As barricadas que dividem São Paulo

Reportagem publicada no jornal Brasil de Fato em 19/10/2009, disponível neste link.Protestos expõem insatisfação das periferias em face às diversas formas de violência a que são submetidas

Por Patrícia Benvenuti

O helicóptero sobrevoa e flagra as chamas que tomam conta de pneus, entulhos e até de um ônibus em uma avenida interditada. O estampido dos tiros e das bombas se mistura ao barulho de sirenes histéricas de viaturas. Muito corre-corre. A cena descrita narra mais um confronto entre policiais e moradores em uma favela de São Paulo.

Só neste ano, foram pelo menos dez grandes protestos em diversas regiões de periferia da capital paulista, que resultaram em enfrentamentos com a polícia e um saldo de destruição de casas e pertences familiares, pessoas presas e feridas.

Orquestradas, ou não, para coincidirem com os programas policialescos dos finais de tarde, o fato é que essas manifestações parecem expressar a revolta dos moradores contra as tantas formas de exclusão e violência de que são testemunhas diárias.

O caso de Heliópolis

A manifestação mais recente aconteceu em Heliópolis, na zona sul de São Paulo, a maior favela paulistana, com cerca de 100 mil habitantes. Na noite de 31 de agosto, a estudante Ana Cristina Macedo foi assassinada enquanto voltava do curso supletivo, alvejada por um tiro que partiu de um guarda civil metropolitano de São Caetano do Sul, no ABC paulista, que perseguia um grupo suspeito de roubar um carro.

Baleada no momento em que tentava se esconder atrás do carro, Ana Cristina só foi socorrida pelos guardas civis, segundo os moradores, depois da autorização de um policial militar que chegou ao local. Segundo relatos, os guardas teriam segurado a estudante pelos braços e pernas e jogado seu corpo dentro da viatura. A jovem ainda chegou com vida ao hospital, falecendo em seguida.

Sob gritos de “assassinos”, os moradores atiraram pedras contra policiais e contra o veículo que foi motivo da suposta troca de tiros. Os manifestantes também montaram barricadas com pneus e pedaços de madeira, além de terem incendiado e apedrejado carros e ônibus. Com apoio do Grupo de Operações Especiais (GOE) e do Grupo de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), a polícia lançou bombas de efeito moral e tiros de borracha para conter o protesto.

Intensificação

Para a urbanista e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, “a intensificação dos confrontos tem a ver, de um lado, com a retomada de investimentos em infraestrutura e urbanização, em grande escala, afetando as comunidades e, por outro, com uma atitude mais truculenta, menos negociadora, por parte da prefeitura e governo do Estado na relação com os moradores”, argumenta.

Opinião semelhante tem o integrante da União dos Movimentos de Moradia (UMM) Benedito Roberto Barbosa, que atribui o aumento dos protestos à interferência agressiva do poder público nas comunidades, atingidas de forma crescente por grandes intervenções urbanas. “As obras chegam e não levam em conta que aí tem uma comunidade”, pontua.

Como exemplo, Barbosa cita o projeto de ampliação da Marginal do Tietê, cujas obras devem remover cinco favelas do entorno, na zona norte. Revoltados, os moradores da Favela do Sapo, localizada na Água Branca, organizaram um protesto contra uma ordem de despejo emitida para 450 famílias e contra a inserção de apenas as cem famílias mais antigas da comunidade em programas habitacionais. Para o restante, foi oferecido apenas o chamado “cheque-despejo”, com valores entre 1,5 mil e 8 mil reais.

A mesma situação foi vivenciada pelos moradores de Paraisópolis, na zona sul, onde dezenas de famílias foram despejadas e tiveram suas casas demolidas para dar espaço a obras de “revitalização” da favela. Sem direito à indenização, foi oferecido o financiamento de um novo imóvel e, para as famílias que não tivessem renda suficiente, um “cheque-despejo” de cinco mil reais, um cômodo em um albergue ou uma passagem de retorno para suas cidades de origem.

