Nosso déficit não é de casas, é de cidade

Vejam abaixo entrevista minha ao jornal Brasil de Fato, publicada no mês passado.

“Nosso déficit não é de casas, é de cidade”

Raquel Rolnik defende que atualmente não há políticas para moradia, apenas políticas focadas no setor imobiliário e financeiro

22/10/2012

Pedro Carrano e Thiago Hoshino

de Curitiba (PR)

GCM e funcionários da Prefeitura expulsam famílias que ocupavam terrenona Vila Prudente – Foto: Ale Vianna/Folhapress

A questão não é apenas a falta de moradia no Brasil. Mas a falta de espaço e de uma política para o desenvolvimento urbano. Isso em meio a um quadro de financeirização da construção de imóveis nas cidades. Assim, os programas de crédito na área de moradia ganham um aspecto de política anticíclica, mas estão distantes de resolver a questão da moradia digna no Brasil. Este é o panorama montado pela relatora especial para o direito à moradia da ONU, Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, que esteve em Curitiba, onde participou de um evento promovido pelo Ministério Público e UFPR. Visitou também duas comunidades da região metropolitana que serão afetadas pelas obras da Copa do Mundo. Entre uma atividade e outra, concedeu a entrevista abaixo ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato – O tema das cidades foi pautado, nas eleições municipais, com a atenção que merece, na sua avaliação?

Raquel Rolnik – Os momentos eleitorais, no Brasil, infelizmente são pouco pautados e se constituem pouco como embates de projetos de cidade. Há uma dimensão político-partidária, e raramente o debate se dá em torno de projetos alternativos de cidade, no amplo espectro em que isso está acontecendo no Brasil. Por outro lado, começamos a perceber entre os cidadãos um movimento maior de interesse pela cidade, pela política urbana, fruto do próprio amadurecimento e consolidação das cidades no Brasil, mas principalmente em função do enorme mal estar nas cidades brasileiras e o seu modelo insustentável. Particularmente, o agravamento dos problemas de mobilidade. Mas a questão da discussão do modelo de cidade que queremos também começa a ser pautada a partir daí, em várias instâncias, em vários momentos. Mas ainda estamos longe de discutir projetos de cidade nos momentos eleitorais.

Parece que os projetos oscilam entre a construção de obras, ou então numa melhor gestão dos recursos, mas poucas propostas no âmbito democrático e popular.

Infelizmente, a pauta da democratização da cidade é uma pauta dos anos 1990, das gestões municipais. Ela desapareceu da agenda das gestões municipais. Ela foi muito importante durante o processo de redemocratização, e durante o processo de construção de novas coalizões com projetos de poder, mas hoje ela é absolutamente irrelevante, e, nos 5.564 municípios pode ter algum, mas no geral a gente não vê que o tema da democratização da gestão, que foi um tema importante, ainda faz parte da agenda. Nada disso. A discussão hoje primordial está centrada em cima das obras, mas que obras? E que gestão de serviços? Poderia até ser uma bela discussão sobre obras e padrão de gestão de serviços, se isso estivesse ligado a alguma proposta de planejamento da cidade, mas não é. Curioso, no processo eleitoral anunciam-se mágicas, “vou fazer um mágica”, quando a gente sabe que a questão mais séria, que nos ajuda a entender por que nossas cidades não são planejadas, está nas gestões, que têm que mostrar serviço em quatro anos, para serem reeleitas, mas nenhum projeto de reestruturação da mobilidade se impõe em quatro anos. As mudanças que têm que acontecer na realidade brasileira são mudanças estruturais, em quinze a vinte anos, como em qualquer país do mundo. Mas os gestores têm que encontrar o que dá para inaugurar, porque se não der para inaugurar, como vai mostrar o que se fez?

Quais os outros entraves desse processo?

Sobre a cidade em si existem níveis de gestão diferentes: várias agências da União, governo do estado e município, e nós não construímos no Brasil ainda a área de Desenvolvimento Urbano, ao contrário da área da Saúde, que passou por uma reforma do Estado e uma estruturação do Estado. A gente pode criticar que está bom ou ruim, mas temos um Sistema de Saúde, no qual você tem mais claramente hierarquizado quais são as competências dos entes, você tem um processo de controle social, você tem a universalização do acesso à saúde como meta, então você tem um piso per capita, você tem um sistema estruturado. Na área do desenvolvimento urbano, nós não temos um sistema estruturado, nós temos competências concorrentes. Isso é uma coisa não equacionada, sobre qual é a competência de cada ente, quais são os mecanismos de cooperação entre os entes, não tem nenhum sistema estruturado em cima da universalidade do acesso à cidade como padrão.

