
Dificuldade para realojar desabrigados de incêndio em Londres revelou alto número de imóveis vazios na cidade. Foto: PPA
A divulgação do número de imóveis vazios em Londres, pelo jornal The Guardian, despertou um grande debate sobre a crise de moradia na capital inglesa. Segundo o periódico, são mais de 20 mil imóveis sem uso em toda a cidade. Um dos indicadores dessa crise foi a dificuldade da Prefeitura em encontrar lugar para realojar as vítimas do incêndio que atingiu o edifício Grenfell Tower, em junho deste ano, onde muitas famílias moradoras dependiam de auxílio-aluguel público para morar. Ao procurar imóveis disponíveis para alugar e abrigar as famílias, a Prefeitura descobriu que havia quase 1700 prédios fechados somente naquela região.
A capital inglesa vive a sua maior crise de moradia desde o final da Segunda Guerra Mundial. A maior parte das moradias sociais foi privatizada através do programa “Right to Buy”, durante o governo de Margareth Thatcher, levando ao desmonte do parque de habitação social. Diante dos números divulgados pela imprensa e da enorme fila de pessoas que necessitam de moradia, o atual prefeito da cidade, Sadi Khan, propôs que proprietários de imóveis vazios há mais de dois anos paguem um valor mais alto de Council Tax, um imposto anual sobre a propriedade de imóveis (similar ao nosso IPTU), implantado em 1993 no Reino Unido.
Há diversas razões para explicar a questão, mas, nos distritos de Kensington e Chelsea, onde estão as maiores concentrações percentuais de imóveis vazios, um fenômeno particular está ocorrendo já há alguns anos: ali estão localizadas mansões de milionários, sheiks do petróleo, plutocratas russos e companhias offshore. Recentemente, o ex-prefeito de Nova York Michel Bloomberg também tornou-se proprietário de uma dessas casas luxuosas.
Essas mansões, no entanto, não são usadas como moradia permanente, mas como uma espécie de “safe deposit box”, um cofre de segurança. Ou seja, mais um investimento financeiro do que a necessidade de uso, o que traz consequências para toda a cidade, na medida em que contribui para valorizar intensamente algumas regiões, impactando também no aumento de preços em toda a cidade e, portanto, tornando mais inacessível a moradia para quem de fato precisa viver lá.
A proposta do prefeito londrino de aumentar as taxas é uma tentativa de incentivar a ocupação dos imóveis. Há todo um embate na sociedade e meios políticos para que a taxa – hoje limitada a 2% do valor do imóvel em toda Inglaterra –, aumente. Também se discute a efetividade de uma medida como esta.
Assim como Londres, sabemos que São Paulo também enfrenta uma grave crise habitacional. No começo da semana, a Prefeitura anunciou a intenção de reajustar o IPTU. No caso brasileiro, além de este imposto ser uma importante fonte de arrecadação do município, pode ser também um instrumento de política urbana e habitacional.
Desde a Constituição de 1988, nosso ordenamento jurídico entende que as propriedades devem cumprir uma função social e, por isso, aquelas que permanecem vazias ou subutilizadas, de acordo com o plano diretor de cada cidade, devem pagar IPTU progressivo no tempo, podendo o imposto chegar a até 15% do valor do imóvel. No final deste processo, se o imóvel continuar sem uso, pode chegar a ser desapropriado com pagamento em títulos da dívida pública.
Infelizmente, no entanto, na prática, isso não ocorre. São Paulo é uma das poucas cidades que começou, na gestão passada, a implementar o IPTU progressivo no tempo. Mas este mecanismo prevê um longo caminho até chegar à possibilidade de desapropriação, sem contar as muitas instâncias do poder judiciário às quais os proprietários podem recorrer para escapar da exigência.
Assim, muitos imóveis permanecem vazios e subutilizados, especialmente na região central. Boa parte deles tem, inclusive, grandes dívidas com a Prefeitura e, mesmo assim, sua possível transferência para o município encontra enormes dificuldades para se concretizar.
Um caso emblemático do que acabamos de descrever é a Ocupação Mauá, na região da Luz, onde há mais de dez anos moram dezenas de famílias de baixa renda. O prédio ficou fechado por duas décadas e tem uma dívida de mais de R$ 5 milhões com a Prefeitura. Ainda assim, a administração municipal depositou, em 2016, R$ 11 milhões em juízo para desapropriar o imóvel e transformá-lo em habitação de interesse social. Mas – pasmem – o proprietário recorreu à Justiça arguindo o valor e, depois disso, um perito nomeado pelo juiz avaliou que o prédio vale R$ 25 milhões.
Com isso, e com o aval do Judiciário, a tentativa da Prefeitura de obter a posse do imóvel não foi adiante. Agora, as famílias estão em risco eminente de remoção, já que a Justiça decidiu pela reintegração da posse ao proprietário. Ou seja, apesar do que afirma a Constituição Federal, perícia e Judiciário simplesmente ignoram a função social da propriedade. Em São Paulo assim como em Londres não será possível enfrentar a grave crise da moradia se princípios como este não forem respeitados e, interferirem , de fato, no funcionamento de mercados hoje extremamente especulativos.
Falei sobre isso na minha coluna da semana passada na Rádio USP. Ouça Aqui.