Vila Autódromo: um bairro marcado pra viver

Compartilho abaixo um manifesto do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro sobre a Vila Autódromo, uma das comunidades ameaçadas de remoção no contexto da preparação da cidade para os megaeventos. Para assinar o manifesto, clique aqui.

Vila Autódromo: um bairro marcado para viver

Por COMITÊ POPULAR DA COPA E DAS OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO

Foto: Dario de Dominicis / Agência Olhares

“Desde o anúncio da realização da Copa e das Olimpíadas no Brasil, os moradores da Vila Autódromo se tornaram alvo de ameaças de remoção. Não é a primeira vez. Esta comunidade está situada em zona que, com o processo de expansão da cidade, tornou-se alvo da cobiça de especuladores e grandes construtoras. Seus moradores aprenderam a resistir, afirmando seu direito à moradia diante do poder do mercado imobiliário aliado aos sucessivos governos.

A ocupação da Vila Autódromo é legal, resultado de décadas de organização dos moradores para a urbanização do bairro. O direito à moradia é garantido pela Constituição Federal, e expresso na Concessão de Direito Real de Uso dada a moradores da comunidade pelo Governo do Estado.

Na preparação dos Jogos Panamericanos, a Prefeitura condenou o bairro à morte. A resistência dos moradores mostrou que na cidade democrática instalações esportivas podem conviver com moradia social. Anunciadas as Olimpíadas no Rio de Janeiro, veio nova condenação: a comunidade ameaçaria a segurança dos atletas. Rapidamente veio a público que a Vila Autódromo é um dos poucos bairros populares da cidade que não está submetido a traficantes ou milícias. Não hesitaram em inventar um argumento ecológico, alegando a necessidade de remoção para preservar as margens da Lagoa de Jacarepaguá. Os moradores mostraram que é possível a recuperação ambiental, sem destruir as casas.

A Prefeitura mentiu novamente ao dizer que a remoção é fundamental para os Jogos Olímpicos: o projeto vencedor de concurso internacional para o Parque Olímpico manteve a comunidade. Em mais uma tentativa, apresentou um projeto viário, alterando a rota da Transcarioca já em obras (e com várias irregularidades no licenciamento ambiental), somente para passar por cima da comunidade. Com a mudança constante de pretextos, a Prefeitura pretende legitimar a remoção de 500 famílias, e a cessão, para o consórcio privado Odebrecht-Andrade Gutierres-Carvalho Hosken, de uma área de 1,18milhões de m2, dos quais 75% serão destinados à construção de condomínios de alta renda.

Como alternativa à injusta, injustificável e ilegal tentativa de remoção, a Associação de Moradores da Vila Autódromo elaborou o Plano Popular da Vila Autódromo, com a assessoria técnica de especialistas. O Plano é técnica e socialmente viável, e garante condições adequadas de moradia e urbanização. É uma realização da cidadania. Na Grécia antiga onde nasceram as Olimpíadas, eram banidos das cidades os tiranos, e não os cidadãos. Estes reuniam-se na praça pública, a Ágora, para decidir seus destinos e os destinos de suas cidades. Que o espírito olímpico reine na cidade maravilhosa. Que a Vila Autódromo, as comunidades e bairros ameaçados de remoção e toda a população da cidade participem das decisões.

A campanha pela sobrevivência da Vila Autódromo é uma luta de seus moradores, mas é também, e sobretudo, uma luta de todos por uma cidade justa e igualitária. Nos últimos meses, milhares de famílias foram compulsoriamente removidas ou estão ameaçadas em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas: Restinga, Vila Harmonia, Largo do Campinho, Rua Domingos Lopes, Rua Quáxima, Favela do Sambódromo, Morro da Providência, Estradinha, Vila Recreio 2, Belém-Belém, Metrô Mangueira, Arroio Pavuna.

Convidamos todos os cidadãos e cidadãs a dizer: PAREM AS REMOÇÕES! Apelamos à sensibilidade e responsabilidade das autoridades governamentais, da Prefeitura do Rio de Janeiro, da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional para que as medalhas entregues aos atletas da Copa do Mundo 2014 e dos Jogos Olímpicos 2016 não sejam cunhadas com o sofrimento e a dor de milhares de famílias expulsas de suas casas e de suas vidas”.

Viva a Vila Autódromo!
Vivam todas as comunidades populares da Cidade do Rio de Janeiro!

PARA TER ACESSO AO MANIFESTO E PARTICIPAR ASSINANDO CLIQUE NO LINK ABAIXO:
http://www.portalpopulardacopa.org.br/vivaavila/index.php/manifesto

A Copa do Mundo é nossa?

“A Copa do Mundo é nossa? Diretrizes para o reassentamento das famílias atingidas pelas obras da Copa de 2014 em Itaquera”: este é o tema do trabalho final de graduação de Jéssica D’Elias, aluna da FAU USP.

O trabalho será apresentado  na próxima segunda-feira, às 10h, na sala 806 da FAU. Na banca, além de mim, que orientei o trabalho, estarão também a professora Marta Dora Grostein e o urbanista Kazuo Nakano.

Para ler o trabalho da Jéssica, clique na imagem abaixo.

Coisas nada civilizadas ocorrem quando um país prepara um megaevento

A edição nº 52 da Revista Adusp (publicação da Associação dos Docentes da USP) traz uma entrevista comigo sobre os impactos da realização de megaeventos esportivos no Brasil. Confiram abaixo.

“Coisas nada civilizadas ocorrem quando um país prepara um megaevento”

“Um megaevento é uma situação paralisante do ponto de vista político, especialmente a Copa do Mundo, porque, em se tratando de futebol, mobilizase um elemento cultural fortíssimo na cultura brasileira. Nós amamos o futebol: sofremos, sentimos, faz parte da alma brasileira. Em seu nome, vale tudo. Constitui-se um verdadeiro Estado de Exceção, um Estado de Emergência, onde direitos acabam não acontecendo”. A autora do comentário é a professora Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora, na Organização das Nações Unidas (ONU), do direito à moradia adequada.

Responsável por um relatório temático sobre o impacto dos megaeventos, nesta entrevista Raquel descreve incisivamente como são decididas, no Brasil, as transformações urbanas que já vêm afetando negativamente as condições de moradia de milhares de pessoas de baixa renda: “As operações da Copa não passam pelo Ministério das Cidades. O processo decisório ocorre nos gabinetes de prefeitos e governadores envolvidos, e na rede empresarial envolvida na viabilização desses empreendimentos. Os projetos com os quais o governo federal está envolvido são os projetos de mobilidade — e o BNDES financia a construção dos estádios. Mas não há nenhuma instância no governo federal, participativa ou aberta, onde isso tenha sido debatido”.

