São Paulo: uma cidade inteira para os carros (e não vai ser suficiente!)

Na semana passada, o jornal Estado de S. Paulo divulgou, com base em pesquisa realizada na Escola Politécnica da USP, que 25% de toda a área construída da cidade de São Paulo é usada para garagens. Essa situação não é fruto do acaso: a legislação da cidade de São Paulo obriga que todos os imóveis construídos tenham vagas de estacionamento, gerando assim uma espécie de simbiose entre o processo de produção da cidade e a inevitabilidade do modelo de circulação baseado no uso do automóvel.

Hoje, cada unidade residencial, seja vertical ou horizontal, tem que ter ao menos uma vaga de estacionamento. De acordo com a legislação, nos imóveis com até 200m² de área construída deve haver uma vaga; entre 200m² e 500m², duas ; e, acima de 500m², três vagas. Para imóveis comerciais, a cada 35m² de área construída é necessário uma vaga; em museus, isso se dá a cada 15m² de área construída, e, em hospitais, a cada 50m².

Mesmo em locais próximos às estações de metrô ou dos trens da CPTM, que poderiam ser regiões de alta densidade de população não usuária do carro, é proibido construir prédios sem vagas de estacionamento. A única exceção prevista na legislação é para áreas de habitação de interesse social (HIS).

Para além dos 25% da área construída de São Paulo destinada a estacionamentos, ou seja, espaços que os automóveis ocupam dentro dos lotes, é preciso considerar também o enorme espaço que estes veículos ocupam nas vias públicas. Acho que é possível dizer que a maior parte de nossos espaços públicos, excluindo parques e praças, é ocupada por veículos automotores.

De 2009 para cá, no entanto, a prefeitura de São Paulo vem tentando restringir o estacionamento em vias públicas. Mas a iniciativa ainda é tímida. Hoje isso acontece apenas em algumas vias de quatro bairros — Itaim, Pinheiros, Jardins e Vila Olímpia — e em alguns pontos da avenida Luiz Carlos Berrini.

Porém, sendo uma restrição tímida e não acompanhada de expansão e melhoria do transporte público coletivo, isso não leva as pessoas a deixar o carro em casa e buscar formas alternativas de deslocamento. Muitas recorrem aos questionáveis serviços de manobrista, os chamados valets, que custam cada vez mais caro e que, muitas vezes, utilizam as ruas para estacionar os carros dos clientes, fraudando a lei.

O fato é que quanto mais farto, fácil e barato os estacionamentos, maior é o estímulo para a compra e uso de mais automóveis, o que vai redundar em mais necessidade de espaço para acomodá-los, dentro e fora dos lotes. No limite, uma hora vamos ter que ter cidades inteiras só para os carros.

A realidade é que nosso modelo urbanístico de cidade estimula o uso do carro, consome um enorme espaço, público e privado, e não tem atendido as necessidades de circulação da população. Nesse momento em que a questão da (i)mobilidade urbana vem sendo tão discutida, não basta pensar alternativas para a melhoria dos transportes e do trânsito. É necessária uma reflexão mais profunda sobre o modelo urbanístico de nossas cidades, que passa, inclusive, pela forma como a legislação que rege as construções da cidade trata o tema.

Texto originalmente publicado no Yahoo! Blogs.

16 comentários sobre “São Paulo: uma cidade inteira para os carros (e não vai ser suficiente!)

  1. Concordo que só por meio do planejamento estratégico de longo prazo com metas e objetivos negociados com a sociedade,poderemos inverter esta equação.Não podemos simplesmente proibir estacionamentos e não ampliar a oferta de transporte público.
    Em conjunto também deve ser revista a legislação de uso e ocupação do solo voltada à moradia,comércio e serviços próximo aos cidadãos.O governo deve também investir em habitação popular nas alternativas(reforma de sobrados,casebres,prédios vazios nas áreas degradadas centrais,consolidação urbana e fundiária nas comunidades faveladas)além da gestão séria dos instrumentos urbanísticos previstos no estatuto das cidades.
    É por aí!

