

Ou seja, não há planejamento do uso e ocupação do solo no Brasil. Existem leis de proteção que são ou não obedecidas a depender da coalizão que naquele momento tem a responsabilidade de gerir o território. Mas não há um mapa prévio que coloque mais claramente quais são as condições de ocupação de cada lugar e que sirva como base essencial para que se possa pensá-la no país.

Essa é uma questão que não apenas não está resolvida como sequer está na pauta das políticas públicas. Quando a gente fala da questão urbana no país, nos debates eleitorais, não se fala disso. Só se fala em ‘quanto dinheiro vai ter para construir mais casas?’, ‘quanto dinheiro vai para obras de infraestrutura?’. Mas o tema das formas de ocupar o território, de como podemos entrar em uma sintonia melhor com o nosso planeta, evitando as tragédias, não é objeto nem de debate nem de políticas públicas. É algo que fica pairando sobre a discussão e nunca entra no centro do debate.

Esse foi o assunto da minha coluna desta semana na Rádio USP. Ouça o comentário completo aqui.

As chuvas vêm aí: como estão as vítimas hoje e o que foi feito para prevenir novas tragédias?

Em breve começa o verão e, com ele, a temporada de chuvas em algumas regiões. Infelizmente, isso nos faz  lembrar situações que vivemos no ano passado em alguns lugares como o Rio de Janeiro, São Luiz do Paraitinga, em São Paulo, e a própria capital paulista. Muitas pessoas ficaram desabrigadas por causa das chuvas, que mais uma vez devem voltar a castigar o país. Mas como será que está a situação dos desabrigados quase um ano depois dos temporais?

Por acaso, nas últimas semanas eu acabei encontrando vítimas das enchentes em três diferentes lugares do país. Em Niterói, por exemplo, conversei com as vítimas do Morro do Bumba e de outras comunidades. Em todos os lugares, a situação é bastante preocupante, evidentemente em escalas bem diferentes, já que o número de atingidos varia de uma cidade para outra.

Em Alagoas, por exemplo, 47 mil pessoas ficaram desalojadas por conta das enchentes dos rios Mundaú e Canhoto que atingiram mais de 15 municípios no Estado. Lá pude testemunhar gente morando em barracas provisórias e ouvi denúncias de que nem mesmo cestas básicas e auxílio-aluguel foram providenciados para muitas das famílias.

Já em São Luiz do Paraitinga mais ou menos 2.400 pessoas ficaram desalojadas. A demora do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo) em fazer o parecer de alguns casarões que eram tombados está impedindo que as famílias comecem a reconstruir suas próprias casas, apesar de existir crédito para isso. O resultado é que muitas famílias ainda estão abrigadas em casas de parentes ou vivendo de forma totalmente precária.

Passados alguns meses, desligados os holofotes das câmaras de televisão e silenciados os microfones dos rádios, o que pude perceber é que boa parte dos desabrigados não conquistou moradia definitiva e está simplesmente abandonada. Em todos esses lugares anunciou-se uma série de mediadas e, terminada a pressão, verificamos que o poder público foi incapaz de responder com presteza as demandas importantes dos cidadãos.

É lamentável que passados tantos meses nós tenhamos ainda famílias completamente desabrigadas sem receber sequer o auxílio-aluguel. Ou seja, elas é que estão arcando com todo o prejuízo. Além disso, como falei no início, as chuvas vêm de novo aí. E o que foi feito nas áreas mais vulneráveis das nossas cidades? Quais foram as ações preventivas? Mais uma vez me parece que não estamos preparando os municípios brasileiros para a ocorrência desses eventos extremos que, com as mudanças climáticas, parecem ser na verdade muito comuns e não mais excepcionais.

Em Niterói (RJ), desabrigados das chuvas encontram-se em situação extremamente precária

Ontem visitei em Niterói dois abrigos para onde foram encaminhadas vítimas das chuvas que assolaram o Rio de Janeiro em abril. São quase mil pessoas que ainda estão abrigadas em dois quartéis há seis meses. Entre elas há mais de trezentas crianças.