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik – Foto: UN

Então, embora não estejam na agenda, medidas como a reforma urbana, ações previstas no Estatuto da Cidade, ainda são urgentes?

Sim, mas a questão é que o Estatuto das Cidades enuncia princípios e diretrizes importantes, mas na prática nós não fizemos uma reforma do Estado na área do desenvolvimento urbano, que permita inclusive que os entes executem esses princípios e diretrizes do Estatuto. Essa é uma dimensão mais institucional, e a outra é mais política. A economia política das cidades ainda é conduzida pelos setores que têm na cidade o seu negócio. São interesses econômicos mais ligados ao setor imobiliário e ao setor das empreiteiras de obras públicas, concessionárias de serviço público. Isso aí manda nas cidades, nas câmaras municipais, e portanto nós não conseguimos romper essa lógica da hegemonia desse setor nas cidades. Houve uma tentativa de enfrentamento disso inclusive que passa pela democratização da gestão. Quem são os interlocutores? São esses elementos presentes na coalização dominante, então acho que nós temos um desafio enorme para aplicar a reforma urbana no Brasil. Ela foi anunciada e não foi implementada. Estamos falando de terra, numa cultura patrimonialista, então é muito difícil romper a hegemonia patrimonialista na gestão das cidades.

O quadro de despejos na Espanha e EUA é um cenário que podemos ver também na realidade brasileira a médio prazo?

É muito difícil avaliar. Eu acabei de ler um estudo do Ipea, que discute se o que estamos vivendo hoje é ou não uma bolha imobiliária. As condições em que está acontecendo todo esse processo de explosão de preços no mercado, esse boom da indústria da construção civil, evidentemente catapultado pela existência de crédito, pela existência de subsídio, pelo Minha Casa Minha Vida, e pela própria dinâmica do interesse econômico, pela mudança do padrão e do perfil das empresas construtoras e incorporadoras no Brasil, que abriram seu capital em bolsa, completamente diferentes como setor, um setor muito financeirizado, esse processo é muito diferente do que está acontecendo na Espanha e que aconteceu nos EUA. Dito isso, por outro lado se por alguma razão o processo de crescimento econômico for interrompido e começarmos a viver algum tipo de crise com aumento do desemprego, e diminuição radical da renda, evidentemente as famílias endividadas vão ter dificuldade para pagar, mas a pergunta é que não parece no horizonte que o Brasil vai viver uma crise econômica. É engraçado que no IPEA há um estudo que provava que era uma bolha, e na mesma semana saiu o boletim oficial do Ipea provando que não era uma bolha. O mais evidente é que não vamos resolver o problema da habitação no Brasil, principalmente para os mais pobres, através dos programas de crédito, em nenhum lugar se conseguiu isso, e não é no Brasil que se vai conseguir também.

A classe trabalhadora no Brasil teve acesso a maiores rendimentos, mas na questão da moradia há uma pendência muito grande.

Acho que não são irrelevantes os aumentos de renda e de poder de consumo que os mais pobres tiveram no Brasil, tudo isso é absolutamente claro, o problema é que nosso déficit não é de casas, é de cidade, de urbanidade, e isso o Minha Casa Minha Vida não resolve, tanto é que ele está claramente estrangulado pela inexistência de áreas urbanizadas adequadas. Então o Minha Casa Minha Vida, é um programa de dinamização econômica e geração de empregos, não é uma política habitacional, não é algo que avalia as necessidades habitacionais e a partir dali desenha uma política, ele tem outra finalidade. E moradia não é que nem geladeira, que se arruma dinheiro e leva para casa. O que pode estar aparecendo, e eu verifiquei isso numa região de Curitiba, é que nós vamos produzir a partir desse programa áreas inteiras de “não cidade”, com população de baixa renda, guetos de ‘não cidade’, com todas as consequências que isso pode ter.

Como vê essa questão em Curitiba, considerada capital “modelo” de urbanismo?

Para a cidade e para as pessoas, no caso do Tatuquara (periferia-extrema de Curitiba, usada para programas de moradia como o MCMV) é uma coisa que hoje nos mapas da Cohab eu olhei aquilo e eu lembrei imediatamente do que foi produzido por um programa semelhante durante vinte anos no Chile e produziu na Zona Sul do Chile um imenso território que hoje é uma fonte de problemas sociais e urbanísticos, e acho que é isso que vai acontecer. Eu tenho mais medo disso do que da bolha, das famílias ficarem endividadas, tenho mais medo do produto cidade que vai ser isso, um produto desqualificado com efeitos muito ruins sobre a vida das famílias, um monte de depósito de gente, e não produção de cidades, acho que isso é mais preocupante do que o perigo da bolha.

