Tragédia em Mariana completa um ano: atingidos ainda lutam por reparação

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Foto: Rofério Alves/TV Senado

Amanhã, dia 5, a maior tragédia ambiental do país, o rompimento da Barragem do Fundão, de responsabilidade da Samarco, da Vale S.A. e da BHP Billiton, em Mariana, em Minas Gerais, completa um ano.

A imprensa tem chamado a atenção sobre os enormes impactos ambientais do desastre. Os resíduos das mineradoras devastaram não apenas o município de Mariana, mas o Rio Doce e seu entorno, chegando até o mar.

Mas na minha coluna dessa semana na Rádio USP dei ênfase ao impacto do desastre na vida das pessoas que perderam suas casas, sua cidade, sua história.

Ações emergenciais como um cartão alimentação e o auxílio moradia já estão sendo disponibilizadas para as pessoas.  Mas nem sequer o cadastramento das pessoas atingidas, fundamental para o cálculo das reparações, foi concluído e ainda há discussão de quem foi afetado ou não pela tragédia. O reassentamento dos que perderam suas casas ainda não ocorreu, de forma que centenas de pessoas continuam precariamente instaladas na cidade de Mariana. Além disso, depois de terem perdido tudo, os atingidos estão sendo culpados por moradores da cidade pelo fato da Samarco ainda não ter obtido uma licença para retomar suas atividades e, portanto, a oferta de empregos que gerava.

Outro debate é a proposta da construção de um dique que vai definitivamente inundar de lama o distrito de Bento Rodrigues, área mais atingida da cidade. Ou seja, o vilarejo de Mariana vai definitivamente desaparecer do mapa.  Isso também tem gerado uma enorme discussão  na cidade: Bento Rodrigues, patrimônio histórico, deve mesmo desaparecer?

Ouça o comentário completo no site do Jornal da USP. O programa Cidade para Todos vai ao ar todas as quintas-feiras, às 8h30.

Licenciamento ambiental: ruim com ele, muito pior sem ele

A prova concreta de que os processos de licenciamento ambiental para grandes obras são muito frágeis no Brasil é o caso da barragem do Fundão, em Mariana (MG), cujo rompimento, no final do ano passado, nos levou ao maior desastre ambiental da história do nosso país.

E o que poderíamos esperar do poder público depois desse desastre? Deixar tudo como está, obviamente, não é a saída. Hoje, os processos de licenciamento ambiental são transgredidos por todos os lados.

As empresas, responsáveis por contratar os estudos de impacto ambiental (EIA), muitas vezes pressionam os técnicos responsáveis por realizá-los e chegam até mesmo a alterar o conteúdo dos relatórios.

Do outro lado, os próprios governos pressionam para que os relatórios sejam aprovados, uma vez que já decidiram, muito antes da elaboração dos estudos, que vão realizar as obras de qualquer jeito.

Ou seja, os processos de licenciamento ambiental hoje não servem para decidir se obras ou empreendimentos serão feitos a partir das considerações sobre seus impactos socioambientais, nem sequer para definir diretrizes básicas para os projetos.

Como não existe independência na elaboração dos estudos de impacto, estes terminam servindo tão somente para apontar quais problemas podem ser mitigados e que compensações devem ser feitas, muitas delas às vezes sem nenhuma relação com os impactos do empreendimento.

Ainda assim, a regra trifásica –EIA, Licença de Implantação e Licença de Operação–, que em tese deveria servir para verificar se as medidas compensatórias e mitigadoras estão de fato sendo implantadas, é em diversos casos uma ficção: muitos empreendimentos já se encontram em plena operação antes de estas licenças serem expedidas.

Assim, diante da forma como vem sendo implantado esse modelo, no mínimo esperam-se mudanças no sentido de aperfeiçoar os processos de licenciamento, melhorando a qualidade dos relatórios de impacto, ampliando a participação da sociedade desde a concepção dos projetos, promovendo a articulação entre os diversos órgãos públicos envolvidos e sua capacidade de fiscalização.

É assustador, porém, ver que as discussões em curso hoje, ao menos no âmbito do legislativo federal, vão completamente na contramão disso tudo.

Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 65/2012, do senador Arcir Gurcacz (PDT-RO), que inclui um parágrafo a mais no artigo 225 da Constituição Federal, determinando que basta a apresentação de um estudo prévio de impacto para que a execução da obra seja autorizada, sem que esta possa posteriormente ser suspensa ou cancelada.Na prática, essa PEC simplesmente anula o licenciamento ambiental.

O Congresso também discute hoje o projeto de lei nº 654/2015, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), apresentado no âmbito da chamada “Agenda Brasil”, pacote proposto pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) para enfrentar a crise econômica.