Segundo os desabrigados, inicialmente eles foram levados para escolas públicas e, quando as aulas retornaram, foram transferidos para os quartéis. Naquele momento, foi montada uma estrutura de apoio para oferecer serviços como limpeza, segurança, alimentação, além de trabalho de apoio social e educacional com as crianças.

Passados tantos meses, além de não ter apresentado ainda uma alternativa definitiva de moradia pra essas famílias, a prefeitura está retirando todos os serviços que estavam sendo oferecidos. Em um dos quartéis, a situação é de total abandono.

Segundo os moradores, a prefeitura tem pressionado pra que eles deixem os abrigos e usem o auxílio moradia de R$ 400 mensais que está disponível. No entanto, as famílias que estão lá não conseguem alugar uma casa, seja por conta do valor do auxílio, seja pela exigência de fiador, ou até mesmo porque muitas vezes os proprietários não aceitam alugar imóveis para famílias com mais de cinco filhos. Ou seja, sem um efetivo apoio da prefeitura, o programa de aluguel social é inviável. Além disso, as pessoas reclamam que às vezes o auxílio não é disponibilizado.

Impressiona também a absoluta falta de informação para essas pessoas. Ninguém sabe se vai receber uma nova casa ou não, se será gratuita ou não. E o mais chocante ainda é constatar que um dos quartéis já está em posse da prefeitura e trata-se de uma área enorme onde poderia ser produzida uma grande quantidade de moradias.

No fim das contas, passadas as chuvas e desligadas as câmeras da televisão, as verdadeiras vítimas, as pessoas mais vulneráveis, que perderam suas casas e tudo o que tinham, estão simplesmente esquecidas.

A Defesa Civil no Brasil e o desafio da prevenção de desastres

Para entender o funcionamento da Defesa Civil no Brasil, em primeiro lugar, é importante saber que, no âmbito do governo federal, ela está situada dentro do Ministério da Integração Nacional e ela é acionada no momento em que ocorre algum desastre que necessita de intervenção imediata. Normalmente, a Defesa Civil tem um orçamento muito pequeno, mais ou menos em torno de R$ 100 milhões por ano, o que para o país inteiro é muito pouco.

Se examinarmos a série histórica, perceberemos que todos os anos o governo acaba mandando para o congresso um pedido de crédito extraordinário, não previsto no orçamento, em torno de R$ 800 milhões. Ou seja, o governo acaba tendo que gastar quase um R$ 1 bilhão anualmente.

O que é muito curioso é que, como o Brasil é muito grande, com situações ambientais totalmente diferentes, todos os anos acontece algum tipo de desastre ocasionado por enchentes, tufões, ventanias etc. Isso varia muito de região para região, de época para época, mas podemos dizer que todo ano esses desastres acontecem.

A pergunta, portanto, é: por que já não aprovar uma receita de R$ 1 bilhão na Defesa Civil todos os anos para que não seja necessário fazer toda essa movimentação posteriormente e facilitar o repasse para os municípios?

O grande desafio, no entanto, não é dar conta dos desastres depois que eles já aconteceram, mas preveni-los, já que em muitas regiões do país eles ocorrem anualmente, nos mesmos bairros, das mesmas cidades. Então, evidentemente, existem situações que podem ser prevenidas.

Mas agora temos uma novidade importante: ao que parece, pela primeira vez, será incluído no orçamento da Defesa Civil, que vai para Congresso para aprovação, R$ 1 bilhão, um valor considerável, destinado à atuação preventiva em áreas de encosta e escorregamento nas cidades onde aconteceram mais desastres e mortes nos últimos anos.

Outro grande desafio, que vale para todas as políticas públicas do país, é o de fazer com que governo federal, estados e municípios consigam trabalhar de forma federativa. Hoje existem defesas civis em todos os estados do Brasil, mas elas são muito diferentes entre si, com diferentes níveis de equipamento e de treinamento. Ou seja, a desigualdade entre os estados é bem clara, e, além disso, a maior parte das cidades não tem defesa civil municipal.