O caso do Tatuquara é sintomático da política de Curitiba em relação ao urbanismo?

Infelizmente, neste caso isso não é um modelo de Curitiba, é um modelo do Brasil. Em toda a grande cidade há um ou dois ‘Tatuquaras’, esse é um modelo predominante. Curitiba não muda nada e não inova nada em relação a este modelo. Na minha opinião, Curitiba tem uma capacidade local de planejamento e gestão superior a das outras cidades brasileiras, mas, assim como elas, não rompeu com um modelo de exclusão territorial. E essa é uma questão política e não técnica. E há cidades que não têm nenhum mapa cartográfico, quer dizer, o problema é de natureza política. E outra: acho que tem uma questão local, mas eu acho que há uma federativa que não está resolvida – o que temos na área de desenvolvimento urbano? Um banco que financia casa e projetos de transporte e de saneamento. A política urbana é muito mais que isso, o banco devia ser um dos instrumentos de uma política e não “a” política, financiamento tem que ser instrumento da política e não “a” política, isso também é uma financeirização da produção das cidades e que não é exclusiva do Brasil.

Em relação ao PAC, quais são os impactos do programa nas populações?

Eu posso falar um pouco do PAC urbano, PAC das mobilidades e favelas. É interessante haver recurso para fazer urbanização integral de favela e para projetos de mobilidade. Mas, posto isso, de novo o nosso drama é a relação desse projeto e o planejamento geral da cidade. O que é um pouco triste é ver que o PAC, assim como ‘Minha Casa Minha Vida’ veio depois do ciclo de elaboração dos planos diretores participativos das cidades, e no entanto, não tem nenhum tipo de diálogo com ele. E a gente vê muita coisa, o PAC da Copa no Rio de Janeiro é uma abertura de uma frente de expansão imobiliária, na Zona Sul, concentrando valores onde já têm, então é questionável e poderia servir para implementar projetos mais debatidos e pactuados de cidade.

10 comentários sobre “Nosso déficit não é de casas, é de cidade

  1. Concordo integralmente com tudo o que foi dito.

    Entretanto existem perguntas que ninguém tem coragem de fazer:

    Todas essas políticas públicas colocadas na entrevista referem-se às grandes cidades ignorando que o Brasil é um país gigantesco e heterogêneo. Porém, ainda cabe mais gente em São Paulo? Quantos? E que fazer com o meio ambiente agonizante? Os parques públicos, as áreas verdes que desde criança ouvimos dizer que faltam em São Paulo, onde vamos achar espaço para criá-los em meio a 20 milhões de corpos espremidos entre concreto, asfalto e automóveis? E que dizer do iminente racionamento de água que vem aí segundo palavras de Benedito Braga, o vice-presidente do Conselho Mundial da Água? Qual a justificativa de incentivar que tantas pessoas migrem para a metrópole paulista enquanto sobra espaço no esquecido interior brasileiro?

    A explosão de violência que aí está é só a febre de uma doença que vitimou São Paulo, a superpopulação. Não terá cura enquanto insistirmos com métodos que tratam das consequências, não das causas. São acenos para que mais pessoas deixem suas pequenas cidades e desloquem-se para as já saturadas metrópoles.

    Parte dessas questões já está respondida tacitamente: os imensos bolsões de miséria que se formaram nas grandes cidades representam um gigantesco e inesgotável manancial de votos. Não há interesse político em mudar isso, muito pelo contrário.

    É um assunto melindroso. Mexe com o maior de todos os tabus brasileiros. Mas como diria o pensador inglês J.H. Chesterton, o primeiro passo para resolvermos um problema é admitirmos que temos esse problema.

  2. Prezada Raquel.

    O caso do IPEA não é engraçado, é muito simples de entender o por quê. Esses institutos públicos de coletas de dados e síntese de programas públicos são mecanismos criados pelos estados para justificar as suas ações de engenharia social; nada mais. Quando surge algum indivíduo dentro deles que questiona esses mecanismos intervencionistas demonstrando os graves problemas e as consequencias indesejadas criadas pelos próprios programas, como o Adolfo Sachsida que é um liberal da corrente austríaca, logo surgem os políticos e tentam esconder as coisas. O IPEA está nas mãos dos poderosos e eles vão fazer de tudo pra sufocar a verdade, contorcê-la e transformar numa justificativa de novas rodadas de intervenção política.

    até,

    davi

  3. Pingback: Rolnik: Nosso déficit não é de casas, é de cidade | FOPUR-Niterói

  4. Bom dia Raquel, estive na reuniao na escola Olavo Pezzotti e sou aprova viva da expulsao dos artistas da Vila Madalena , estou há 45 anos na Vila fazendo o meu trabalho de artesa , fizemos a primeira feira da Vila Madalena ( infelizmente que o Centro Cultural hoje em dia nao é tao cultural assim ) passamos por etapas difíceis e facéis,bem agora somos obrigadas (os) a morar bem longe do NINHO que criamos porque pessoas de poder aquisitivo maior inflacionou o nosso lar de Artes.

