São Paulo perde Gerôncio, lutador pelo direito à moradia

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Gerôncio Henrique Neto. Foto: Lucas Bonolo/Rede Brasil Atual

Via observaSP

Recebemos hoje a triste notícia do falecimento do Sr.Gerôncio, 73 anos, liderança da comunidade do Jardim Edith, na zona Sul de São Paulo. Ele foi vítima de um atropelamento, chegou a ser hospitalizado, mas não resistiu. O enterro será realizado nesta sexta-feira, às 10h, no Cemitério Parque dos Ipês (Estrada Ary Domingues Mandu, 2719 – Itapecerica da Serra – SP).

Gerôncio Henrique Neto nasceu na cidade de Santana de Ipanema, no estado de Alagoas, mudou-se para São Paulo na década de 60, e desde o início se envolveu com os problemas da comunidade do Jardim Edith, onde se instalou com a família.

As primeiras remoções de moradores da comunidade começaram nos anos 1970, para a construção de obras viárias. Em meados dos anos 1990, mais famílias foram retiradas. Em todos esses momentos, Gerôncio e seus familiares resistiram. Inserida no âmbito da operação urbana consorciada Água Espraiada, aprovada em 2001, a área do Jardim Edith foi demarcada como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) no Plano Diretor de 2002, depois de muita pressão dos moradores.

Isso não resolveu o problema da comunidade, constantemente ameaçada de remoção, mas foi muito importante para que pudessem lutar pela permanência no local. Em 2007, com a intensificação das remoções por parte da Prefeitura, após um incêndio ter atingido a comunidade, a Associação de Moradores do Jardim Edith, por meio da Defensoria Pública, acionou a Justiça para reivindicar a permanência no local. A decisão saiu em 2008, determinando a suspensão das remoções. Por meio de um acordo judicial, a Prefeitura então se comprometeu com a construção de um conjunto habitacional, com creche e área de lazer, para atender as 240 famílias que ainda restavam na comunidade.

Depois de décadas de lutas, nas quais o Sr.Gerôncio foi protagonista, o conjunto habitacional do Jardim Edith foi construído e, no final de 2012, as famílias começaram a ocupá-lo. O conjunto é formado por torres residenciais, uma unidade básica de saúde, uma creche e um restaurante-escola. Gerôncio era um dos moradores.

Em uma reportagem da Rede Brasil Atual de 2013, ao lhe perguntarem como explicava tanta persistência na luta pelo direito à moradia, Gerôncio respondeu: “Rapaz, eu vim para São Paulo fugindo da seca e da fome. E para me tratar de um problema no estômago, do qual tive de ser operado. Aqui no Edite eu perdi dois filhos. Um morto pela polícia, outro por bandidos. Mas eu nunca perdi a fé na justiça, é isso que me move”.

“Seu” Gerôncio, como era chamado, vai fazer falta na cidade. Com seu jeito calmo e persistente, mostrou para todos nós que não há sonhos impossíveis… Vamos sempre nos lembrar dele cada vez que passarmos por aquele belo conjunto de moradia popular encravado na “esquina da riqueza com a mina de ouro”, como dizia, em plena capital do capital.

Brasil e Argentina: diferenças e semelhanças para além do futebol

No mês passado, visitei a Argentina como Relatora da ONU para o Direito à Moradia. Certamente, foi uma visita bem diferente das demais que eu já havia feito naquele país como turista ou como professora e urbanista. Com certeza também foi uma experiência muito diferente da que estavam vivenciando inúmeros brasileiros que encontrei pelas ruas de Buenos Aires, obsessivamente ocupados em fazer compras, ouvir tango e beber vinho (não que não sejam coisas ótimas de se fazer por lá).

Como Relatora da ONU, entro por uma espécie de porta dos fundos dos países que visito, que costuma ser o avesso do que mostram os cartões postais e campanhas publicitárias para atrair turistas. Em Buenos Aires, por exemplo, pude conhecer, ainda que rapidamente, um outro lado de Puerto Madero, a mais nova frente de expansão imobiliária da cidade, em pleno centro da cidade.

Puerto Madero é uma antiga área portuária que foi reocupada com escritórios, bares, restaurantes e lofts de luxo. Um turista que vai a um de seus restaurantes não se dá conta da existência, ali bem pertinho, de uma favela (chamada de “villa” pelos argentinos) que existe desde os anos 1980 e que se expandiu com a chegada de operários que construíram os novos empreendimentos da região.