Esse PL propõe simplificar o licenciamento ambiental para obras de infraestrutura consideradas estratégicas. Isso significa que justamente as obras mais complexas e de maior impacto socioambiental, como usinas, represas, barragens, estradas etc, ficariam praticamente livres do licenciamento.

Segundo levantamento do Instituto Socioambiental, existem hoje no Congresso Nacional 34 propostas de alteração no licenciamento. Infelizmente, a maior parte dessas iniciativas tem como objetivo e justificativa simplesmente encurtar os prazos.

Ou seja, o único problema que deputados e senadores enxergam é a demora na aprovação dos licenciamentos. Não tocam em nenhuma das questões que de fato precisam ser enfrentadas. Pior, propõem destruir o pouco que temos hoje, que foi duramente construído ao longo de muitos anos, e isso inclui o aprendizado das próprias empresas para lidar com questões socioambientais, que não pode ser desprezado.

Assim, fico me perguntando por que, mesmo com casos tão recentes como o desastre de Mariana, que mostram que o licenciamento ambiental precisa ser urgentemente aperfeiçoado, surgem nesse momento propostas que representam tamanho retrocesso?

Não consigo não pensar no momento de crise política e econômica que vivemos, com um processo de impeachment em curso e investigações de corrupção. E aí percebo que estamos diante de um completo esvaziamento da ideia do espaço da política como aquilo que cuida do bem comum. E então me vem à lembrança o discurso personalista e messiânico de boa parte dos deputados na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara Federal.

O que importa, para estes, é fazer obra rápido, a tempo de inaugurar com o nome da mãe, agradecer a Deus em público, filmar e tirar foto para postar nas redes sociais. Aliás, permitir a inauguração de obras no curso de um mandato aparece como justificativa em um dos projetos de simplificação do licenciamento em tramitação. Não vem ao caso saber se precisamos ou não dessa obra e qual seu efeito na transformação do território e na vida das pessoas.

Apesar de todos os problemas, o licenciamento ambiental que temos hoje ainda é a única instância no processo de decisão e implantação de grandes transformações do nosso território que exige que as populações atingidas sejam de algum modo informadas e que elabora e publiciza um mínimo de informações sobre as obras e seus impactos.

O que está sendo proposto desmonta o pouco que temos de mecanismos de controle, afastando ainda mais as possibilidades de enfrentarmos os reais problemas socioambientais de nosso país.

*Coluna publicada originalmente no site da Folha.

O acordo da Samarco ou as raposas cuidando do galinheiro

Está em fase final de discussão a minuta de um acordo que tem por objetivo definir as ações de reparação ambiental, compensação e indenização às vítimas do maior desastre ambiental já ocorrido no país, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), em novembro do ano passado.

O acordo está sendo negociado e deverá ser assinado entre a mineradora Samarco, a Vale e a BHP Billiton – responsáveis pela tragédia -, a União, os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, bem como o Ministério Público Federal e os respectivos ministérios públicos estaduais.

O problema fundamental desse acordo, que prevê R$ 18,8 bilhões de gastos inteiramente custeados pelas empresas, por um período de 15 anos, é que caberá a elas – e a mais ninguém – decidir como e onde esse dinheiro será aplicado e quem terá direito à indenização.

Explico:segundo a minuta que está em discussão,as empresas criarão uma fundação de direito privado, por meio da qual executarão ações de “reparação, mitigação, compensação e indenização pelos danos socioambientais e socioeconômicos” decorrentes do desastre.

Caberá a essa fundação elaborar um plano de investimentos para a região, a fim de reparar os impactos do desastre nos campos ambiental, social, histórico-cultural e econômico, a partir de um rol bastante abrangente e minucioso de considerações e ações que constam do acordo.

Entretanto,a forma como vem sendo discutido e elaborado este acordo mostra que tudo que está sendo proposto ficará sob controle das empresas responsáveis pelo desastre. Por exemplo, o conselho de administração da fundação será composto por 7 membros, sendo 6 representantes das empresas e um indicado por um “comitê interfederativo” (que, em tese, representa dezenas de órgãos governamentais de municípios, estados e do governo federal).

Não há qualquer previsão de participação das vítimas ou de representantes dos indivíduos e comunidades atingidas, nem sequer em um conselho consultivo (sem poder de deliberação). Aliás, os afetados pela tragédia não tiveram até agora nenhuma participação na formulação e negociação desse acordo, o que é uma flagrante violação de seus direitos.

Assim, as próprias empresas que causaram o desastre terão o poder de decisão sobre todo o processo de reparação ambiental, compensação e indenização das vítimas. Sem qualquer forma de controle social, sem a participação de organizações independentes que possam representar os atingidos, e com diminuta participação dos governos de todas as esferas e mesmo do judiciário.