A democracia desapareceu nesse contexto, acusa a professora da FAU: “Onde estão as instâncias que foram criadas — como os conselhos de cidades, os conselhos gestores de habitação, o conselho nacional da cidade — num processo de institucionalização da democracia participativa no país? Em lugar nenhum. Estão absolutamente à margem disso. O processo decisório passa pelos players diretamente envolvidos na questão, no caso, os comitês organizadores da Copa; a Fifa, que traz o conjunto de interesses empresariais dos patrocinadores fechados com essa instituição privada; o poder político local — o prefeito, o governador, o comitê organizador local e os fornecedores locais”. Em suma, o capital privado dita as regras, com total anuência das estruturas de governo.

O panorama é desolador, todavia “existe vida inteligente nesse país”. Raquel acredita que o movimento de resistência ao rolo compressor da Copa 2014 “está começando e tende a crescer”. A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar e as imagens são do repórter-fotográfico Daniel Garcia.

Leia a entrevista completa no site da Adusp: clique aqui.

Fortaleza e Rio de Janeiro mobilizadas contra violações no âmbito da Copa e das Olimpíadas

Em Fortaleza, as mobilizações de comunidades que serão afetadas pelas obras da Copa de 2014 começam a surtir algum efeito. No mês passado, o governo do Estado do Ceará divulgou mudanças no projeto do VLT Parangaba-Mucuripe, que passaria em cima da comunidade Aldaci Barbosa, desalojando 250 famílias. Com as alterações no projeto, este número caiu para 20. O total de remoções previstas para a construção de todo o VLT passou de 2.500 para 1.700.

É importante lembrar que o diálogo com a comunidade antes da execução de projetos como estes é fundamental para que o direito à moradia adequada seja respeitado. A comunidade, portanto, deve conhecer com antecedência o projeto e a ela deve ser dada a oportunidade de apresentar propostas alternativas que visem evitar ou, pelo menos, minimizar as remoções.

Em outras cidades do Brasil que serão afetadas por obras ligadas aos megaeventos esportivos também estão ocorrendo mobilizações. No Rio de Janeiro, o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas realiza, amanhã, às 18h30, no Clube de Engenharia, o debate “Esporte, paixão e negócio: a violação de direitos humanos na Copa e nas Olimpíadas”. Na mesa estaremos eu, o presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo, Altair Antunes Guimarães, e o professor da UFRJ Orlando Júnior.

Na ocasião haverá também o lançamento de um dossiê sobre violações de direitos humanos no âmbito da preparação da cidade para estes megaeventos. Veja mais informações no blog do Comitê Popular do Rio.

Dossiê reúne informações sobre impactos e violações de direitos no caminho para a Copa e as Olimpíadas

Os Comitês Populares da Copa divulgaram hoje o Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, documento que reúne casos de impactos e violações de direitos humanos nas obras e transformações urbanas empreendidas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil. Também foi lançado hoje o Portal Popular da Copa.

Para ler o dossiê, clique aqui.

O documento foi produzido coletivamente pelos Comitês Populares da Copa – que reúnem acadêmicos, moradores de comunidades, movimentos e organizações sociais – e consolida uma articulação feita em nível nacional para contestar a forma como a Copa está sendo implementada, fato que nunca tinha acontecido em países que receberam o evento.

Em pelo menos sete cidades, os Comitês Populares da Copa realizaram hoje atos simbólicos de entrega dos dossiês nas prefeituras. O documento será protocolado ainda em secretarias de governos estaduais e ministérios do Governo Federal, além de órgãos como o Ministério Público Federal, o BNDES, a Controladoria Geral da União e o Tribunal de Contas da União. A Comissão de Direitos Humanos da OEA, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e relatorias especiais da ONU também receberão uma cópia.

Veja abaixo os principais temas abordados pelo Dossiê:

Moradia
Relato de casos de despejos arbitrários e remoção de comunidades inteiras em processos ilegais de desapropriação para obras da Copa. Apesar da falta de informação e dados disponibilizados pelos governos, os Comitês Populares conseguiram a estimativa de 150 mil a 170 mil famílias que já tiveram ou correm o risco de terem violados seus direitos à moradia adequada.

Trabalho
As greves e paralisações nas obras dos estádios refletem baixos salários, más-condições de trabalho e superexploração da mão-de-obra em função de atrasos e cronogramas apertados. Além disso, são relatados casos de repressão a trabalhadores informais e de ameaças a direitos de comerciantes que têm estabelecimentos no entorno dos estádios e nas vias de acesso.

Acesso à Informação, Participação e Representação Popular

A formação de grupos gestores, comitês, câmaras temáticas e secretarias especiais da copa, muitas vezes sob a forma de empresas, constitui instâncias de poderes paralelos, isentos de qualquer controle social. Por outro lado, casos concretos ilustram a falta de informação prestada de forma adequada às comunidades impactadas, o que traz triste lembrança de tempos autoritários.

Meio Ambiente

Casos demonstram como as licitações ambientais têm sido facilitadas para obras, e como regulamentações ambientais e urbanísticas das cidades estão sendo modificadas arbitrariamente em função dos megaeventos. Na proposta do novo Código Florestal, possibilita-se a permissão para o desmatamento de Áreas de Preservação Permanente (APPs) nas obras para a Copa.

Mobilidade
O direito à mobilidade é violado com a expulsão de famílias mais pobres de áreas centrais e valorizadas. Além disso, os investimentos em transporte e mobilidade urbana têm sido feitos sem levar em conta as principais demandas da população, priorizando regiões de interesse de grandes grupos privados, áreas que usualmente estão se valorizando.

Acesso a Serviços e Bens Públicos
Como forma de minar a resistência dos moradores, prefeituras estão cortando serviços públicos de comunidades em processo de remoção. Além disso, órgãos públicos destinados à defesa da população mais pobre estão sendo reprimidos e até fechados, ao mesmo tempo que medidas de “ordenamento” urbano têm violado o direito de livre acesso da população a espaços públicos.

Segurança Pública

Medidas propostas ou já implementadas, como a criação de uma Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos no âmbito do Ministério da Justiça, evidenciam uma perspectiva de militarização das cidades durante os megaeventos. Por exigência da Fifa, algumas responsabilidades serão confiadas a empresas, o que aponta para a privatização dos serviços de segurança.

Elitização, ‘Europeização’ e Privatização do Futebol
O fim de setores populares e o aumento dos preços dos ingressos afastam os mais pobres dos estádios. Além disso, as “arenas” da Copa estão sendo desenhadas em padrões que inviabilizam a cultura, os costumes, a criatividade e a forma de se organizar e se manifestar do torcedor de futebol brasileiro. Estádios históricos, como o Maracanã, podem ser entregues à iniciativa privada.

Assessoria de imprensa:
Gustavo Mehl – 21 8212-1095 e Renato Cosentino – 21 8267-2760

Fonte: Portal Popular da Copa e das Olimpíadas

Estádios e negócios imobiliarios: já perdi a conta de em que capítulo está essa novela…

Na esteira dos malabarismos dos esquemas engenhosos que estão se armando em torno dos estádios da Copa de 2014, mais uma iniciativa acaba de ser lançada.

