A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #4: Reintegração de posse violenta em Manaus

Enquanto a população entoava hinos, a PM invadiu a ocupação Monte Horebe, em Manaus na semana passada. O vice-governador de Amazonas falou que todos os “cidadãos de bem” seriam atendidos. Na prática, o governo nem sequer sabe quantas famílias vivem lá e muito menos suas necessidades habitacionais. Parte dos moradores deste bairro vieram de outra reintegração de posse. Assim, o cenário será de perpetuação da violência e precariedade.

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Conjuntos habitacionais são ocupados antes de serem concluídos e verdadeiros beneficiados são prejudicados

Li recentemente numa reportagem da Folha que conjuntos habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida e do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) vêm sendo ocupados antes de serem concluídos e entregues a seus efetivos moradores. Em muitos casos, trata-se de milícias e mesmo de traficantes que exploram comercialmente as habitações, instituindo síndicos, cobrando taxas de condomínio e decidindo quem deverá ocupar cada unidade.

A reportagem encontrou situações como esta em estados como Bahia, Ceará, Maranhão, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia e São Paulo. Enquanto isso, as famílias contempladas pelos programas aguardam decisão judicial. Numa reintegração de posse em São José do Ribamar, no Maranhão, houve confronto violento entre policiais e ocupantes.

Considerando o alto déficit habitacional do país, é possível que em alguns destes casos os ocupantes sejam também pessoas que vivem em situações precárias de moradia e que ainda não encontraram uma solução que atenda esta necessidade. O fato é que tudo isso revela que existe uma fragilidade na organização da demanda dos programas, além de uma falta de controle sobre os cadastros, e de acompanhamento efetivo da ocupação pelos beneficiados, o que dá margem a situações com esta.

Reportagem da TV Folha disponível aqui.

Truculência para todos? Mais sobre a USP

Sexta-feira passada, escrevi no meu blog sobre a polêmica da presença da Polícia Militar no campus da USP, que vem gerando discussões e manifestações desde que três alunos da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) foram detidos no pátio da faculdade. Entre assembleias confusas e ocupações de prédios, o ápice da crise se deu na madrugada de terça-feira (08), quando a PM fez a reintegração de posse da Reitoria, levando presos 73 estudantes que ocupavam o prédio em protesto contra o convênio da USP com a PM.

Um policial aponta a arma para uma estudante de braços levantados, a tropa de choque entra no prédio e arromba portas (mesmo depois de a polícia já estar lá dentro), sem deixar ninguém mais entrar (nem a imprensa, diga-se de passagem), nem sair, tudo com muita truculência (leia o relato de uma aluna que não estava na ocupação, mas estava presente) – estas imagens não diferem muito do que já vemos a PM fazer na cidade, no Estado e no país.

A diferença é que, desde os anos 1980 até hoje, a chamada “autonomia” da USP constituiu uma espécie de blindagem seletiva às mazelas da cidade, inclusive em relação à repressão policial. Circulação restrita, portões fechados nos fins de semana, impossibilidade de localização de uma estação de metrô dentro do campus são algumas das marcas da segregação da universidade em relação à cidade.

Agora, em nome da segurança – aliás, a mesma que justifica as restrições de circulação e a segregação – rompe-se o bloqueio e, sob aplausos dos meios de comunicação, a polícia entra em cena para acabar com a farra de estudantes baderneiros. Afinal de contas, como declarou o governador Geraldo Alckmin ontem à imprensa, “a lei é para todos”.

Vale lembrar ao governador que nossa legalidade não é feita apenas de infrações penais, mas também de direitos. Isso vale dentro e fora da USP. Ou seja, são inaceitáveis, igualmente, as desocupações violentas em favelas, os despejos forçados de milhares de pessoas sem teto e sem terra, as abordagens humilhantes a moradores de rua, as execuções sumárias, entre tantas outras situações cujos agentes são a mesma PM que está hoje na universidade.

Os eventos da última terça-feira revelam também, com todas as tintas, a falência do diálogo na USP. Esse foi um dos pontos que destaquei no meu primeiro texto sobre esse assunto: a gestão da USP precisa se democratizar. Não dá mais pra ter um processo decisório baseado apenas na hierarquia da carreira acadêmica, ignorando os distintos segmentos que compõem a universidade, e sem gerar canais de expressão destes segmentos. Ontem o governador Geraldo Alckmin disse ainda que “estes alunos precisam ter aula de democracia”. Pelo visto, o próprio governo e a Reitoria também precisam se atualizar sobre o tema e se matricular nesse curso.

No fundo, o que o Governo do Estado e a Reitoria conseguiram foi dar mais voz e força a um grupo que é minoritário entre os estudantes da USP. Entraram no jogo da radicalização, da violência e do acirramento do conflito, sem esforço de construção de uma estratégia política menos tosca, que efetivamente expressasse a vontade das maiorias, que não foram consultadas. Certamente, se o fossem, não estariam a favor da forma como foi feita a ação de ontem, nem tampouco da atitude dos alunos que ocuparam a Reitoria…

Por fim, diante de alguns comentários que li e ouvi por aí, é importante afirmar que é inaceitável a desqualificação que alguns fazem dos alunos e professores da FFLCH e do conhecimento que se produz naquela faculdade. A FFLCH é um lugar que, historicamente, produziu e continua produzindo pensamento crítico, fundamental não só para a USP e para São Paulo, mas para um país que deseja incluir na agenda de seu crescimento econômico algo mais do que possibilitar a todos comprar mais geladeiras, carros e roupas iguais às das celebridades.

Texto originalmente publicado no Yahoo!Colunistas.