Lindas e precárias: cidades turísticas de São Paulo enfrentam problemas

Domingo passado, o Estadão publicou uma matéria sobre problemas enfrentados pelas estâncias paulistas, com dados do censo de 2010. Segundo o jornal, as 67 estâncias de São Paulo apresentaram indicadores abaixo da média estadual em questões como coleta de lixo, acesso à rede de esgoto, acesso à água tratada e à energia elétrica.

Os números levantados pela reportagem mostram bem essa realidade: “45 das 67 estâncias estão abaixo da média estadual quando se trata do acesso da população à rede de esgoto. Entre as dez piores, oito estão no litoral – o ranking é encabeçado por Ilhabela, onde apenas 7% dos domicílios são ligados à rede. O problema é ainda maior quando se trata de água encanada – 52 estâncias estão abaixo do índice médio paulista. Além disso, 45 contam com menos coleta de lixo e 12 estâncias têm menos domicílios com acesso a eletricidade que a média do Estado.”

Como bem aponta a matéria, uma das razões para que estas cidades – que deveriam ter como principais atrativos a beleza natural e o turismo – apresentem indicadores tão baixos é o grande crescimento populacional sem investimentos em infraestrutura.

O que a reportagem não mostra é que a lógica da regulação urbanística, supostamente em nome da preservação ambiental, dificulta o acesso à habitação adequada, não absorvendo a nova demanda populacional dessas cidades.

Justamente nas cidades turísticas, em função da destinação do território apenas para o modelo de ocupação de segunda residência, os moradores não têm opções de acesso à habitação formal e acabam constituindo novas favelas. Este é o caso, por exemplo, de Campos do Jordão e do Guarujá. Esse está sendo também o destino de boa parte das cidades do litoral norte de São Paulo.

Isso é o que revela pesquisa realizada por mim, junto com as urbanistas Joyce Reis, Danielle Klintowitz, Patrícia Cobra e Elisamara Emiliano, que verificou a relação entre as condições de urbanização e a regulação urbanística existente nos municípios paulistanos. De acordo com a pesquisa, 43% dos domicílios do Estado (ou 4,5 milhões, no ano 2000) tinham algum tipo de inadequação do ponto de vista da infraestrtura de água, luz, coleta de esgoto ou de lixo. Sem falar do tratamento do esgoto, que é inexistente na maioria das nossas cidades.

Para ler a matéria do Estadão, clique aqui.
Para ler a pesquisa, clique aqui.

2,4 milhões de pessoas em São Paulo estão excluídas do direito à comunicação postal

Uma matéria do Diário de São Paulo me chamou a atenção no início desta semana: segundo o jornal, mais de 2,4 milhões de paulistanos não possuem CEP (código de endereçamento postal) e, portanto, estão excluídas do direito à comunicação postal. Obviamente, a imensa maioria dessas pessoas reside em assentamentos precários onde as ruas não são registradas.

A verdadeira integração deste vasto tecido urbano autoconstruído requer uma abordagem global, integrando a regularização administrativa – casas numeradas, em ruas com nome oficializado junto à prefeitura – com a regularização urbanística e ambiental, melhorando os equipamentos públicos e a infraestrutura do local. Mas o maior desafio que ainda permanece é: como parar a máquina de produção de assentamentos precários?

Leiam abaixo a matéria:

Mais de 2,4 mi de paulistanos não conseguem receber cartas em casa

Há mais de 2,4 milhões de paulistanos para quem receber correspondência em casa é um luxo inatingível. Correio improvisa em ruas clandestinas

A cidade tem um contingente de 2,4 milhões de pessoas que não têm um direito elementar de cidadania: o de receber cartas em suas casas. São pessoas que vivem excluídas do mapa da comunicação postal. Em sua maioria, vivem na periferia, onde as ruas muitas vezes não têm nome nem Código de Endereçamento Postal (CEP) e as casas não têm número. Desse total, apenas 40 mil pessoas ou 13.464 famílias utilizam as caixas postais comunitárias dos Correios, espalhadas em 122 pontos do município.

As demais usam os mais variados expedientes. Como “emprestar” o endereço de algum conhecido para receber uma carta. Existem casos de endereços com CEP, próximos a favelas e loteamentos clandestinos, que recebem até 10 mil cartas numa única caixa.

Entre as 91.232 ruas, avenidas e praças de São Paulo, existem 224 vias que aguardam denominação. Nesses lugares, os moradores são vítimas das entregas e cartas que nunca chegam. Além disso, sofrem para se inscrever em programas assistenciais.