Ontem a imprensa anunciou que construtoras pretendem derrubar o estádio do Morumbi para construir um megaempreendimento no local. Em troca, elas fariam um novo estádio para o São Paulo Futebol Clube junto à estação de metrô Vila Sônia da linha amarela.

Os empreendedores já estão tentando articular com o prefeito Gilberto Kassab e com o vice-governador Domingos Afif, que já anunciaram apoio à proposta. Com esses apoios, cria-se um caldo favorável inclusive para pressionar o clube a aceitá-la.

Isso revela a verdadeira face do que são os megaeventos. A Copa de 2014 em si é o que menos conta nessa história toda. A questão fundamental é como os grandes negócios imobiliários se aproveitam dessa onda em torno do megaevento para poder encaçapar a bola…

As construtoras querem inserir esse malabarismo dentro da operação urbana Vila Sônia, que está em discussão há mais de 10 anos e que tinha como intenção estruturar o desenvolvimento urbano da região, preparando-a para os impactos do metrô. Mas cada vez mais ela também vai se transformando em apenas e tão somente abertura de frentes de expansão imobiliária.

A idéia de construir espaços publicos generosos, de qualificar o espaço urbano, expressas no plano diretor vão ficando para as cucuias… o que importa mesmo é quantos metros quadrados de área construída podem ser lançados no tempo mais curto possível.

Enquanto isso, nós continuamos a viver numa cidade entupida, desqualificada e insustentável. E parece que isso nao é problema nem do poder público nem do setor imobiliário.

Remoções para as obras da Copa em Porto Alegre: mais do mesmo ou um outro caminho é possível?

A convite das Comissões de Direitos Humanos e de Urbanização, Trasportes e Habitação da Câmara Municipal de Porto Alegre e também do Comitê Popular da Copa – formado por organizações da sociedade civil e movimentos sociais -, estou desde ontem na capital gaúcha, participando de audiências com o poder público, de seminários, e visitando comunidades atingidas pelas obras da Copa do Mundo de 2014.

Ao longo da visita, já me reuni com o prefeito José Fortunati e sua equipe, com a presidência da Câmara, com o governador Tarso Genro e com o Ministério Público Federal para conversar sobre a preparação da cidade para o Mundial.

Além disso, a visita às comunidades tem sido importante para conversar com a população e conhecer mais de perto os impactos das obras.

Abaixo seguem alguns links de matérias divulgadas entre ontem e hoje pela imprensa gaúcha:

ONU fiscaliza comunidades atingidas pelas obras da Copa do Mundo

Para Relatora da ONU, legado da Copa ainda é secundário em Porto Alegre

Relatora da ONU visita locais atingidos por obras da Copa em Porto Alegre

Remoção de moradores da Vila Dique foi irregular, segundo ONU

Copa do Mundo e Jogos Olímpicos: “O espetáculo e o mito”

Recentemente conversei com a Revista Página 22, do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas, sobre os impactos sociais dos megaeventos esportivos. A entrevista foi publicada esta semana e está disponível no site da revista. Abaixo compartilho com vocês a conversa:

O espetáculo e o mito

Na história dos megaeventos esportivos, o propalado legado urbanístico e socioeconômico configura a exceção, não a regra. Muito mais frequentes são os casos em que as populações desassistidas se transformam em vítimas de um processo atropelado de remoção e as contas das cidades mergulham no vermelho.

A urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP e relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, teve a oportunidade de conhecer in loco os impactos das Olimpíadas e das Copas do Mundo em diversos países. Em março de 2010, apresentou à ONU um relatório com denúncias de violações de direitos humanos e, a partir de então, transformou-se em uma espécie de porta-voz das comunidades atingidas por essas obras no Brasil.

“Os funcionários das prefeituras chegam e pintam as casas com um número, assim como os nazistas faziam na Segunda Guerra Mundial. Você sabe que a sua casa é um alvo, mas não sabe nem quando nem o quê vai acontecer com você”, denuncia a professora. Nesta entrevista, ela explica a origem do mito da bonança associada aos megaeventos e revela os fatores decisivos dos poucos casos em que o legado é inequívoco: transparência e participação.

Há evidências empíricas de que sediar grandes eventos esportivos traz desenvolvimento econômico e social?

Traz ganhos. A discussão é: ganhos para quê? E ganhos para quem? Porque, sim, mobiliza uma enorme quantidade de dinheiro e de investimentos. Não há a menor dúvida de que esses grandes eventos transformaram-se, sobretudo a partir do final dos anos 1980, numa espécie de constituição de branding: uma marca que é vendida associada à marca de uma cidade e de um país. Portanto, todas aquelas empresas que se associam a essa marca também são automaticamente promovidas no mercado internacional. E é uma estratégia bem-sucedida, porque o evento é visto por bilhões de pessoas, uma oportunidade única para se comunicar com essa audiência ou com esse público consumidor. É disso que se trata: de corporações e grandes negócios, um grande evento de marketing e de marcas associadas a ele.

Claro que, dependendo da cidade, do contexto e do país, eventualmente esses momentos são utilizados também para realizar projetos que beneficiam não só as pessoas que vão usufruir do evento naquele momento, mas também outras pessoas a longo prazo. Basicamente, Barcelona ficou notabilizada por utilizar os Jogos Olímpicos para implementar um projeto de renovação urbanística e se recolocar no cenário internacional de cidades em um momento em que a gente vivia um processo muito radical de reestruturação produtiva com a globalização. Barcelona era uma cidade industrial e portuária e estava perdendo completamente o seu lugar, porque esse lugar da indústria não estava mais se sustentando economicamente. Ao mesmo tempo, a gente também vive nesse momento a grande era dos reajustes estruturais, da retirada do governo central e dos grandes investimentos públicos. As cidades começam a entrar num jogo de autopromoção no cenário internacional para atrair investimentos externos e promover uma reengenharia da sua base econômica.

Quando se discute o legado desses eventos, sempre se menciona Barcelona-92. Há algo que se compare na história dos Jogos Olímpicos e das Copas do Mundo?

Barcelona estabeleceu uma espécie de paradigma de que os Jogos sempre se associam a um legado de transformação urbanística. Mas os projetos de intervenção urbanística não são neutros. Tem beneficiários e tem prejudicados. É importante distinguir as duas coisas.

Quando se conta a história de Barcelona, separa-se a experiência específica dos Jogos Olímpicos da história imediatamente anterior. Para entender Barcelona, é preciso entender que mais de uma década antes (dos Jogos) a cidade ganhou um governo autônomo socialista, num movimento que era importantíssimo para a Catalunha, de afastamento do controle autoritário e centralizado do franquismo. Trata-se de uma luta democrática e popular que durante pelo menos uma década fez um investimento radical na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e de suas periferias, investiu na melhoria das condições urbanísticas desses bairros populares, investiu na moradia, aumentou tremendamente o grau de participação popular na gestão da cidade. Então, quando Barcelona desenha o seu projeto olímpico, isso não veio do nada. Não se abriu o céu e caíram as Olimpíadas, como está acontecendo no Brasil. Mesmo assim, houve resistência, houve questionamento, houve luta, houve transformação da pauta de intervenção como consequência dessas lutas e desses questionamentos. Só que ninguém conta essa parte da história. Essa parte da história sumiu.