  2. Existe alguma inciativa diferenciada para áreas próximas às estações, como maior densidade e restrição de espaços de garagem? Ainda vale observar a quantidade de espaço público destinada ao automóvel, dentro da via, quanto é espaço para os carros e é o espaço para as pessoas.

  3. Estudo equivocado sobre pesquisa enviesada:
    SP: 1/4 da área construída é dos carros, porque não há transporte público adequado à demanda e à qualidade esperada. Ainda mais, quem faz empreendimentos é responsável pelo tráfego por ele gerado e pela consequente incomodicidade aos vizinhos e à região. São Paulo precisa, sim, copiar Tókio que só permite a aquisição de carro a quem comprova ter onde guardá-lo e que, ainda, oferece transporte público decente à população. O Sr. Hamilton França Leite Júnior, diretor do Sindicato da Habitação (Secovi) e responsável pela pesquisa da Poli, pleiteia a redução dos estacionamentos para usar os terrenos em equipamentos públicos. Tal redução dos estacionamentos poderia ser utilizada para obter terrenos escassos para construir mais apartamentos e escritórios na cidade – congestionando-a ainda mais? O entrevistado compara São Paulo com New York e Los Angeles; ora, vejamos, no estágio e na velocidade atual da construção do metrô paulistano, serão necessários mais de 70 anos para atingir o nível de transporte público existente nas cidades de Londres, Berlin, New York e Los Angeles citadas na página. O autor também cita a tal da cidade compacta, promovida no planejamento estratégico SP2040 da prefeitura, onde tem tudo no bairro e onde não se entra nem se sai – ou seja, guetos onde só se anda de bicicleta custeada pelo munícipe, o que interessa a quem? Portanto, com base na entrevista concedida pelo autor do estudo em apreço, só posso sugerir à Poli-USP, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, que faça um estudo de interesse do paulistano: tal estudo deve propor e conseguir a urgente construção de redes de metrô, bondes e outros meios de transporte públicos adequados ao porte da cidade; tal estudo deve dimensionar as necessidades dessa rede ao porte da população atual e futura; durante a implantação efetiva da rede, poder-se-á analisar alguns casos de reduções paulatinas de vagas de garagens residenciais obrigatórias – o que será viável em uns 50 anos, considerando os perfis das gestões atuais da cidade e da região metropolitana.
    Suely Mandelbaum, urbanista

    • Isso não é alento. Nos Estados Unidos, aonde as cidades fazem as mesmas obrigações quanto a estacionamentos, isso faz com que seja praticamente impossível *andar* por muitas cidades, já que o espaço entre um ponto de interesse a outro é grande demais por causa dos estacionamentos.

  4. Permita-me mudar o termo “simbiose” para mostruose.. As metrópoles de hoje em dia só têm duas saidas: Ou constroem para baixo ou então para cima! Enquano estiverem buscando alternativas paralelas ao trânsito, desistam!

    Em Nova York os metros subterrâneos e em Miami os grandes viadutos, tem servido de exemplo para os que quiserem seguir a modernidade. Aí sim, teremos uma espécie de “simbiose” benéfica.

    Anselmo Rafael Franco

  5. È urgente , o investimento maciço na expansão do transporte público, seja metrô, trens de superfície, corredores de ônibus, em toda a extensão da cidade, caso contrário, não poderemos incentivar as pessoas a utilizarem o transporte público e deixar seus veículos em casa. Até porque eles estão funcionando pessimamente, sem falar na superlotação, no ar envenenado que a cidade tem nos oferecido na maior parte do ano….
    o Trânsito e a consequente perda de tempo e vida que ele provoca, vem diminuindo a qualidade de vida em todos os sentidos.