Engenheiro Marsilac, no extremo Sul da cidade, é o campeão entre os bairros com ruas sem nome e CEP. Apenas duas ruas possuem o código. São 44 ruas sem nome e sem CEP no distrito. “Estamos lutando há mais de nove anos para regularizar essas ruas mas não conseguimos até agora”,  disse a presidente da Associação Comunitária Maria Lúcia Cirillo. A associação faz certificados de residência para quem precisa e recebe, por meio de uma caixa postal comunitária, cartas de quem vive nessas ruas. “Esse sistema provisório vai funcionando mesmo que precariamente e, por isso, a Prefeitura e os Correios se acomodaram.”

Mesmo assim, afirmou a presidente da associação, muita correspondência se perde antes que chegue ao destinatário. “Dá muita pena quando a gente não consegue localizar o destinatário de alguma correspondência”, disse. “Principalmente quando a gente abre para ver se tem alguma pista e vê que é coisa importante, notícia de morte, de emprego ou um cartão do Bolsa Família”.  Para Maria Lucia Cirillo, é um atestado de atraso: “Até os índios da Amazônia recebem suas cartas. Aqui, na maior cidade da América Latina, ainda tem gente que tem que emprestar o endereço de outro para poder receber uma carta.”

Elza de Oliveira, moradora do Jardim Paraná, na Zona Norte, “emprestava” o endereço para receber correspondência. “Dava o CEP da casa da minha cunhada”, disse. Agora ela usa a caixa postal comunitária, instalada no bairro pelos Correios. “É muito desconfortável ter que ir até a caixa para receber aquilo que podia chegar na minha casa”. Esse desconforto é criticado também por Valquíria Aparecida de Jesus, outra usuária do sistema de caixa postal comunitária. “Eu morava em Buri, uma cidadezinha de 20 mil habitantes, e recebia correspondência em casa. Agora moro em São Paulo, com mais de 10 milhões de habitantes, e tenho de vir buscar minhas cartas na caixa postal comunitária.”

Cine Belas Artes: a polêmica continua

O anúncio do fechamento do Cine Belas Artes e a posterior abertura do processo de tombamento do local têm gerado debates e controvérsias,
inclusive aqui no blog.

O Francisco questiona o instrumento do tombamento e pergunta: “Supondo que o tombamento seja aprovado, existe algum dispositivo que obrigará o proprietário a manter aberto um estabelecimento com determinado uso (no caso, “cinema”)? Caso seja garantido que o uso seja “cinema”, existe algum dispositivo que obriga este proprietário a alugar o seu imóvel a um determinado valor?”.

Na mesma linha, o Daniel diz que acha pouco provável que “limitar o uso do imóvel a ‘cinema’ consiga preservar a programação de qualidade que hoje ainda tem o Belas Artes. A chance maior é de que lá se instale um Kinoplex ou Cinemark da vida, que banque os R$150 mil vendendo pipoca a dez reais e ingresso a vinte para os últimos sucessos de Hollywood, dublados e em 3D.”.

E o Marcelo questiona o papel do Estado nessa história. “Não quero que o Belas Artes feche, gosto daquele espaço. Mas acho muito complicado botar o Estado no meio pra proteger uma empresa específica da especulação imobiliária. Que existe e é muitas vezes injusta – mas é injusta com todos, inclusive os que não desfrutam de praticamente nenhum outro benefício do Estado.” diz.

Estes questionamentos são importantes e merecem debate.

Em primeiro lugar, pode o Estado limitar o direito do proprietário de usar seu imóvel da forma que melhor lhe parecer? Sim! Pode e deve. De acordo com a nossa Constituição, toda propriedade tem uma função social. E o conteúdo dessa função social não se opõe ao direito do proprietário, muito pelo contrário, é um componente desse direito.

A função social de cada propriedade é basicamente o papel que ela vai ter no conjunto do território que é a cidade. E quem define isso, no caso das cidades, é a regulação urbanística – as regras de uso e ocupação do solo da cidade, que devem expressar a política urbana.

Essa regulação interfere no valor da propriedade? Sim, e, por sinal, muitas vezes ela interfere aumentando o valor destas propriedades… Por exemplo, se em um local onde só existiam casas térreas a regulação diz que é permitido construir edifícios altos, ela claramente está aumentando o valor das propriedades. Em outras situações, ela interfere desvalorizando. É assim que funciona esse que é um dos elementos reguladores do mercado imobiliário urbano.

Uma segunda questão levantada é o fato de o Belas Artes se tratar de uma empresa privada. É preciso esclarecer que a função social da propriedade independe de ela ser  pública ou privada, ou seja, vale para ambas. Também não importa se ela será usada para fins comerciais ou não. Ou seja, a regulação define se em determinado lugar é permitido construir prédios ou não, instalar comércios ou não e de que tipo, se a área é de preservação ambiental ou não, se é de interesse cultural ou não etc.