Então o grande paradigma de legado associado às Olimpíadas só aconteceu porque já existia uma trajetória independente do evento?

Evidentemente. Você pode ver o caso de Londres agora (sede das Olimpíadas de 2012). O projeto de Londres também tem uma história muito mais longa de integração, de intervenção no East End, historicamente a região com condições urbanísticas mais precárias. Além da construção de um grande parque público, a maioria dos equipamentos olímpicos será desmontada e, no seu lugar, vai ter habitação, comércio e serviços, com uma cota de 35% para habitação social subsidiada. E também no caso de Londres houve questionamento, também teve debate público e também o projeto foi transformado em razão disso.

Eu diria que onde já existe um processo público de debate e de intervenção territorial sobre a cidade, as Olimpíadas aparecem como uma oportunidade a mais dentro de um caminho para implantar esse plano. Onde não tem nada, cai do céu um projeto que não tem absolutamente nada a ver. O caso do Brasil é emblemático. As cidades brasileiras passaram, depois da aprovação do Estatuto das Cidades, no ano 2000, a elaborar projeto de plano diretor, de planejamento participativo, pensando no futuro dessas cidades. Esses planos e projetos estão todos na gaveta ou foram rasgados.

O grande projeto olímpico do Rio de Janeiro foi elaborado conjuntamente e quase que diretamente por incorporadores privados que vão lançar um enorme investimento imobiliário na Barra da Tijuca e em Jacarepaguá, região na qual a intervenção urbanística pelo setor privado já estava acontecendo. Não mudou nada. Ao contrário, reforça a centralidade da Zona Oeste, uma centralidade de classe média, para poucos. É a extensão da Zona Sul. Não é o Rio de Janeiro que mais precisa de uma intervenção urbanística, como os bairros centrais. Tem tudo a ver com processos de valorização privada e muito pouco com o interesse público e uma revisão de tendências, de modo que os elementos perversos que existem no nosso urbanismo precário pudessem ser revertidos.

O legado inequívoco é a exceção dentro do histórico de grandes eventos esportivos?

Exatamente. Tem que entender isso no âmbito do que aconteceu no mercado de terras e no mercado imobiliário, com a globalização. O mercado imobiliário internacional passou a ser uma parte fundamental do circuito financeiro. A gente viveu uma “financeirização” do processo de produção de moradia e de cidades. Isso significa – e isso a gente viu com a crise americana – que os ativos imobiliários, mais do que representarem um valor de uso para as cidades, são um ativo financeiro passivo de especulação. Veja o que é Dubai. São operações de abertura de frentes para atração desses capitais financeiros. O megaevento nada mais é que um estande de vendas, fantástico e imediato, ainda por cima associado ao espírito do esporte, da solidariedade entre os povos, do nacionalismo segundo o qual o país vai mostrar ao mundo do que é capaz. Associado a todos esses elementos, é muito mais poderoso.

De onde vem esse mito da bonança socioeconômica associada à Copa do Mundo ou às Olimpíadas?

Se a gente olhar para a história dos grandes Jogos, eles tiveram lá as suas fases. Eles começam a ter muita importância, do ponto de vista cultural e geopolítico, no pós-guerra, quando se tratava de um espaço de conciliação entre as nações. Logo em seguida, no período da Guerra Fria, era muito importante para ver quem ia ganhar. Se eram os Estados Unidos, portanto a visão do livre mercado capitalista, ou se era o bloco soviético, e, posteriormente, a China. Era um encontro de forças, um cenário de reafirmação da Guerra Fria.

As Olimpíadas começam a ser associadas a uma intervenção na cidade nos Jogos de Los Angeles, em 1984, quando se mobiliza pela primeira vez o capital corporativo para fazer investimentos na cidade de forma mais permanente. E, desde então, toma conta. É um espaço basicamente das corporações, mediado pelos comitês olímpicos e comitês organizadores da Copa do Mundo, portanto também dos governos.

E aí, crescentemente, surgem as operações com base no tal do legado e na transformação urbanística. Mas isso, como falei, coincide com dois fenômenos: a diminuição do papel dos Estados para atendimento de demandas urbanísticas e, consequentememte, a entrada do capital privado na gestão; e as cidades competindo na arena internacional globalizada para ver quem capta investimentos de um excedente financeiro que fica pairando sobre o planeta procurando onde se alocar. Os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo abrem um espaço para que esse investimento aconteça, especialmente pelo que carregam também de elementos simbólicos, com a vantagem de ser um ambiente de consenso. Todo mundo gosta, todo mundo acha legal.

É por isso que existe essa expectativa de um legado transformador, quando, na verdade, o saldo convincente para os interesses difusos é raríssimo?

É um espetáculo que mobiliza corações. A mobilização é real. Você não só assiste. Você torce, você sofre, você chora. O evento trabalha com esses sentimentos e por isso é tão consensual. Tudo que se associa ao evento é contaminado por esse mesmo espírito.

Por outro lado, quando você tem uma intervenção física, as pessoas enxergam que alguma coisa foi feita. Em muitos casos, há melhorias. Se você fizer o balanço de ganhos e perdas, a maior parte da população não ganha tanto e muito poucos ganham muito, mas há transformações reais. Na África do Sul, mesmo com todas as limitações, a ligação de corredor exclusivo de ônibus para Soweto muda completamente a vida de quem vive em Soweto. Não é imaginário.

Mas tem efeitos perversos que não são lembrados, que não são tocados. Falando como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, e em geral para os direitos humanos: o foco principal dos direitos humanos são os mais vulneráveis. Esses deveriam ser os prioritários e, em geral, são os prejudicados. São os que acabam carreando os efeitos perversos.

Sobre o envolvimento da sociedade civil, mencionado pela senhora como fator preponderante para o sucesso de Barcelona: nós aqui no Brasil ainda temos tempo de fazer isso, considerando o horizonte de 2014?

Já começa por quem formulou o projeto olímpico. Quem participou dele? E do projeto das cidades para a Copa? Esses projetos são definidos a portas fechadas entre os agentes políticos e as corporações envolvidas com a produção do evento. Ponto. Tudo o que nós construímos no Brasil de participação popular, de conselhos, de planejamento participativo, está sendo completamente deixado de lado no momento de definição das obras para a Copa e para as Olimpíadas.

A senhora vê diferença na forma de condução desses processos entre países centrais e os menos desenvolvidos?