Esse tipo de política, para Barbosa, traz consequencias negativas não apenas para os moradores, mas para todo o conjunto da sociedade. “A Prefeitura chega com uma proposta de oferecer uma indenização pífia para as famílias, porque isso nem é indenização, é uma vergonha. Então as pessoas vão morar nas margens dos rios e dos mananciais, aumentando os problemas ambientais da cidade”, explica.

Raquel Rolnik também critica as medidas, que evidenciam falta de vontade política para solucionar as questões habitacionais. “As desapropriações e despejos forçados não resolvem o problema da falta de moradia. O exemplo do ‘cheque-despejo’, da prefeitura de São Paulo, é um caso emblemático no qual o poder público empurra o problema com a barriga, sem desenvolver estratégias adequadas para mitigar suas raízes”, analisa.

Além destes casos, Barbosa alerta para outras obras que devem ser a causa de mais tensionamentos. Uma delas é a construção de um parque linear na zona leste, como compensação ambiental para a ampliação da Marginal do Tietê, que pretende desalojar cerca de 12 mil famílias dos bairros de São Miguel Paulista e Itaim Paulista.

Na zona sul, a construção de um túnel de 4,5 quilômetros que ligará a Avenida Jornalista Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes será responsável pelo despejo de aproximadamente oito mil famílias. “É um confronto anunciado, vai ter conflito”, prevê Barbosa, que atenta também para a relação entre a força do mercado imobiliário e o discurso repressivo que estigmatiza os moradores. “Como tem amplo apoio do setor imobiliário, a Prefeitura remove as famílias e ainda diz isso, que [quando ocorrem manifestações] todos são bandidos”, completa.

Violência policial

A violência policial sistemática nas comunidades também funciona como um catalisador de tensões nas periferias. Para o coordenador auxiliar do Núcleo Especial de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo Antonio Maffezoli Leite, os conflitos são o resultado final do descontentamento da população de áreas pobres com o tratamento recebido pelas forças de segurança do Estado.

“Pegando o último caso de Heliópolis, em que há perseguição de um suposto bandido que viria de São Caetano, com tiroteio. Fato que jamais aconteceria em um bairro rico. O Rio de Janeiro tem vários casos recentes. Isso acaba só demonstrando uma forma que já é histórica das polícias não só de São Paulo, de como elas veem e tratam os moradores de comunidades carentes” analisa.

As ações da polícia na periferia, de acordo com o Maffezoli, refletem a maneira como a sociedade, em geral, encara seus pobres. “A sociedade brasileira, com esse sistema de desigualdade social, acaba segregando uma grande parcela dela para os guetos, e essas pessoas não são vistas como iguais a todas as outras. As forças de segurança, quando têm que intervir em qualquer coisa, simples ocorrências do cotidiano, acabam usando uma força totalmente desproporcional e uma atuação sem controle”, critica.

O defensor público aponta, ainda, que a falta de investigações para abusos policiais e a impunidade, na imensa maioria dos casos, contribuem para a agitação da comunidade. “Normalmente, em casos que envolvem excessos policiais, as investigações são extremamente superficiais e acabam não chegando em lugar nenhum. É exceção que uma armação e um excesso feitos pela polícia acabem sendo desvendado”, assegura.

Para o integrante da União de Movimentos de Moradia, é preciso estar atento à repressão nas favelas, na medida em que são graves e crescentes as denúncias sobre abusos policiais. “Acompanhamos com preocupação por causa da violência da polícia, é um desrespeito com as pessoas. A periferia de São Paulo hoje está sitiada, qualquer coisa é motivo para a polícia entrar e matar as pessoas”, afirma.

Integração

Para Raquel Rolnik, o fim dos conflitos só cessarão com o fim da separação entre favela e cidade, possibilitada por uma série de medidas que regularizem as comunidades que hoje estão isoladas e sem acesso pleno a serviços públicos. “[Isso] envolve, necessariamente, as ruas estarem no cadastro da prefeitura; o caminhão de lixo da prefeitura entrar no local; todos receberem o carnê do IPTU, mesmo que seja isento do pagamento; regras de uso e ocupação do solo, sobre onde pode haver casas ou comércio etc”, explica a urbanista.