Outro ponto importante de esclarecer sobre essa questão do público x privado é: ao designar uma função para determinado imóvel, o Estado estaria deixando de investir em habitação para proteger um estabelecimento privado? Não. Simplesmente porque não há investimento de dinheiro público na definição de uma regulação.

Seria um gasto público se a prefeitura ou o governo estadual desapropriassem o imóvel, transformando-o em imóvel público e pagando para o proprietário do terreno seu valor de mercado para transformá-lo em cinema… privado! Sou totalmente contra esta alternativa. Além de caríssima e de prioridade discutível, este instrumento só pode ser usado se o espaço se transforma num equipamento cultural público e gratuito, acessível a toda a população. Portanto, não me parece ser esta uma alternativa sequer razoável.

Por fim, sobre a utilização do tombamento como instrumento para resolver um caso como o do Belas Artes, concordo com o Francisco e o Daniel e não acho que essa seja a melhor saída. É possível tombar aquele espaço como cinema? Sim, mas como o Daniel falou, isso não resolve a questão. O melhor instrumento está, portanto, no campo da regulação urbanística, ou seja, da gestão do uso e ocupação do solo.

O tombamento só está sendo usado porque a gestão do uso e ocupção do solo em nossa cidade não tem sido usada com seu sentido de “estabelecimento da função social” de cada um dos imóveis da cidade.

Da mesma forma que se faz uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) é possível fazer ali uma zona especial de interesse cultural, por exemplo. E dentro dessa regulação é possível determinar o uso que terá aquele espaço: será um cinema de rua, com programação diferenciada, etc. Isso vai interferir no valor comercial do imóvel? Sim. E é isso mesmo que precisa acontecer. Com isso, é possível melhorar as condições de negociação entre os candidatos a instalar ali a  atividade determinada naquele local e o proprietário.

E não há porque se indignar com relação a isso, já que esse é o arroz com feijão do zoneamento da cidade de São Paulo. O zoneamento precisa de fato ser usado para definir efetivamente a função social que a cidade deve ter.

Regulação urbanística no Brasil: conquistas e desafios de um modelo em construção

Raquel Rolnik, com a colaboração de Renato Cymbalista

A imensa e rápida urbanização pela qual passou a sociedade brasileira foi certamente uma das principais questões sociais do país no século XX. Enquanto em 1960 a população urbana representava 44,7% da população total – contra 55,3% de população rural –, dez anos depois essa relação se invertera, com números quase idênticos: 55,9% de população urbana e 44,1% de população rural. Em 1996, 78,4% da população brasileira vivia em cidades, proporção que ultrapassa os 80% atualmente. Essa transformação, já imensa em números relativos, torna-se ainda mais assombrosa se pensarmos nos números absolutos, que revelam também o crescimento populacional do país como um todo: nos 36 anos entre 1960 e 1996, a população urbana aumenta de 31 milhões para 123 milhões, ou seja, as cidades recebem 92 milhões novos moradores no período.

A urbanização vertiginosa, coincidindo com o fim de um período de acelerada expansão da economia brasileira, introduziu no território das cidades um novo e dramático significado: mais do que evocar progresso ou desenvolvimento, elas passam a retratar – e reproduzir – de forma paradigmática as injustiças e desigualdades da sociedade.

No final do século XX, quando parece que o processo de urbanização está se concluindo, a desigualdade apresenta-se no território sob várias morfologias, todas elas bastante conhecidas: nas imensas diferenças entre as áreas centrais e as periféricas das regiões metropolitanas de São Paulo ou Belo Horizonte; na ocupação precária do mangue em contraposição à alta qualidade dos bairros da orla nas cidades de estuário; na eterna linha divisória entre o morro e o asfalto no Rio de Janeiro, e em muitas outras variantes dessa cisão.

O quadro de contraposição entre uma minoria qualificada e uma maioria com condições urbanísticas precárias relaciona-se a todas as formas de injustiça social. Essa situação de exclusão é muito mais do que a expressão da desigualdade de renda e das desigualdades sociais: ela é agente de reprodução dessa desigualdade. Em uma cidade dividida entre a porção legal, rica e com infra-estrutura e a ilegal, pobre e precária, a população que está em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso a oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. Simetricamente, as oportunidades de crescimento circulam nos meios daqueles que já vivem melhor, pois a sobreposição das diversas dimensões da exclusão incidindo sobre a mesma população fazem com que a permeabilidade entre as duas partes seja cada vez menor. Do ponto de vista espacial, essa progressiva separação entre as partes ricas e pobres da cidade potencializa ainda mais as tensões, à medida que os pontos de interface social vão sendo cada vez mais mediados por aparatos de controle e segurança, fragmentando e cerceando ainda mais o espaço urbano.

O artigo está disponível na íntegra aqui.