Uma coisa é você fazer uma grande operação de renovação urbanística quando um grau básico de urbanidade já foi conquistado, como era o caso de Barcelona, ou como é o caso de Londres. Drante 50 anos, Londres fez uma política muito forte de investimento em habitação social, com 30% de todos os empreendimentos obrigatoriamente produzindo habitação popular, e por isso conseguiu praticamente zerar as condições precárias de moradia.

Outra coisa é a situação do Brasil, ou de Nova Délhi, na Índia, onde aconteceram os Commonwealth Games. Parece-me que, no nosso caso, esse tal legado deveria ser totalmente dirigido para constituir esse grau básico de urbanidade ou pelo menos ir na sua direção. Mas não. O que a gente viu é que as pessoas que moravam em condições precárias foram simplesmente expulsas, suas casas destruídas e nenhuma alternativa apresentada. E nós estamos repetindo aqui no Rio de Janeiro, neste momento, a mesma coisa. Em outras cidades brasileiras também. É assim: “Aqui vai ter um estádio? Ah, beleza, vamos saindo, vamos tirando tudo fora”, sem respeitar os direitos dessas pessoas e sem equacionar devidamente as alternativas.

Segundo o seu relatório, os impactos quanto a moradia se repetem, sobretudo nos países menos desenvolvidos, em razão da urbanização precária?

Exatamente. Os impactos se repetem e são mais graves. Mas isso aconteceu em Atenas também.

Essa nova tendência de sediar a Copa do Mundo em países periféricos diz alguma coisa sobre a FIFA (Federação Internacional de Futebol)?

A Fifa vai aonde está o dinheiro. Eu pude testemunhar isso ao preparar um relatório sobre os megaeventos e o direito à moradia e apresentá-lo à ONU. Eu me dirigi, como relatora, ao Comitê Olímpico Internacional e à Fifa para poder discutir com eles, ver como é que eles tratavam essa questão. Eram denúncias que eu recebia sistematicamente de expulsões forçadas em massa, tanto em Pequim como em Nova Délhi, como em vários lugares da África do Sul. E com o COI eu consegui estabelecer uma conversa, entender como é o processo, começar uma interlocução. A Fifa nem sequer me respondeu.

Em países periféricos não seria mais fácil empurrar certa exigências?

Não sei. Eu não fiz uma análise sobre como se deu a relação da Fifa, por exemplo, com o governo da Alemanha para a Copa de 2006. O que eu vi e que achei absolutamente escandaloso foi que a Fifa estabeleceu protocolos com os governo locais da África do Sul. Exigências do tipo: não se podia vender outra marca de cerveja, não apenas dentro dos estádios, mas num raio de quilômetros no entorno dos estádios. Foi estabelecida uma política específica com julgamento sumário no momento em que a pessoa pudesse cometer algum tipo de delito. De tal maneira que a gente pode chamar de estados de exceção e territórios de exceção. Eu não sei se essa é uma tendência no tempo, que foi piorando, ou se é porque se trata dos países emergentes. Mas, de fato, o estado de exceção tem-se ampliado. E, eu não preciso dizer, as denúncias de corrupção em relação à Fifa são notórias.

Em termos de transparência, como a senhora avalia a remoção e o reassentamento de pessoas no Brasil para a Copa e para as Olimpíadas?

É completamente obscuro. Você não consegue encontrar em nenhum lugar, dentro dos projetos formulados pelas cidades, quantas pessoas serão removidas, qual é o valor que está previsto, o que foi apresentado para elas, para onde elas vão. Quando vai haver uma remoção, a comunidade tem de conhecer o projeto, tem o direito de discutir o projeto, tem o direito de apresentar uma alternativa, de estabelecer uma negociação. Tem o direito de ter um organismo independente para a própria comunidade poder acompanhar esse processo, com assistência técnica e jurídica, por exemplo, da universidade.

A senhora está falando da lei brasileira ou internacional?

Eu estou falando dos tratados internacionais sobre o direito à moradia dos quais o Brasil é signatário e que, portanto, são plenamente aplicáveis aqui. Eu tive a oportunidade de visitar comunidades que serão objeto de remoção. As pessoas não sabem de nada, não sabem por que, não sabem quando. Os funcionários da prefeitura chegam e pintam as casas com um número, assim como os nazistas faziam na Segunda Guerra Mundial. Então você sabe que a sua casa é um alvo, mas não sabe nem quando nem o que vai acontecer com você, nem que espaço você tem para conversar. Isso está acontecendo no Morro da Providência (Rio de Janeiro), em Fortaleza, e em outras cidades, sem nenhuma transparência, numa violação clara do que dizem os tratados internacionais sobre a matéria.

Ricardo Teixeira costuma dizer que a CBF (Confederação Brasileira do Futebol) é uma entidade privada, a Copa é um evento privado, aparentemente dando a entender que ninguém tem nada a ver com isso. Como a senhora analisa esse argumento?

A CBF pode ser uma entidade privada, mas nossas cidades são públicas, pelo menos até onde eu entendo o conceito de cidade. A gente não pode simplesmente deixar que as nossas cidades, com o beneplácito e a participação dos nossos governantes, sejam transformadas por pautas definidas por uma entidade privada.

Nos estados e cidades que não costumam receber tanto investimento do governo federal, o gasto com estádios se justifica, eventualmente, pelas transformações urbanísticas associadas?

Essa é outra dimensão: o gasto público. O governo federal não está colocando recursos na construção de estádios, mas governos estaduais estão. Está-se usando subterfúgios e alguns jeitinhos para entrar dinheiro público. É o caso do Atlético Paranaense, cujo estádio vai ser ampliado e reformado com a venda de recursos de potencial construtivo. O potencial construtivo é definido no âmbito do planejamento da cidade, portanto é de propriedade pública. Tem também o próprio investimento e financiamento do BNDES com juros mais leves que os do mercado, o que configura também financiamento público.

A segunda questão é o gasto total. Vale a pena? A gente tem casos de cidades que se endividaram. Olha o que está acontecendo na Grécia. Uma parte tem a ver com o custo das Olimpíadas de Atenas e que não foi pago. Agora está-se discutindo isso na África do Sul. O balanço é vermelho. Eu vi um estudo que fez o mesmo cálculo no caso dos Commonwealth Games, na Índia. E num país que tem uma demanda de investimentos tão importante como o nosso, vale a pena gastar nesse tipo de coisa? Acho que a pergunta é totalmente procedente.

Na sua opinião, o que feriria mais o orgulho dos brasileiros? Um novo Maracanazo ou problemas de organização que pudessem prejudicar a imagem do país?

Tem uma dimensão no campo geopolítico internacional que é uma tensão entre os países emergentes e menos desenvolvidos e Europa e América do Norte. É uma tensão mais ou menos assim: “Ah, esses paisinhos emergentes não sabem organizar nada, são todos corruptos”.