Simultaneamente , Maffezoli indica a necessidade de aproximação entre moradores e policiais, a fim de destruir estereótipos. “A polícia comunitária é um pouco isso. O policial está inserido naquele contexto, ele conhece todo mundo, se envolve com aquilo e não é uma força inimiga, uma força externa que chega em um determinado local em algum momento do conflito, vendo aquelas pessoas como inimigas”, argumenta.

Os conflitos de 2009

Favela Chica Luísa, zona norte

31 de julho – Moradores da favela Chica Luísa realizaram um protesto contra a morte de um mecânico pela Polícia Militar. De acordo com a PM, o homem teria reagido durante a uma abordagem. Os moradores atiraram pedras contra viaturas da polícia e, mais tarde, um ônibus foi incendiado próximo ao Rodoanel. O motorista do coletivo ficou ferido.

Favela Filhos da Terra, Tremembé, zona norte

26 de agosto – A execução de um inocente, tido como traficante pela polícia, foi a causa da revolta dos moradores, que organizaram um protesto para denunciar a violência policial na comunidade. Durante a ação, ônibus e carros foram queimados.

Favela Tiquatira, zona leste

6 de janeiro – Protesto contra falta de abrigos municipais depois de um incêndio que destruiu diversos barracos na comunidade. Os manifestantes interditaram a Marginal Tietê, queimando pneus e outros objetos. Também foram lançadas pedras contra os policiais, que usaram bombas de efeito moral, gás de pimenta e dispararam tiros de borracha. Três pessoas foram presas.

13 de maio – Moradores fizeram um protesto contra a prisão de um jovem, autuado por tráfico de drogas, e de sua mãe, acusada de desacato. Os manifestantes bloquearam uma rua com pneus e pedaços de madeira e atearam fogo em quatro veículos. Em resposta, a PM lançou balas de borracha e bombas de efeito moral. Pelo menos duas pessoas ficaram feridas. Pai e vizinhos do rapaz preso asseguram que ele não tem envolvimento com crimes.

Favela do Sapo, na Água Branca, zona oeste

15 de julho – Moradores realizaram uma forte manifestação nos arredores da comunidade, revoltados com a ameaça de despejo por parte da Prefeitura, que alega que as casas estão em áreas de risco. As famílias, no entanto, afirmavam ter recebido apenas a oferta de um cheque-despejo no valor máximo de cinco mil reais.

Favela Cidade Jardim, zona sul

6 de abril – Moradores da comunidade realizaram uma manifestação contra a falta de água no bairro, que ocupou totalmente a pista na altura da Ponte Engenheiro Ary Torres.

Favela da Cidade Tiradentes, zona leste

6 de maio – A desocupaçãode mais de 20 casas depois de um deslizamento de terra foi o estopim de um protesto na comunidade. Moradores atearam fogo em pneus e em um ônibus que estava quebrado. A Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha para dispersar os manifestantes. Cerca de 120 pessoas ficaram desalojadas.

Paraisópolis, zona sul

2 de fevereiro – Policiais e moradores da comunidade entraram em confronto após o assassinato de um homem durante uma abordagem. A polícia sustenta que o homem assassinado era um traficante; os moradores afirmam que a vítima não tinha relação com o crime. Em protesto, eles montaram barricadas e atearam fogo em veículos, pedaços de madeira e outros objetos, ocupando as ruas da comunidade. Seis pessoas ficaram feridas e nove foram presas.

Heliópolis, zona sul

31 de agosto – Moradores da maior favela de São Paulo revelaram-se contra a morte de uma estudante de 17 anos atingida por um tiro disparado por um guarda civil durante um suposto tiroteio com um suspeito de roubar um carro. Os moradores montaram barricadas com madeira e pneus incendiados e receberam bombas de efeito moral e tiros de borracha por parte dos policiais. Pelo menos dois moradores se feriram.

Jardim Aracati, zona sul

25 de maio – O atraso de linhas de ônibus na região foi o motivo da revolta de moradores da comunidade, que apedrejaram nove coletivos nas proximidades da Estrada do M’Boi Mirim. Com a chegada da polícia, os moradores fugiram. Um passageiro ficou ferido durante a ação.