A comunidade em questão chama-se Rodrigo Bueno. As pessoas que lá moram agora lutam para permanecer onde vivem – afinal, são terras públicas – e receber investimentos em infraestrutura, já que ali não há rede de água, nem de esgoto, nem nada que possa ser chamado de urbanidade. Contra sua permanência estão, principalmente, os novos proprietários do terreno vizinho, uma gleba que pertencia ao Clube Boca Juniors (cujo ex-presidente é o atual prefeito de Buenos Aires) e que foi vendida para um dos maiores incorporadores imobiliários da cidade, que ali pretende implantar um condomínio residencial fechado, áreas comerciais e amenidades náuticas. Além disso, há também ambientalistas que consideram o assentamento uma ameaça à reserva ecológica que existe na região.

A operação urbana de Puerto Madero tem semelhanças e diferenças com projetos do mesmo tipo aqui no Brasil. Em São Paulo, na região da Berrini, Marginal Pinheiros e Vila Olímpia, duas grandes operações urbanas – Faria Lima e Águas Espraiadas – promoveram uma grande transformação numa antiga área industrial, onde algumas comunidades, como a do Jardim Edith e a Real Parque, lutaram bravamente para permanecer onde se encontravam.

Tanto em Buenos Aires, quanto em São Paulo, trata-se de transformações urbanísticas implementadas através de parcerias público-privadas, promovidas pelos governos municipais nos anos 1990 e 2000. Nos dois casos, são operações de renovação – com torres de escritórios, restaurantes e empreendimentos de luxo – que geraram processos de altíssima valorização imobiliária. Mas as semelhanças param por aí.

Puerto Madero é uma extensão do próprio centro de Buenos Aires, que nunca foi abandonado por suas elites – como ocorreu em São Paulo – e nunca perdeu sua heterogeneidade de funções: ao mesmo tempo é lugar de moradia e de negócios, de vários grupos sociais. A qualidade urbanística de Buenos Aires sempre foi – e continua sendo – incomparavelmente melhor do que a de São Paulo. Seu centro, incluindo Puerto Madero, é um lugar de pedestres e  as calçadas e espaços públicos são a base de sua estrutura urbana.

Além disso, na operação urbana de Puerto Madero, executada por uma corporação pública, a valorização imobiliária que foi gerada ficou em mãos do poder público, que foi leiloando o solo à medida que a operação avançava. Em São Paulo, toda a valorização foi apropriada pelo setor privado, que especulou com os CEPACS (certificado de potencial adicional de construção) que financiaram a operação.

Por outro lado, nas leis que viabilizaram as operações Faria Lima e Águas Espraiadas, as favelas ali existentes foram declaradas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), estabelecendo um compromisso de urbanizá-las e regularizá-las com os recursos das operações. Em Puerto Madero, a favela Rodrigo Bueno, entre outros assentamentos que já existiam na região, foi literalmente ignorada.

É bem verdade que as promessas de urbanização das favelas da região das operações paulistanas não foram cumpridas e nenhuma foi urbanizada até agora com recursos destas operações. As últimas 250 famílias – de um total de 50 mil que ali residiam – continuam resistindo e ganharam, na Justiça, o direito de morar em novas habitações no local.

Buenos Aires e São Paulo; Puerto Madero e Vila Olimpía; Villa Rodrigo Bueno e Favela do Jardim Edith; Boca Juniors e Corinthians; futebol e negócios milionários: de fato, somos muito diferentes e profundamente parecidos.

Texto originalmente publicado no Yahoo!Colunistas.

Escândalo iminente na operação urbana Água Espraiada?

A Associação de  Moradores do Jardim Edith, no bairro do Brooklin, está preocupada com a informação, não confirmada pela prefeitura, de que parte da área desapropriada para a construção de habitação de interesse social – cerca de 3,5 mil m² – será vendida para um incorporador privado que tem o interesse de construir ali um grande empreendimento comercial, acrescentando lotes privados lindeiros.

Desde dezembro do ano passado, por determinação da Justiça, estão sendo construídos três conjuntos habitacionais na área, que antes era ocupada pela favela do Jardim Edith. Após um acordo com a prefeitura, 240 famílias desocuparam o local para que fossem construídos os conjuntos habitacionais, além de uma creche, um posto de saúde, um restaurante-escola, um estacionamento e uma área de lazer. O projeto faz parte da operação urbana Água Espraiada.

A informação que está circulando é a de que vizinhos insatisfeitos com a construção de moradias populares na área – trata-se de uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) – estão pressionando a prefeitura para excluir parte do terreno destinada ao projeto e vendê-lo a um incorporador privado. Com isso, a comunidade perderia o restaurante-escola e a área de lazer e os vizinhos, com a incorporação dos 3,5 mil m² públicos, viabilizariam junto com a venda de seus terrenos uma grande incorporação no local.

Caso essa informação se confirme, estaremos diante de uma ilegalidade escandalosa, já que a área do projeto foi fruto de um decreto de desapropriação destinado à construção de moradia de interesse social. Antes de mais nada, no entanto, é importante que a prefeitura esclareça a questão.