Tem uma pauta muito importante que é a afirmação dos países de que podem, sim, organizar grandes eventos. Isso foi extremamente importante para a África do Sul e é extremamente importante para o Brasil no cenário internacional, porque esses países estão tentando se colocar como contrapeso político numa História de hegemonia do mundo. Não é só de nacionalismo bobo, é também uma tensão real entre países. Quem manda no planeta? Acho que o Brasil está-se colocando numa posição de liderança dos excluídos. Esse componente é também muito importante. Para o cidadão brasileiro, evidentemente, as emoções de ganhar ou perder um jogo são terríveis.Pelo amor de Deus, só falta a gente perder essa final no Maracanã, vai ser muito deprimente. Mas do ponto de vista da geopolítica internacional, o impacto de organizar mal ou bem vai ser mais importante. A questão central é: para quem?

Eu gostaria que a senhora respondesse à sua pergunta. No Brasil, a quem vai beneficiar? Qual a sua expectativa?

Eu tenho grandes dúvidas. Pelo andar da carruagem, esta é uma operação que beneficia algumas grandes corporações e empresas, que vão conseguir vender produtos e serviços, algumas nacionais, outras multinacionais. E vai encher os cofres da Fifa e da CBF e dos seus dirigentes.

Vai ter alguma coisa pontual, algum corredor de ônibus que vai beneficiar a população que não tinha um ônibus bom, alguma reforma de espaço público em que uma parte da população vai encontrar um lugar agradável em cidades que são geralmente desagradáveis, algumas operações sobre assentamentos informais. Mas o centro da agenda, a balança dos ganhos e perdas é que é a questão.

Conversa com Juca Kfouri sobre os impactos da realização da Copa do Mundo no Brasil

No fim de semana participei do programa de entrevista do Juca Kfouri, no canal ESPN. Conversamos sobre os impactos da realização da Copa e das Olimpíadas no Brasil, tanto do ponto de vista urbanístico, quanto do ponto de vista dos direitos humanos, especialmente do direito à moradia, que é o tema que venho acompanhando como Relatora Especial da ONU.

Clique no link abaixo para ver um trecho da conversa:

Relatora da ONU é convidada do Juca Entrevista

Relatório sobre megaeventos esportivos e direito à moradia ganha tradução para o português

No fim do ano passado, a Revista Proposta, ligada à ONG Fase, traduziu e publicou meu relatório sobre megaeventos esportivos e direito à moradia. A pesquisa faz parte do meu trabalho como Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada e foi apresentada ao Conselho de Direitos Humanos em março de 2010.

Abaixo, segue a introdução da Revista Proposta ao relatório e o link para acessá-lo em sua versão traduzida.

A questão dos megaeventos é debatida na ONU

Esta edição de Proposta apresenta a primeira tradução em português deste documento de 2009, em que a Relatora Especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, se dirige ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Constam do documento análises, impressões críticas e recomendações a respeito da prática dos megaeventos nas cidades e seu impacto sobre o direito à moradia adequada.

Concentrando-se em dois megaeventos esportivos periódicos, os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de Futebol, a relatora estabelece um parâmetro de análise e debate sobre o papel de cada ator social, econômico e político no processo de promover, realizar e administrar eventos deste porte. A leitura deve ter em consideração a numeração corrida dos parágrafos, não obstante a separação em capítulos por algarismos romanos e o uso de capitulares como abertura de seções nos capítulos.

Clique aqui para baixar.

Para acessar a versão original nos idiomas oficiais da ONU, clique aqui.

Megaeventos esportivos é tema de especial da Caros Amigos este mês

A edição deste mês da Caros Amigos traz um especial sobre megaeventos esportivos, com reportagens na edição impressa e entrevistas no site. Eu fui uma das entrevistadas, além do professor Carlos Vainer, da UFRJ, e do vereador do Rio de Janeiro, Eliomar Coelho.

O vídeo sobre a experiência de Nova Dehli na realização dos Commonwealth Games de 2010, que apresentamos em novembro no seminário internacional “Impactos urbanos e violações de direitos humanos em megaeventos esportivos”, também faz parte do especial e está disponível no site da revista.

Para acessar o especial, clique aqui.

Abaixo, segue a entrevista:

“Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para Copa do Mundo”

Por Débora Prado

A professora da FAU-USP e relatora da ONU para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, explica que os megaeventos esportivos são uma estratégia que as cidades têm utilizado para promover transformações urbanísticas, aproveitando o “estado de exceção”para implementar intervenções que em situações corriqueiras ou demorariam ou teriam uma série de entraves do ponto de vista jurídico-administrativo, ou seriam alvo de resistência por parte da população.

Caros Amigos – Qual a relação entre os megaeventos e as transformações urbanísticas que estão acontecendo?

Esta é uma estratégia que as cidades têm utilizado para promover transformações urbanísticas, com uma dupla serventia: de um lado, a mobilização que o megaevento promove em nível nacional e internacional acelera a possibilidade de investimentos e transformações, ao mesmo tempo em que,, na competição entre as cidades pela atração de investimentos internacionais, o megaevento traz visibilidade. E, finalmente, como se trata de megaeventos esportivos há uma comoção em torno disso, um apego emocional, que justifica um verdadeiro estado de exceção, uma situação em que as regras normais de como uma coisa deve ser feita não precisam ser cumpridas. Então, o Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras no âmbito da Copa do Mundo estão utilizando isso para poder fazer essas transformações que em situações corriqueiras e normais ou demorariam ou teriam uma série de entraves do ponto de vista jurídico-administrativo, ou teriam uma série de resistências da população.

Caros Amigos – Então ele gera um estado de exceção em que as regras do planejamento urbano, como as diretrizes estabelecidas pelo Estatuto das Cidades, não precisam ser cumpridas?

Na verdade, nenhuma dessas intervenções faz parte de um processo de planejamento urbano, muito menos de um processo de planejamento urbano participativo que é aquilo que prega o Estatuto das Cidades. Digamos é a substituição de um planejamento geral da cidade por mega-projetos.

Caros Amigos – Que atendem mais a interesses imobiliários?

Temos que entender isso num âmbito mais internacional dos rumos que a política urbana tomou no mundo. Houve um processo de captura da política urbana por uma espécie de empresariamento urbano. Então a ideia, que era muito corrente nos países desenvolvidos entre os anos 1950 e 1970, de uma cidade planejada, de um acesso universal à cidade, da política de planejamento urbano como uma atividade do Estado como uma dimensão pública, isso tudo é substituído por um  paradigma de empresariamento urbano, ou seja, o processo de transformação das cidades vai se dar basicamente conectados e dirigidos para a promoção de negócios e atração de investimentos, numa linha direta entre o modelo de política urbana e o capital, sobretudo, o capital imobiliário.

Caros Amigos – No caso do Rio, as implementação das UPPs (Unidades de Polífcia Pacificadora) e as ações no Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro são ações direcionadas para os realização dos megaeventos esportivos?