E temos também uma outra questão que é muito importante e sobre a qual temos muito o que avançar: é interessante pensarmos os desastres não como uma questão natural, que depende das circunstâncias e do tempo. Na verdade, dependendo da situação e da maneira como se trabalha essa questão, eles são totalmente previsíveis e muitas vezes suas consequências sãos evitáveis.

O texto do Código Florestal aprovado esta semana não ajudará a prevenir tragédias como a do Rio e a do Nordeste

O texto da reforma do Código Florestal brasileiro foi aprovado na última terça-feira pela comissão especial da Câmara. Apesar de alguns recuos apresentados pelo relator, deputado Aldo Rebelo, como a retirada de poder dos Estados para a redução das áreas de preservação permanente (APP), a proposta continua não resolvendo os problemas que precisa enfrentar.

Outra mudança foi a redução para 15m – e não 7,5m como estava previsto – das faixas de mata ciliar ao longo dos rios de menos de 5m de largura. O texto atual do código define esta área em 30m.

Nas áreas urbanas, as tragédias que vimos em abril deste ano no Rio de Janeiro e, agora, em Pernambuco e Alagoas, continuarão acontecendo se as matas das APP não forem pensadas de forma a preservar a qualidade e volume dos mananciais e assim prevenir inundações e enchentes e evitar riscos para a vida das pessoas. Além disso, como eu já falei aqui, as APP precisam ser pensadas em suas diversas funções e contextos – tanto rurais quanto urbanos.

O texto só irá para votação no plenário da Câmara após as eleições. Mas a tensão que marcou a votação na comissão, com protestos de organizações ambientalistas e também de setores ruralistas, mostra que este debate ainda não está maduro o suficiente.

Segue abaixo um belo artigo da Maria Rita Kehl sobre este assunto, publicado no Estadão.

Tristes trópicos

‘E os buritis – mar, mar.’ João Guimarães Rosa

26 de junho de 2010

O deputado Aldo Rabelo é um patriota. Anos atrás, criou um projeto de lei contra o uso público de palavras estrangeiras no País. Não me lembro se a lei não foi aprovada ou não pegou. Somos surpreendidos agora por nova investida patriótica do representante do PC do B: substituir o verde-folha do nosso pendão por um tom mais chique, o verde-dólar. Nada contra a evolução cromática do símbolo pátrio. Mas não se esperava tamanho revisionismo da parte de um velho comunista: o projeto de revisão do código florestal proposto por Rabelo é escandaloso.

Ou não: se o PC do B ainda tem alguma coisa a ver com a China, nada mais compreensível do que a tentativa de submeter o Brasil à mesma voracidade do país que hoje alia o pior de uma ditadura comunista com o pior do capitalismo predatório: devastação da natureza, salários miseráveis, repressão política.

E nós com isso? Nós, que não somos chineses – por que haveremos de nos sujeitar aos ditames da concentração de renda no campo que querem nos impingir como se fossem a condição inexorável do desenvolvimento econômico? Não sou economista, mas aprendo alguma coisa com gente do ramo. Sigo o argumento de uma autoridade quase incontestável no Brasil, o ex-ministro do governo FHC e hoje social democrata assumido, Luis Carlos Bresser Pereira. A concentração de terras e a produtividade do agronegócio, boas para enriquecer algumas poucas famílias, não são necessárias para o aumento da riqueza ou para sua distribuição no campo. Nem para alimentar os brasileiros. A agricultura familiar – pasmem: emprega mais, paga melhor e produz mais alimentos para o consumo interno do que o agronegócio. Verdade que não rende dólares, nem aos donos do negócio nem aos lobistas do Congresso. Mas alimenta a sociedade.