    Uma das consequências é que o paulistano acorda cada vez mais cedo e dorme cada vez mais tarde. Resultado:Intolerância no trânsito com os ciclistas, pedestres, motoboys= mortes e acidentes. O pior de tudo isso, é que não sabemos onde começa essa encrenca….

  6. Esse assunto é extremamente importante, e infelizmente não é discutido nem pelos urbanistas nem pelos engenheiros de transporte: o “cálculo” de vagas de estacionamento. Na verdade, os ninguém sabe direito de onde esses números são tirados. No Brasil nós apenas copiamos, sem questionar, um modelo que já está errado para os EUA. É sintomático que a famosa “regra de ouro” que eles usam por lá para prédios de escritórios – 4 vagas por mil pés quadrados – coincide basicamente com o que os parâmetros usados no Rio de Janeiro – 1 vaga por em torno de 20 e 30 metros quadrados. E isso quando nossas cidades os transportes públicos – independentemente da qualidade – têm uma parte muito mais importante na demanda. Na verdade, como mostram vários estudos, a oferta de estacionamento gratuito é um fator muito mais determinante da escolha modal (do automóvel) do que a “qualidade” dos transportes públicos. Eu mesmo já trabalhei em lugares diferentes, e com oferta (quantitativa) de transportes públicos comparável, mas as pessoas usavam o carro com muito mais freqüência naqueles em que havia vagas “gratuitas”. Essa é a variável fundamental do problema: a pseudo-gratuidade das vagas.Na verdade, alguém está pagando por ela, e não são os motoristas, é a sociedade em geral. O estacionamento “gratuito” representa um subsídio perverso, dos mais pobres para os mais ricos. Quem quiser se aprofundar sobre esse assunto, aconselho a bíblia que é o livro de D. Shoup, “The High Cost of free Parking”, e também o blog “Reinventing Parking” (http://www.reinventingparking.org/).

  7. Excelente texto!
    Agora transformem isso em dinheiro: são construídos mais de 10 milhões de m² a cada ano na cidade de SP; 25% são 2,5 milhões de m²; a um custo de R$ 1000 por m² construído, São Paulo investe 2,5 bilhões de reais por ano em infraestrutura para estacionar automóveis! Recursos privados investidos em transporte, suficientes para construir uma linha de metrô! E tem muitos que justificam a demora em expandir nossa rede de alta capacidade pela falta de recursos para investimento…

  8. Meu Deus! Nosso problema continua sendo…falta de EDUCAÇÃO, de MORAL, de ÉTICA, de JUSTIÇA, de TRABALHO, de METRÔ (nas metrópoles), vias pluviais, trens, bicicletas, patins…etc, e principalmente, de FALTA DE VERGONHA NA CARA.
    O problema é que tem: problema para licitações éticas para contruir isso ou aquilo, e não é só aqui o problema, é no mundo todo.
    Eu não quero ficar à pé, ou de bicicleta, em uma metrópole ou pequena cidade do interior repleta de doidos varridos…etc, etc.
    Acho que quem sai em defesa de qualquer pessoa hoje – tem que pensar muito bem – para não cair no conto do estelionatário, do bandido, do político, dos “enganadors” de almas de “boa fé” (ou “burrice fé”). Buf!

