Raquel Rolnik
Publicado no caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo. Página J6, em 16 de abril de 2006.
Edifícios antigos – alguns testemunhos do esplendor de outros tempos – em ruínas; armazéns, lojas, prédios de escritórios ou de apartamentos vazios ou semi-habitados; praças e calçadas maltratadas: esta paisagem se repete em quase todas as grandes cidades brasileiras.
Desvalorizados pela lógica do mercado e imaginário de nossa cultura urbana estruturados em torno da identificação da noção de desenvolvimento com a abertura e expansão de fronteiras, estes espaços semi abandonados abrigam hoje o que “sobrou” de sua centralidade anterior – quem não teve renda para acompanhar os novos lugares ‘em voga”, quem sobrevive da própria condição de abandono. Desta forma, antigos centros das classes abastadas, que em algum momento já foram “o” centro da cidade , são hoje territórios populares numa condição física precária, tanto dos imóveis privados como dos espaços públicos.
Excepcionalmente localizados em tecidos urbanos aonde a urbanidade é uma mercadoria de luxo, estes territórios ocupam em geral áreas dotadas de infra-estrutura básica (redes de água / esgoto / drenagem, sistema viário implantado com ruas, calçadas, bibliotecas públicas, praças e equipamentos como escolas, bibliotecas, etc) e, em geral, com ampla acessibilidade por transporte coletivo. Daí decorre um enorme paradoxo que marca nossas cidades – ao mesmo tempo em que temos uma vasta porção da cidade constituída por assentamentos precários que demandam urbanização e regularização e os números do déficit habitacional nos assombram (segundo os estudos da Fundação João Pinheiro a partir do censo IBGE são 15 milhões de domicílios a urbanizar e 7 milhões é o déficit de novas moradias), existem hoje quase 5 milhões de domicílios e apartamentos vagos. Em Recife e no Rio de Janeiro os imóveis vagos chegam a 18% do total de domicílios da área urbana. Só na cidade de São Paulo são 400 mil domicílios urbanos vagos, a maioria situada em áreas consolidadas e centrais.
O déficit habitacional é formado principalmente por famílias de renda inferior a cinco salários mínimos. Ao promover a reforma de parte desses imóveis centrais destinando-os a esta demanda, a política pública cuida de incluir esta parcela da população na cidade formal, levando-a a habitar uma região consolidada provida de toda infra-estrutura e mais próxima de locais de trabalho. Além disto diminui a pressão pela expansão das fronteiras urbanas, a expansão da não–cidade.
Para as famílias que vão morar nessas áreas, essa mudança também é fundamental. Afinal, essas famílias economizarão recursos no transporte, terão maior acesso às oportunidades econômicas, culturais e de desenvolvimento econômico e humano que a cidade oferece.
A reabilitação dos centros tem, portanto, um sentido para a política urbana no Brasil totalmente diferente do sentido e da agenda que os processos de revitalização de frentes portuárias e áreas centrais tiveram em cidades de países do norte, aonde uma grau básico de urbanidade já havia sido conquistado nas cidades.
A reconquista destes centros para a ampliação de espaços públicos de qualidade; a implantação de projetos turísticos através do trinômio equipamentos culturais / entretenimento / gastronomia; a atração de escritórios inteligentes oferecendo mais uma localidade para a gestão de negócios globalizados – são programas que foram implementados em várias cidades do mundo, na tentativa destas de se reposicionar no ranking da competição global entre cidades, buscando um lugar na era pós industrial. Os atributos históricos de antigos centros foram assim mobilizados para construir uma nova imagem da cidade (no limite até em situações em que estes atributos foram literalmente inventados) capaz de alavancar uma estratégia de marketing para atrair investidores e, em grande parte dos casos, turistas.
O efeito imediato – enobrecimento destas áreas, superou através de processos de valorização imobiliária, os investimentos no mais das vezes públicos, que requalificaram estes antigos centros.
Entretanto em nosso caso a agenda é bem mais complexa do que esta. Em primeiro lugar, se examinarmos o próprio movimento que esvaziou os centros da presença de classes mais abastadas, podemos perceber que o diminuto mercado de classe média em nosso país a cada vez que abre uma nova frente de expansão , esvazia a anterior. Isto significa que a produção de uma nova centralidade enobrecida será o decreto de morte de sua antecessora. Em segundo lugar, a expulsão das atividades e territórios populares que ocupam estes lugares – decorrência direta e imediata de seu enobrecimento – pressiona ainda mais a precarização da cidade. Cada porção do centro “enobrecida” é mais uma favela ou pedaço de periferia precária que se forma.