Vale então perguntar quantos brasileiros precisam perder seus empregos no campo, ser expulsos de seus sítios para viver em regiões já desertificadas e improdutivas, quantas gerações de filhos de ex-agricultores precisam crescer nas favelas, perto do crime, para produzir um novo rico que viaja de jatinho e manda a família anualmente pra Miami? Quanto nos custa o novo agromilionário sem visão do País, sem consciência social, sem outra concepção da política senão alimentar lobbies no Congresso e tentar extinguir a luta dos sem-terra pela reforma agrária?

Meu bisavô Belisário Pena foi um patriota de verdade. Um médico sanitarista que viajou em lombo de burro pelo interior do País para pesquisar e erradicar as principais doenças endêmicas do Brasil no início do século 20. O relato da expedição empreendida por ele e Arthur Neiva pelo norte da Bahia, Pernambuco, sul do Piauí e Goiás, em 1912, virou um livro que eu ganhei do professor Antonio Candido. A pesquisa começa pela descrição do clima, ou seja, da seca, e segue a descrever a “diminuição das águas” no interior. Reproduzo a grafia da época: “Não há duvida de que a água diminue sempre no Brazil Central; o morador das marjens dos grandes rios não percebe o fenômeno, mas o depoimento dos habitantes das proximidades dos pequenos cursos e de coleções d”agua pouco volumosas é unânime em confirmar este fato. De Petrolina até a vila de Paranaguá, não se encontra um único curso perene. O Piauhy, encontramo-lo cortado (com o curso interrompido); o Curimatá, completamente sêco; para citar os maiores (…) Acresce que, em toda a zona, o homem procura apressar por todos os meios a formação do deserto, pela destruição criminosa e estúpida da vejetação”.

Os professores Jean Paul Metzger e Thomas Lewinsohn, no Aliás de domingo passado, acusam a falta de embasamento científico do projeto de Aldo Rabelo. Mas mesmo sem o aval de cientistas sérios, já é de conhecimento geral o que meu bisavô constatou em 1912: a evidente relação entre o desmatamento, a diminuição das águas e a desertificação do interior do País.

O novo código de “reflorestamento” propõe reduzir de 30 para 7,5 metros a extensão obrigatória das matas ciliares nas propriedades rurais. Uma faixa vegetal mais estreita do que uma rua estreita não dá conta de impedir o assoreamento dos rios que ainda não secaram, nem barrar a devastação pelas cheias como a que hoje vitima tantos moradores da Zona da Mata. Quem nunca observou, sobrevoando o Brasil central, que os rios que não têm mais vegetação nas margens estão secos? Outra piada é isentar as pequenas propriedades da reserva florestal obrigatória. Se até o gênio do mal que mora em mim já teve essa ideia, imaginem se ninguém mais pensou em dividir grandes fazendas em pequenos lotes “laranjas” para se valer do benefício?

Por desinformação ou má-fé, os defensores do desmatamento alardeiam que essa é uma disputa entre desenvolvimentistas e amantes do “verde”. Mentira. O objeto da disputa é o tempo. O projeto de Rabelo defende os que querem agarrar tudo o que puderem, já. No futuro, ora: seus netos irão estudar e viver no exterior. Do outro lado, os que se preocupam com as gerações que vão continuar vivendo no Brasil quando todo o interior do País for igual às regiões mais secas do Nordeste atual – algumas das quais já foram ricas, verdes e férteis, antes de ser desmatadas pela agricultura predatória. Que pelo menos contava, no início do século 20, com o beneplácito da ignorância.

Catástrofes nem tanto naturais: nota pública de organizações da sociedade civil de Pernambuco

Segue abaixo nota de diversas organizações da sociedade civil de Pernambuco sobre as tragédias causadas pelas enchentes nas últimas semanas.

Nota Pública: Catástrofes nem tanto Naturais


Produzida por organizações da sociedade civil pertencentes à ABONG, Articulação AIDS Pernambuco,  Articulação de Entidade da Zona da Mata , Fórum de Mulheres de Pernambuco e Fórum Estadual da Reforma Urbana sobre as enchentes ocorridas no estado. Essas organizações  estão trabalhando conjuntamente tanto nas questões emergenciais relativas ao atendimento às vítimas, com doações de materiais de segurança, roupas, alimentos etc; como pretendem abrir um diálogo político sobre as causas e conseqüências desta tragédia.