É preciso integrar favelas à cidade, diz relatora da ONU

Entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 2 de setembro de 2009

Mariana Barros, da reportagem local

Para Raquel Rolnik, desafio é eliminar a fronteira que separa a favela do bairro. Para isso, essas regiões devem estar integradas à gestão urbana, isto é, ter regras para uso de solo e altura de prédio, cadastros de ruas, entre outros.

As imagens transmitidas pela TV dos protestos ocorridos ontem em Heliópolis pareciam uma reprise repetida em espiral: moradores rebelando-se contra a violência e combatidos pela polícia, em confrontos capazes de gerar novos episódios violentos. Para Raquel Rolnik, professora da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) e relatora da ONU para direito à moradia, esse ciclo só será rompido quando a favela deixar de ser um lugar separado do resto da cidade.

FOLHA – Que sintomas levaram a essa nova onda de protestos?
RAQUEL ROLNIK –
Duas coisas: uma absoluta falta de diálogo, para lidar com os conflitos que existem, e a criminalização da pobreza, como se a totalidade dos moradores da favela fosse ligada ao crime. Isso é muito perigoso. A maior parte da população que vive ali não tem nada a ver com o crime. Certamente a menina que morreu [Ana Cristina de Macedo] não tinha nada a ver com crime.

FOLHA – Mas os criminosos também estão presentes.
ROLNIK –
Sim, o crime organizado se instalou em locais historicamente abandonados. Mas não se pode reduzir os indivíduos que vivem lá à presença do crime. Isso faz com que a abordagem seja violenta -veja que a abordagem é basicamente a da polícia. E assim a violência volta a acontecer, como acontece em Paraisópolis, no Rio de Janeiro, em outras cidades.

FOLHA – Episódios como esse aumentam o receio da classe média em relação às favelas?
ROLNIK –
As notícias sobre esses lugares são única e exclusivamente as ligadas à violência. Em uma favela, acontecem mil coisas, inclusive as ligadas à violência, mas não só elas. Isso faz com que se pense que o correto é a eliminação total das pessoas que moram lá.

FOLHA – Heliópolis também é noticiada nas páginas de cultura, por conta da orquestra sinfônica e de já ter sido tema de filmes e livros.
ROLNIK –
São Paulo não é uma cidade de grandes favelas, mas de muitas e pequenas favelas. Heliópolis e Paraisópolis chamam a atenção por justamente serem grandes. Assim, atraem ONGs, movimentos sociais, produções culturais. Recebem mais investimento porque têm mais visibilidade.

FOLHA – E ainda assim vivem episódios de violência. Por quê?
ROLNIK –
Minha filha colheu depoimentos em Heliópolis para uma pesquisa. O que mais a marcou foi o de uma menina que morava lá contando que o que ela mais detestava em Heliópolis não era a falta de infraestrutura nem de nada material, mas ter de dizer que morava numa favela. Por mais que existam saneamento, água e luz, tem a cidade e tem a favela. O maior desafio é a integração plena, a eliminação da fronteira que separa a favela do bairro.

FOLHA – Obras de reurbanização, como financiadas pelo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], não contribuem para a integração?
ROLNIK –
Claro que recursos do PAC para urbanizar são absolutamente bem-vindos. No Brasil não havia investimentos de vulto para a urbanização de favelas. Mas ainda está colocado o desafio da eliminação total da diferença entre favela e bairro. Heliópolis já foi objeto de muito trabalho social, produção habitacional, mas continua sendo a favela de Heliópolis. Paraisópolis idem. Há um bloqueio aí.

FOLHA – Como rompê-lo?
ROLNIK –
As ruas têm de estar no cadastro da prefeitura, o caminhão de lixo da prefeitura, e não um especial, entra, todo mundo recebe o carnê do IPTU [Imposto Predial Territorial Urbano], ainda que seja isento, há regras de uso e ocupação do solo, sobre onde pode haver casas ou comércio, qual a altura máxima dos prédios, cada unidade habitacional está registrada no cartório no nome de quem a ocupa etc. A regularização administrativa e patrimonial está bloqueada e ela é que precisa avançar, porque vai significar a diferença.