A própria fundação será encarregada de realizar o levantamento e o cadastro das vítimas – ou seja, decidir quem terá direito aos reparos, compensações e indenizações – e definir de que forma tudo isso será feito.Além disso, caso alguém queira contestar suas decisões, a fundação é que proverá assistência jurídica a essas pessoas… ou seja, ela mesma pagará os advogados que “defenderão” quem a ela se opuser!

Um acordo nos termos que estão sendo propostos apenas repete a lógica que preside a avaliação dos impactos de atividades como a mineração: são as próprias empresas que contratam os laudos ambientais que apresentam ao poder público. Só que,muitas vezes, esses laudos são elaborados sob enorme pressão das empresas, que devolvem aos consultores seus relatórios revisados e editados, minimizando os impactos apontados. No fundo, são elas mesmas que definem se suas atividades são ou não seguras. É possível afirmar, inclusive, que esta é justamente uma das causas do desastre.

Após a divulgação da minuta do acordo pela imprensa na semana passada, fontes do planalto afirmaram à imprensa que o governo defende a inclusão das vítimas nos fóruns de discussão e decisão referentes a esse processo. Esperamos que isso seja feito.

Como afirmou Sérgio Abranches em entrevista recente à Rádio CBN sobre o assunto,se em um desastre ambiental dessas proporções a resposta é a transigência, podemos esperar que isso seja um convite para um novo desastre.

Prefiro acreditar que ainda está em tempo de evitar que isso aconteça eque não seja tão pífia a resposta ao maior desastre ambiental do nosso país.

*Publicado originalmente no site da Folha

Tragédia em território devastado

Nos últimos dias, o país vem assistindo estarrecido ao desastre ocorrido no município de Mariana (MG), com o rompimento de duas barragens pertencentes à mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP. Um mar de lama de rejeito da mineração invadiu várias cidades e já chegou ao Espírito Santo, causando mortes, destruição e danos ainda incalculáveis.

Essa é, obviamente, uma tragédia de imenso impacto –humano, ambiental e econômico–, como toda a imprensa vem mostrando. Mas é necessário dizer também que se trata de um evento extremo em um território já completamente arruinado pela atividade mineradora que ali se implantou. E isso não diz respeito somente a esse lugar, mas a muitas outras áreas de mineração do país.

O modelo de implementação dessa atividade no Brasil é, em si, devastador. A forma como se implanta não apenas a lavra –a extração do minério propriamente dito–, mas toda a sua estrutura de produção, envolvendo a captação de água, instalação de energia elétrica, logística de distribuição etc., destrói territórios, desconstitui atividades produtivas e desestrutura modos de vida. A dimensão e ritmo dessa exploração agravam ainda mais a situação.

Hoje, a lavra é realizada por meio de uma concessão para explorar o subsolo, que é patrimônio público. Mas para conseguir explorar o que está embaixo, as mineradoras vão comprando, total ou parcialmente, as terras da população local. Essas verdadeiras desapropriações feitas pelo privado são parte de estratégias agressivas de implantação do complexo minerador que vão inviabilizando a sobrevivência de outras atividades locais. Além disso, se dão através de processos judiciais em que muitas vezes pequenos produtores têm que enfrentar gigantes multinacionais. Assim, comunidades inteiras são afetadas na sua relação com o território e muito pouco, ou quase nada, recebem em troca.

Quem continua a viver nessas regiões quase sempre enfrenta a poluição de rios e do ar e a impossibilidade de continuar com a produção agrícola local. Enfim, a atividade mineradora acaba com as condições de sobrevivência no lugar e no seu entorno, gerando poucos empregos locais e deixando lucros bem limitados. As barragens de rejeitos, como as do Fundão e de Santarém, em Mariana, que ocupam áreas gigantescas, são apenas um exemplo do que ocorre nesse tipo de atividade.

Certa vez ouvi do ex-prefeito de Ouro Preto Ângelo Oswaldo a seguinte frase, “o ouro deixou o barroco, o ferro, o barraco.” Com todas as ressalvas necessárias –não podemos pensar o ciclo do ouro sem lembrar que ele se realizou com trabalho escravo e muita exploração para enriquecimento da metrópole–, o que se destaca nessa frase é a pobreza promovida pela mineração em tempos atuais, quando isso não deveria mais ser admissível.

Afinal, em nome de que e por que ainda convivemos com isso? A extração de minério no Brasil atinge enormes escalas não para atender à indústria local e suas perspectivas futuras, mas para exportar. Por isso, a exploração exige ritmo e intensidade tão fortes. O que estamos vendo, portanto, é uma tragédia sobre outra tragédia, que já estava em curso há muito tempo, e que continuará ali e em outras partes do país se não enfrentarmos esse problema.

*Coluna publicada originalmente no Caderno Cotidiano da Folha.