Dez anos atrás, as populações da Zona da Mata de Pernambuco sofreram com enchentes que destruíram casas, comércio, plantações, prédios públicos, ruas, caminhos. Ações emergenciais e de reconstrução foram feitas. Assim, tudo voltou ao seu lugar.

Dez anos depois, as chuvas do inverno nordestino provocaram enchentes em proporções infinitamente mais devastadoras do que em 2000. Uma tragédia da natureza? Não. Uma catástrofe social, política, econômica e ambiental. Uma catástrofe nem um pouco natural.

Os números, ainda imprecisos e incompletos, nos dão a dimensão do que deixou de ser feito, do que continua a se perpetuar por muito tempo. A cidade de Barreiros, na Zona da Mata de Pernambuco tem 68, 3% de sua população desabrigada. Água Preta, na mesma área, tem 41,4% de população desabrigada. Em Murici, no estado de Alagoas, o percentual é de 55,7%.

Olhar esses números nos provoca estarrecimento. Ser parte desses números significa um sofrimento intenso, sofrimento que atravessa todas as dimensões do tempo:  passado, presente e futuro. E, para nós, é na perspectiva dessas milhares e milhares de pessoas que devemos analisar, entender e construir estratégias políticas de atuação emergencial e de incidência política para que nada volte ao lugar de sempre, marcado por precariedade, exclusão e ausência de direitos.

Sabemos que o que causou uma tragédia de tão grande proporção foi a ausência de políticas estruturadoras como, por exemplo, planos de habitação e regularização fundiária para áreas urbanas e rurais; políticas de saneamento ambiental, onde estejam incluídas as dimensões de esgotamento sanitário, drenagem, coleta regular e efetiva do lixo; políticas econômicas e de trabalho que eliminem a precariedade das/ os trabalhadoras/es vinculadas/ os à indústria da cana de açúcar; reforma agrária em seu sentido pleno.

É a ausência dessas políticas que tem afetado, inclusive, as ações emergenciais realizadas tanto pelo estado, quanto pela sociedade civil em que pesem os esforços que estão sendo realizados.  As precárias condições das estradas e, em especial, o acesso as áreas rurais fazem com que não se tenha nem informações precisas do que se passa com essas populações e impeçam a chegada das doações. Muitas localidades ainda não têm a energia elétrica restabelecida. A limpeza das vias públicas se dá de modo muito lento, dada a insuficiência de equipamentos e pessoal. Os abrigos públicos, geralmente em locais inadequados, não podem receber mais ninguém, o que faz com que muitas pessoas estejam abrigadas em casas de parentes e amigos/as. Dessa forma,  há  o risco de uma responsabilidade pública se transformar em uma questão privada.

A situação de saúde dessas populações se encontra vulnerabilizada, não só em função das enfermidades e epidemias típicas de momentos como este, mas também dos riscos de agravamento de doenças crônicas, dado que, em muitas situações, é impossível ter  acesso aos medicamentos necessários via rede pública de saúde porque essas estão com suas estruturas destruídas ou comprometidas.

As escolas que não foram destruídas servem de abrigo, o que significa a impossibilidade de retorno das /dos estudantes às escolas, o que afeta não apenas seus aprendizados, mas também significa vulnerabilidade nutricional, já que, para muitas famílias, a alimentação fornecida pela escola é a garantia de alimento diário para as crianças e adolescentes.

A situação econômica dessas populações se já era bastante grave, torna-se absolutamente caótica. Isso porque  tanto agricultura familiar perdeu grande parte ou a totalidade da sua produção, como as mulheres e homens que trabalhavam penosa e precariamente na cana de açúcar não têm mais onde trabalhar, pois várias usinas da região foram também afetadas fortemente pelas enchentes. O comércio dessas cidades é praticamente inexistente e antes das enchentes era, em sua maioria, informal. Ou seja, a maioria da população atingida pelas enchentes não tem nenhum FGTS para sacar, em que pese a liberação feita pelo governo federal.