  9. Professora, numa cidade planejada segundo a sua concepção, qual é a distância máxima de uma moradia para que se tenha utilidades básicas como farmácia, hospital, clínicas especializadas, escola(s), faculdade(s), creches, supermercado, padaria, açougue, delegacia de policia, cabelereiro, manicure, etc, de forma a não se precisar de carro?
    Na sua sugestão de distância é viável uma mãe levar a filha de 4 anos até a escola? E levar o pai enfermo, com dificuldade de locomoção, até o hospital? Qual é a distância máxima para se pegar um transporte público para atender a este tipo necessidade? E o transportar as compras do supermercado?
    Se a solução para isto? É a simplista solução de que nestes casos pode ser usado o carro, onde guardar/estacionar o carro?
    Na sua concepção, qual a distancia máxima entre as ruas que deveriam ter linha de ônibus? Ou todas as ruas teriam linhas de ônibus? E estações de metrô?
    Na sua concepção, há viabilidade econômica para a sustentabilidade das utilidades acima?
    O que é um transporte público excelente ou mesmo ideal? É metrô com estações a cada 500m da moradia?
    O que é uma cidade planejada na sua concepção acadêmica? E como se constrói? Constrói-se todas as casa, hospitais, escolas, farmácias, salões de beleza, linhas de ônibus e metrô, etc, etc, e depois se leva a população para lá? É assim?
    Na sua concepção, Brasília é uma cidade planejada? O metrô de lá deveria ter sido construído antes de ter sida ocupada? Foi um erro deixar a população comprar carro para transpor as longas distâncias ou o planejador deveria ter previsto a construção de casa ao redor dos ministérios, da catedral, da UnB?

  10. Professora Raquel Rolnik, bom dia!

    Seu texto faz constatações muito interessantes, mas há um problema: o motorista paulistano não usa carro só porque é legal dirigir com o vidro fechado e ouvindo uma musiquinha, mas o faz porque São Paulo não possui transporte de massa que dê conta dos deslocamentos de toda a sua população – mesmo considerando que uma porção dela vai constinuar usando carro, mesmo, porque “não se mistura com a gentalha” e não consegue entrar a pé no shopping Cidade Jardim. Me diga uma coisa: num hipotético aumento de restrições ao uso de automóveis na cidade, onde eles pensam enfiar todos os que deixarem de usar os próprios carros, se o sistema não comporta nem sequer os atuais usuários? Outro detalhe vergonhoso – para não dizer criminoso e irresponsável, mesmo – em minha opinião, é o incentivo que o Poder Público tem dado ao uso de bicicletas pelos cidadãos (sic). Não dá. Repito: não dá. Primeiro porque o próprio relevo da cidade não ajuda. Ande de bicicleta por bairros como Perdizes, Pinheiros, Jardins e Penha e vai entender o que eu estou dizendo. Segundo, os deslocamentos dentra da cidade costumam ser longos, e bicicleta não é o modal mais adequado para tais distâncias. E outra coisa, mesmo que se atravesse um longo processo de conscientização e reeducação para o trânsito (o que é coisa para décadas), é gente demais na cidade se deslocando ao mesmo tempo: não há cultura que resista. E não temos avenidas largas como as de Beijing, por exemplo. Enfim, a única solução, a meu ver, é mesmo um transporte público decente – e nosso brioso governo estadual anda enxugando gelo, construindo muito pouco e com a rapidez de uma lesma com Alzheimer em relação ao atraso de décadas.
    Os problemas de transporte urbano são urgentes, e não é fazendo propaganda dizendo como andar de bicicleta é bonitinho, sustentável e “saudável” (mesmo com o ar sólido que respiramos por aqui – pfff!) que se vai resolver o problema.

    Juliana Guido, funcionária pública, arquiteta e urbanista formada pela FAUUSP.

    • Concordo com tudo que você falou, Juliana Guido.
      Sou arquiteta (não sou especializada em urbanismo), usuária de automóvel, não por achar bonitinho entrar no shopping de carro, mas pois sendo autônoma, não consigo dar conta de todo o meu trabalho durante o dia; o transporte urbano simplesmente não me atende, mesmo morando em região central.
      Geralmente não utilizo meu carro nos fins de semana,
      Abraços,

  11. Em certas regiões da cidade a demanda por estacionamento é muito grande, os preços são abusivos. Se houvesse uma maior oferta, com preços mais baixos, mais pessoas que usam o apertado transporte público, iriam se utilizar de seus carros e desta forma melhorando o sufoco dos nossos trens, metro e ônibus.

Deixe um comentário