Recomeço da temporada de chuvas: efeitos dos deslizamentos e alagamentos evidenciam a ausência de planejamento territorial

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Marginal Pinheiros, em São Paulo. Crédito: Gabriel Cupaiolo/Instagram

Muitas vezes vivemos eventos climáticos excepcionais. Mas o que já sabemos é que em várias regiões do país, especialmente no sudeste, os verões chuvosos são marcados por temporais e volume de chuva extremamente concentrado. O que é absolutamente chocante é ver que, em todo verão, se repetem tragédias decorrentes dos alagamentos e deslizamentos. O grande problema não são as enchentes e desmoronamentos em si, mas o que está no meio do caminho deles. Ou seja, os rios, quando enchem, alagam as casas e os bairros onde as pessoas vivem.

Engana-se quem acha que esses são problemas restritos a assentamentos irregulares e favelas. A ocupação de áreas sujeitas a enchentes e deslizamentos está presente no modelo mesmo de uso e ocupação do solo no nosso país, que não considera as necessidades que os rios, os córregos e as águas têm de se movimentar durante o período chuvoso.

Os rios foram sendo canalizados e tiveram suas margens utilizadas para aumentar a área urbanizável, abertas para o loteamento e promoção de atividades econômicas e residenciais.

Ou seja, não há planejamento do uso e ocupação do solo no Brasil. Existem leis de proteção que são ou não obedecidas a depender da coalizão que naquele momento tem a responsabilidade de gerir o território. Mas não há um mapa prévio que coloque mais claramente quais são as condições de ocupação de cada lugar e que sirva como base essencial para que se possa pensá-la no país.

Essa é uma questão que não apenas não está resolvida como sequer está na pauta das políticas públicas. Quando a gente fala da questão urbana no país, nos debates eleitorais, não se fala disso. Só se fala em ‘quanto dinheiro vai ter para construir mais casas?’, ‘quanto dinheiro vai para obras de infraestrutura?’. Mas o tema das formas de ocupar o território, de como podemos entrar em uma sintonia melhor com o nosso planeta, evitando as tragédias, não é objeto nem de debate nem de políticas públicas. É algo que fica pairando sobre a discussão e nunca entra no centro do debate.

Esse foi o assunto da minha coluna desta semana na Rádio USP. Ouça o comentário completo aqui.

Cidades ignoram dispositivos para viabilizar moradia em área segura

No dia 17 deste mês, a Folha de São Paulo publicou em sua versão impressa uma interessante matéria, baseada em estudo encomendado pelo Ministério das Cidades, sobre a utilização dos instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade para regular a ocupação do solo e viabilizar a produção de moradia de interesse social. Confira abaixo:

Cidades ignoram dispositivos para viabilizar moradia em área segura

Instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade há 10 anos ainda não são utilizados, diz estudo

Em geral, eles permitem às prefeituras taxar de forma progressiva e até desapropriar imóveis que são subutilizados

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

A maioria dos municípios do país ignora os instrumentos criados há dez anos pelo Estatuto da Cidade para regular a ocupação do solo.

A lei federal, de 2001, cria dispositivos a serem usados pelas prefeituras para combater a especulação imobiliária e viabilizar moradias populares em áreas seguras.

Muitos imóveis atingidos pelos deslizamentos e cheias na região serrana do Rio ficavam em áreas de risco.

A conclusão é dos urbanistas que coordenaram estudo encomendado pelo Ministério das Cidades para avaliar 526 planos diretores no país -92 deles em SP e 28 no Rio.

No papel, até houve avanços, com a inclusão desses dispositivos nos planos diretores, mas menos de 20% deles preveem prazos para aprovar leis complementares que permitam a aplicação. Na maioria dos casos, essas leis não foram aprovadas.

“Existem raríssimos casos de aplicação efetiva dos instrumentos”, diz Orlando Alves dos Santos Jr., coordenador nacional do estudo.

Um dos instrumentos, as Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social), é essencial para evitar que os mais pobres sejam empurrados para periferias urbanas e áreas de risco.

Ele reserva áreas no espaço urbano para casas populares e permite que famílias pobres morem perto do centro ou de locais estruturados.

Outros dispositivos ignorados são o Peuc (Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios) e o IPTU progressivo no tempo. Essas regras preveem taxações maiores com o passar do tempo e até a desapropriação de imóveis parados, à espera de valorização no mercado.

Anderson Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, responsável pelo relatório paulista, aponta duas cidades em SP onde a aplicação das regras foi iniciada ou regulamentada: a capital e Santo André.

MINHA CASA, MINHA VIDA

O aquecimento imobiliário, com o aumento do crédito e o programa Minha Casa, Minha Vida, agravou a situação. Nas regiões metropolitanas, terras para moradias de famílias com renda de até três salários mínimos são raras e, em geral, na periferia.

Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para o Direito à Moradia, afirma que prefeituras e Câmaras Municipais acabam não utilizando os dispositivos porque eles causam muito conflito com donos de imóveis e representantes do setor imobiliário.