Não podemos esquecer que se essa tragédia afeta toda a população dessas cidades, são as mulheres que recebem seus mais fortes impactos, pois, dada a divisão sexual do trabalho que marca a nossa sociedade, são elas as responsáveis pela alimentação, cuidado com a saúde, limpeza, atenção às crianças e idosos/as. Sabemos que os homens em várias dessas localidades começam a migrar para outros locais em busca de alguma condição de existência, deixando para trás as mulheres em situações de crua existência.

Fazemos essas considerações por termos a convicção política que não é possível tratar a tragédia que se abate sobre os estados de Pernambuco e Alagoas como sendo algo da ordem da natureza e que se divide em etapas de emergência e reconstrução, como se fosse possível que tudo possa voltar ao mesmo lugar; como se a emergência ficasse restrita as horas em que a chuva cai, os rios enchem, as pessoas se desabrigam, a sociedade se mobiliza com doações e o Estado distribui e limpa e cria políticas emergenciais. E ai, depois desse momento, quase sempre breve – o tempo em que duram as manchetes de jornais – a vida volta ao normal em sua reconstrução.

Para nós, as urgências dessas populações existem há muito mais do que 10 dias ou 10 anos. São mulheres e homens que vivem seus cotidianos em estado de emergência há muito tempo. O momento da reconstrução só fará sentido humano se suas ações alterarem radicalmente as condições de vida dessas pessoas e as nossas condições de vida. Isso porque essa é uma tragédia que diz respeito a todas e todos. É um problema nosso.

É preciso compreender que não há exatamente o que reconstruir. Não é um recomeço porque as pessoas perderam não apenas bens materiais, os parcos bens materiais que duramente conquistaram. As pessoas perderam suas histórias, seus trajetos, lembranças, memórias, referências. Não há lugar para voltar. É preciso, portanto, começar de novo, criar novos lugares, criar outras condições de existência, possibilitar não vidas cruas, mas vidas dignas.

Essa é a nossa luta e o nosso compromisso. Esse é o sentido das ações políticas que estamos fazendo, tanto no plano das ações diretas, junto às populações, quanto e especialmente na ação dirigida ao Estado. O que foi perdido não volta, mas sabemos que ação política comprometida com a igualdade e a dignidade para todos e todas é o único caminho para possibilitar a essas mulheres e homens horizontes e futuros.

Assinam esta nota:

Casa da Mulher do Nordeste
Centro de Mulheres de Joaquim Nabuco
Centro das Mulheres do Cabo
Centro de Cultura Luiz Freire
Centro Sabiá
CEAS
CENDHEC
ETAPAS
FASE
Fórum de Mulheres de Pernambuco
Grupo Curumim

Assessoria de Imprensa:

A articulação com os veículos de comunicação está sendo realizada por um grupo de jornalistas integrantes das diferentes organizações:

Ana Célia Floriano: 81 9924.4575
Cirlene Menezes: 81 9829.6200
Diogo: 81 9256.6343
Emanuela Marinho: 81 9193.2315
Laudenice Oliveira: 81 8829.5868
Paulo Lago: 81 9115.7655
Flora Noberto: 81 9282.5443
Paula de Andrade: 81 9921.5409

Ampliar a marginal repete erro histórico do urbanismo paulista. Mais enchentes e colapsos do sistema viário.

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Um estudo publicado na quarta-feira, 9, no jornal “O Estado de S. Paulo”, mostrou que a construção de novas pistas na marginal do Tietê terá como conseqüência a redução da área permeável da cidade. É verdade que haverá uma compensação ambiental, mas nem todas as árvores serão plantadas exatamente na marginal.

No mesmo dia o governador José Serra negou que as obras tenham contribuído para o transbordamento do rio, o que não ocorria há dois anos. Segundo ele, a ampliação das pistas não vai tirar um metro quadrado de permeabilidade do solo por causa da compensação ambiental. E o Ministério Público quer paralisar as obras da marginal, que mal começaram.