Em primeiro lugar, é preciso ver que a geografia das UPPs   corresponde as áreas de interesse direto da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, porque as favelas, as comunidades em que as UPPs entram em primeiro lugar são comunidades da zona sul, em torno da rede hoteleira da zona sul, da região da Barra da Tijuca, Jacarepaguá, do entorno do Maracanã e da zona portuária. Todas elas são áreas de projetos diretamente ligados a Copa do Mundo.
Agora, já a ocupação militar de alguns morros que aconteceu em novembro é uma questão diferente, ela tem evidentemente alguma ligação com a Copa e as Olimpíadas no sentido de buscar eliminar uma parte do trafico de drogas, que é o comércio varejista de drogas controlado a partir dos morros. Esse comércio varejista já estava completamente fragilizado em função de um lado pelas UPPs e do outros pelas milícias. Aliás, é muito importante ressaltar que as comunidades que estão ocupadas pelas milícias, que são igualmente violentas, ilegais e responsáveis por atos de barbárie e ilegalidade,  não tem UPP. Mas, então, o trafico já estava fragilizado por conta dessa questão, isso então implica de uma ação clara de desmontagem dessa face do tráfico que é o comércio varejista. Evidentemente, o tráfico tem outras dimensões e ele tem outras escalas e, em relação a essas outras dimensões e escalas, não temos noticias de que está havendo uma ação de combate.  Mas, tem sim uma relação com os megaeventos na medida em que a pacificação da cidade do Rio de Janeiro é uma condicionalidade, um elemento fundamental para que os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo aconteçam, mas eu diria que a relação não é direta.

É importante entender que junto com as UPPs e com a ocupação militar do morro também está acontecendo um investimento grande em urbanização de favelas. Então tem também outra dimensão que é a da urbanização dos morros. Agora, há toda uma discussão que cabe sobre o modo como isso é feito, porque a urbanização dos morros, a sua integração aos bairros, a transformação dessas  comunidades em bairros sob a égide do Estado, é um ponto que historicamente quem lutou pelos direitos dos moradores das comunidades sempre reivindicou. Mas, nós queremos que depois que urbanizar, entre lá a coleta de lixo da cidade, por exemplo. A ocupação do Estado na comunidade não significa uma ocupação militar, territorial, mas sim uma presença do Estado no sentido de que a barreira que separa a favela da cidade, que é uma barreira administrativa, patrimonial, urbanística, seja desbloqueada. E isso também não está claro, se esses direitos vão ser afirmados,então  isso é uma dimensão desse debate. E outra dimensão é a forma de fazer, se a forma como tem sido levada tanto o processo de urbanização, como hoje essa ocupação militar, se essa é a melhor forma, o melhor processo. Eu recebi várias denuncias de que muitas violações estão acontecendo nesse bojo. A política de afirmação de direitos tem que ter uma espécie de baliza para esse tipo de atuação. Mas, é obvio que o domínio de algumas favelas pelo tráfico era um domínio violento, bárbaro, não cidadão e que também precisava ser enfrentado, é importante colocar essa dimensão também.

Caros Amigos – E em relação a preparação para a Copa e Olimpíadas, que problemas estão aparecendo?

Em primeiro lugar é importante mostrar que já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para Copa do Mundo em relação à lei de licitações, em relação à isenção de impostos, a não necessidade de algumas salvaguardas que normalmente são exigidas, que vão desde alterações de plano diretor que não passam pelos processos normais de alteração, excepcionalidades que já estão sendo votadas pelas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e pelo Congresso Nacional através de medidas provisórias. Em todas as esferas, isso já está acontecendo no Brasil. Além do mais, é um requisito, por exemplo, por parte da FIFA na Copa do Mundo de que o território no entorno da onde acontece os jogos saia julgo normal das regras da cidade e passe a ter um julgo especial. Então, esse julgo especial impede, por exemplo, a presença de vendedores ambulantes, porque os patrocinadores tem exclusividade da venda. Em toda área do entorno do estádio o tipo de policiamento, de controle é diferente do normal. Nós vimos no seminário que fizemos em São Paulo, o pessoal da África do Sul contando situações onde, por exemplo, se uma pessoa furtasse qualquer tipo de coisa ela era sumariamente, sem nenhum julgamento, já era presa na hora, havia tribunais especiais, ou seja, um verdadeiro estado de sítio. Esse tipo de coisa também vai acontecer aqui e acho que é uma questão bastante grave, precisamos entender qual é o limite.

Caros Amigos – E aqui já há denúncias nesse sentido?

Como relatora do direito a moradia adequada, o que eu tenho recebido mais são denúncias de despejos e ameaças de despejo, principalmente de comunidades de baixa renda, de assentamentos precários, em função de obras de infraestrutura ou estádios, ou estacionamentos de estádios, coisas ligadas aos equipamentos da Copa do Mundo em várias cidades do Brasil. Não é apenas no Rio de Janeiro, mas Belo Horizonte já estão acontecendo despejos e a gente recebeu também notícias de Fortaleza nesse sentido. E a discussão em relação ao despejo é que tudo aquilo que o Brasil, como signatário do “Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” – que  define claramente no caso de ser necessária uma remoção quais são os procedimentos adequados que devem ser adotados e seguidos – não está sendo aplicado. Às pessoas que estão sendo removidas não é dada a chance sequer de ter informação sobre o projeto, sobre qual vai ser a alternativa oferecida a ela para o reassentamento. Também não é dada a chance de se estudar alternativas que evitem ou minimizem as remoções, enfim, são adotados procedimentos como o ‘cheque despejo’, que é dar um cheque de mil reais, dois mil reais, três mil reais pra uma família, o que é absolutamente insuficiente para ela se instalar de qualquer forma em qualquer moradia digna. E isso é uma prática corrente não só em situações ligadas à Copa, mas em qualquer grande projeto que está sendo implantado no Brasil. Em obras do PAC, por exemplo, em obras como o rodoanel em São Paulo, as comunidades que estão ameaçadas de serem despejadas em função da construção da usina de Belo Monte.

Caros Amigos – E tem sempre um apelo emocional para justificar isso, ou é o ufanismo com os eventos esportivos, ou o ideal de desenvolvimento, de progresso, de crescimento…

Isso. E essa é uma discussão que se coloca no campo socioambiental e no campo dos direitos. O processo de desenvolvimento econômico e de crescimento, assim como fazer uma Copa ou Olimpíada, deve ser para o País uma oportunidade de afirmação de direitos, de promoção e de avanço de direitos, exatamente pelo tipo de oportunidade que se apresenta, de haver recursos, de ter uma mobilização. Mas, para isso nós precisamos ver claramente um compromisso, um plano que vá nessa direção, e nós não vimos nenhum milímetro nesse sentido até agora.
Caros Amigos – E isso chegou a acontecer em outros países, esse processo mais democrático?