    Os proprietários dos imoveis envelheceream e as incorporadoras estao em constante assédio a familia dos propriétários. enfim hoje o que priecisamos é de ajuda jurídica nao COMPROMETIDA COM AS INCORPORADORAS para conseguir manter pelo menos a nossa dignidade e arte autodidata que foi o berço do movimento na Vila .

    Desculpe nao colocar isso em Pauta mas com tantos oradores nós os reais artistas ficamos sufocados, sabe como é artista nao tem o dom da palavra somente da arte.
    Que Deus te ilumine e nos ajude de verdade
    bj paz e luz

    • Sonia, sou ali de Pinheiros e como artesã da Incubadora Cultural de São João da Boa Vista participei da última edição da feira da Vila. Adorei a experiência…estava um pouco politizada demais…mas isto também faz parte e foi muito boa. Espero que tenha sucesso na empreitada. Passeei pelo bairro, percebi a especulação imobiliária, fiquei triste com isto, como fico triste com o que acontece aí em Pinheiros. O bairro de Moema é um exemplo da verticalização que ocorreu na década de 70 em Sampa. Espero que não ocorra aí, mas vces precisam se unir, ter uma Associação de Bairro forte, persistir, procurar orientação jurídica, etc. A Vila é cultural e vces devem impor um código próprio para evitar a especulação imobiliária. Sucesso!!

  5. Concordo com relação à questão de pensar a urbanização da imensa maioria de cidades pequenas e do interior do Brasil e acredito que seja isso que a prof. Raquel quer dizer com a política de Desenvolvimento Urbano. Penso que para isso acontecer temos que avançar em nossa legislação. Nossa legislação urbana tem que evoluir de apenas diretrizes e princípios, como bem comentou a prof. Raquel, para instrumentos de uso real e mais comprometimento político com esses princípios, que algumas vezes são discutidos exaustivamente com a sociedade mas que geralmente acabam por serem ignorados pelos gestores públicos. Embora os gestores municipais tenham apenas 4 anos de mandato, grandes obras de infraestrurura não são desenhadas neste espaço de tempo, as responsabilidades sobre estas obras deveriam ser de todos os gestores independente do tempo em que ficam no poder.
    Sobre a relação dos programas governamentais, estes não estão restritos as grandes cidades, os efeitos de programas como o minha casa, minha vida têm consequências reais em cidades do interior do Brasil. A mudança no modelo de financiamento imobiliário e a pressão sobre o mercado regular de lotes elevou e muito o valor da terra urbana, inclusive nos municípios de menor porte e consequentemente menor número de projetos de urbanização. O fato de existirem poucos lotes regulares para construção gera pressão para a abertura de novos loteamentos e quem se beneficia com isso são os grandes empreendedores. Estes compram grandes glebas a preços baixos, de proprietários que não têm condições de urbanizar estas áreas, urbanizam e recebem o retorno deste investimento em curto período, visto que os lotes são pagos pelo MCMV. Além disto, estes loteamentos não são projetados para se integrarem à cidade, permanecendo em sua periferia e com as menores dimensões possíveis permitidas em lei, ou seja, estamos reproduzindo o mesmo tipo de urbanização da década de 70 quando o Brasil acelera sua urbanização.

    • Perfeito na análise urbana das cidades do interior. Moro numa delas e é exatamente isto que está acontecendo. Áreas rurais sendo adquiridas para loteamento popular, nenhuma preocupação com o meio ambiente, com o uso de energia limpa e renovável, projetos desconectados até com a realidade da própria área, desengajados totalmente do centro urbano, sem qualquer infraestrutura de lazer, educacional, parques, segurança, transporte público escasso. E na parte mais “rica” da cidade, a construção de verdadeiros feudos (condomínios fechados) que impossibilitam a livre circulação de pessoas. Parece até que estamos retornando à Idade Média, onde um dia…talvez não muito longe… os artesãos, operários, povo pobre da periferia invada a área dos senhores feudais! Já pensou?

  6. Reblogged this on repensandopraticas and commented:
    Considero este tópico importantíssimo em nosso repensar as práticas adotadas. Por considerar que melhor escrito do que a Raquel o fez não é possível, é que republico aqui para que mais pessoas conheçam esse texto maravilhoso.

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