Em primeiro lugar, não é verdade que a construção de novas pistas na marginal não diminuirá a permeabilidade do solo. A cidade vai sim perder permeabilidade. Com essa obra serão perdidos 19 hectares – como se fossem 19 quadras da cidade de área permeável virando asfalto. A compensação ambiental, por meio do plantio de árvores, não irá compensar isso, pois as árvores serão plantadas em áreas verdes, que já são permeáveis hoje.

Mas é importante explicar que não é só porque perderemos esses 19 hectares que as enchentes aumentarão. No temporal de terça-feira houve sim um volume de água excepcional. Mas volumes de água excepcionais irão acontecer muitas vezes daqui para frente. A principal questão é que quando você coloca todo o sistema viário principal da cidade amarrado em cima dos rios, sempre que há um alagamento ele fica totalmente paralisado.

Por essa razão, o alargamento da marginal do Tietê é um erro urbanístico. É repetir o erro que já foi feito na história da cidade, fazer com que ele seja reiterado. E a prova disso foi a enchente que acabou de acontecer.

Mas não é só isso. Um problema é a área impermeável lá embaixo, ao lado do rio. Outro, mais importante, é a quantidade de área sendo impermeabilizada mais para cima, de onde vem a água que enche o rio. O Tietê tem pelo menos 16 afluentes, e esse volume todo desce das áreas altas, com terra e lixo. Essa mistura vai assoreando os rios e córregos e a própria calha do Tietê e do Pinheiros – e, com cada vez menos chuva, ocorrem mais alagamentos.

Podemos resolver esse problema do assoreamento de duas formas. A primeira é que está na cara que nossa cidade limpa está cidade imunda. A quantidade de lixo aumentou e esse lixo se acumula nos rios. Se o lixo se acumula porque o povo é mal educado, então temos que investir em campanhas, como fizemos com o fumo e com a lei seca, para que as pessoas não joguem mais lixo na rua. Mas é fato que o serviço de varrição foi reduzido, tanto que há um monte de gari desempregado agora.

E não basta apenas manter as galerias limpa, temos que coletar todo o lixo. Não pode haver nenhum pedacinho de papel no chão em lugar nenhum da cidade, incluindo nos assentamentos informais de baixa renda, que também precisam de coleta de lixo.

Outra questão é que existe algo chamado planejamento do uso e da ocupação do solo. Se você ampliar a cidade para qualquer lado, indiscriminadamente, impermeabilizando cada vez mais, teremos cada vez mais problemas de drenagem. É preciso planejar a expansão urbana. E isso é uma coisa que até hoje, na metrópole de São Paulo, simplesmente não existe.

Não há planejamento metropolitano. Cada município faz o que bem entende, não há dialogo entre eles. E os rios, infelizmente, não obedecem a limites municipais. Uma decisão tomada em Cotia ou em Barueri vai interferir naquilo que acontecerá na capital, pois o sistema hídrico é interligado.

O que o caos de terça-feira demonstrou foi que o modelo que vigorou até agora, que é pegar os rios, tamponar, canalizar e colocar todo o sistema viário em cima deles, é um modelo falido. Um modelo que não pode subsistir. Nesse sentido, entendo perfeitamente a posição da Promotoria, que questionou as obra da marginal.

As obras começaram com um licenciamento ambiental feito a toque de caixa, sem um debate adequado, e repetem um erro histórico do urbanismo paulista e paulistano. Isso depois de 450 arquitetos e urbanistas assinarem um manifesto dizendo “não repita, está errado, isso não pode ser feito”, o que foi absolutamente ignorado.

Acho que agora o governador Serra deveria parar um pouquinho para refletir. Em vez de dizer “Vocês querem que a cidade ande de burrico?”, deveria responder à população da cidade de São Paulo com uma alternativa consistente. Porque essa, mais do mesmo, a gente já viu que não vai dar certo.