No Canadá, por exemplo, quando teve a discussão das Olimpíadas de Inverno lá, teve um plano que foi apresentado, teve uma ampla discussão na sociedade civil, a sociedade civil exigiu um plano de intervenção de promoção de direitos humanos e de preservação socioambiental e, a partir daí, foi assumido como um compromisso. Tudo bem que na hora de implementar, uma parte não saiu do papel, mas teve a discussão e o compromisso e no nosso caso, cadê? Cadê o processo de discussão pública do projeto? Quem está discutindo a questão da Copa e das Olimpíadas no Brasil? Uma máfia, que é FIFA com a CBF, um Comitê Olímpico Internacional que é um pouco diferente, pautado por um pouco mais de ética e transparência, mas que, enfim, ele é apenas um ator. Tem os governos – federal, estadual e municipal, entretanto, os cidadãos que lutaram para conseguir  uma pauta de participação pública para decisão dos seus destinos simplesmente estão absolutamente fora do processo.

Caros Amigos – E quais seriam os meios para entrar no processo?

Há diversas discussões acontecendo e uma série de entidades que estão levantando esse debate. E esses momentos estão convergindo para uma articulação nacional, uma rede de mobilização e monitoramento da Copa e das Olimpíadas, pela não violação dos direitos humanos, pela promoção dos direitos, e por um plano de intervenção socioambiental. A ideia é que essa rede seja um instrumento de mobilização baseada em Comitês Populares da Copa em cada uma das cidades sedes, que já estão se articulando, em Porto Alegre, Fortaleza e Rio de Janeiro esse já é um processo em curso. E aí a ideia é fazer um calendário unificado com as entidades, com as associações, mas também em articulação com a própria institucionalidade de defesa dos interesses difusos, junto ao Ministério Público, as Defensorias Públicas. E também através de uma vasta rede de organizações e de entidades ligadas a diversas áreas dos direitos – os direitos trabalhistas, de controle público e social do orçamento, os processos de participação na definição de políticas públicas, como os conselhos, as associações dos moradores e, principalmente, os representantes das comunidades afetadas.

Caros Amigos – A repressão a essas comunidades tem sido forte né?

Esse debate precisa ser melhor pautado na nossa sociedade. Há uma criminalização da pobreza no nosso país, de certa maneira, as imagens da favela armada resistindo a policia, a criminalização da pobreza, toda e qualquer forma de ocupação acaba sendo vista e veiculada como crime, portanto não gerando por parte da própria população qualquer tipo de apoio. Então, isso torna a luta desses moradores que não tem absolutamente nada de criminosos, mais difícil.

Caros Amigos – E a grande mídia reforça essa criminalização?

Bastante. Trazer outro tipo de informação, outras perspectivas é fundamental, porque se trata de uma espécie de consenso forjado em torno de uma visão só e a questão é mais complexa, não se trata da luta do bem contra o mal. Há mais elementos que deveriam ser mostrados, deveria ser dado voz aos moradores, por exemplo.

 

Em Porto Alegre, Copa 2014 vira justificativa para qualquer alteração urbanística

No início deste mês, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou um projeto de lei complementar, enviado pelo executivo, elevando os índices de aproveitamento para reformas e ampliações de centros esportivos, clubes, equipamentos administrativos, hospitais, hotéis, centros de eventos, centros comerciais, shopping centers, escolas, universidades e igrejas.

Tudo isso apenas um mês depois da entrada em vigor do novo plano diretor da cidade, que passou por revisão este ano. E mais: tendo a Copa do Mundo de 2014 como justificativa, embora seja difícil entender o que igrejas, hospitais e escolas têm a ver com isso.

O que aconteceu em Porto Alegre mostra, na verdade, que a Copa de 2014 está sendo usada como motivo para que se altere o regime urbanístico das cidades brasileiras sem critérios, sem estudos e sem os processos de discussão públicos e participativos necessários.

Leia notícia sobre este assunto publicada no Jornal do Comércio, de Porto Alegre, no dia 2 dezembro.

Medidas especiais para a Copa de 2014 em benefício de quem?

Duas notícias sobre a preparação para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 me chamaram a atenção esta semana. Uma é da Folha Online, sobre a aprovação no Senado de duas medidas provisórias que visam facilitar a realização dos jogos. Uma delas prevê isenção fiscal na importação de materiais – para a construção e reforma dos estádios – e também de insumos – medalhas, troféus, suprimentos médicos, alimentos etc – que serão utilizados durante os jogos. A segunda medida autoriza a elevação do teto de endividamento das cidades-sedes.

A segunda notícia, publicada no portal do Governo Federal, trata da realização, esta semana, em Brasília, do 2º Encontro Técnico de Segurança Pública para a Copa 2014. Segundo a reportagem, o foco do governo é trabalhar na integração das forças de segurança pública e em como fazê-las trabalhar de forma articulada em todas as cidades-sede.

Estas notícias mostram que medidas especiais estão sendo pensadas e colocadas em prática para viabilizar a realização desses megaeventos esportivos no Brasil. Entretanto, não temos visto ainda o mesmo tratamento especial em relação, por exemplo, às comunidades que serão (ou que já estão sendo) atingidas pelas obras. Na verdade, nenhuma medida, especial ou não, vem sendo tomada neste sentido e, com isso, milhares de famílias estão ameaçadas de despejo sem nenhum diálogo e sem garantia de que terão respeitado o seu direito à moradia.

O que temos visto até agora é a ausência de uma agenda socioambiental positiva e a falta de respeito a direitos já conquistados. Portanto, é extramemente preocupante que tais formas de encaminhamento da gestão permitam o descumprimento de regras já estabelecidas e sirvam apenas para viabilizar os negócios em torno da Copa sem considerar a implementação de um plano social includente.

Preocupadas com o processo de organização dos jogos e suas consequências do ponto de vista social, diversas organizações da sociedade civil vêm realizando debates para discutir o tema. Neste fim de semana, por exemplo, a REME (Rede Megaeventos Esportivos) promove na sede do CREA no Rio de Janeiro o seminário “O desafio popular aos megaeventos esportivos”. Para mais informações, clique aqui.

Salvador realiza seminário para discutir impactos de intervenções urbanísticas na cidade. Inscrições terminam hoje

Terminam hoje, às 17h, as inscrições para o seminário “Planejando um futuro digno: a cara de Salvador entre o passado e o futuro”, que acontecerá neste sábado (13), das 8:30 às 17h, na sede do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), que organiza o evento. As vagas são limitadas. O CEAS fica na Estrada de São Lázaro, 101, Federação.

Este será mais um evento que discutirá os impactos para as comunidades populares das intervenções urbanísticas em função da Copa de 2014, além de outras, como o projeto Salvador Capital Mundial, o metrô, a via expressa e a ponte Salvador-Itaparica. Nas últimas semanas, Rio e São Paulo também realizaram atividades para discutir os impactos dos megaeventos esportivos.

Para mais informações e inscrições, falar com Manolo ou Catarina.
Telefone: 71 3247.1232
E-mails: cadernosdoceas@gmail.com / revista@ceas.com.br