Mais um incêndio e as soluções fáceis que não existem

Bombeiros e Defesa Civil trabalham após incêndio no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, na zona norte do Rio. (foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

O incêndio recente que atingiu grande parte do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, levanta, para além da questão do desprezo da nossa cultura pela memória, o tema da gestão dos espaços e equipamentos públicos.

Qualquer espaço construído necessita de manutenção, incluindo também pequenas reformas, permanentemente. Sabemos isso através da experiência em nossas casas: uma telha que quebra, se não for trocada imediatamente pode gerar infiltrações . Um cano que estoura ou entope, um vidro que quebra: precisam ser consertados. Às vezes reformas mais drásticas são necessárias para manter o desempenho e a segurança do edifício, como quando o velho aquecedor de gás precisa sair do banheiro e, de acordo com as novas normas, ser reinstalado fora da casa. Não consertar, trocar, manter – como sabemos – vai implicar, além de uma aparência de abandono e descuido, uma deterioração física que pode se transformar em risco . Esta constatação óbvia e presente na vida cotidiana de todos enfrenta por incrível que pareça enormes dificuldades para poder se viabilizar quando se trata de espaços públicos. E assim povoam nosso cotidiano as cenas de escolas, praças, museus deteriorados.

As dificuldades de manutenção permanente dos equipamentos públicos são basicamente de duas ordens. Em primeiro lugar, obras de manutenção, silenciosas e invisíveis, são muito pouco atraentes do ponto de vista político, gerando pouco “recall” eleitoral – e, portanto, são pouco ou nada priorizadas.

Um exemplo eloquente do que acabo de dizer são os critérios e forma de distribuição dos recursos públicos, especialmente quando escassos: é possível obter investimentos para construção novas (ou mesmo para reformas espetaculares), que são inauguradas com faixas e placas que agradecem os políticos ou empresários que conseguiram o dinheiro. Me lembro inclusive de um prefeito que numerava as placas de metal postadas nos equipamentos que inaugurava em sua gestão. Mas para as pequenas obras e ações de manutenção de todo dia, sem fitinha para cortar , é muito mais difícil.

Porém a existência – ou não – de recursos para manutenção está longe de ser o único obstáculo. O mais sério , a meu ver, é o quanto, como resposta simplista aos perigos da corrupção, literalmente se impossibilita a ação do setor público. Comprar um vidro para trocar ou fios elétricos para uma nova instalação se transforma cada vez mais em um pesadelo: licitações obrigatórias exigem o menor preço (e não raro se gasta dinheiro em fita crepe que não cola, por exemplo) e um rito demorado e complexo é o cotidiano dos gestores de espaços públicos. Aterrorizados pelas pressões dos órgãos de controle, os servidores são acuados e se obrigam a percorrer não o caminho mais ágil, e sim o mais seguro do ponto de vista jurídico, que geralmente é também o mais lento.

Neste contexto, falar em “negligência” dos gestores é , no mínimo, simplista. É como temos visto diante das demais crises de nosso modelo de Estado e política, uma espécie de “algoz’ que se apresenta para os cidadãos revoltados com as tragédias, para acalmar sua ira e, na verdade, obscurecer as tramas que estão por trás dela. Para, desta forma, mantê-las exatamente como são.

É também neste registro ocultador que funciona a opção “privatização” de todos os equipamentos como alternativa às dificuldades – reais – de gestão que temos da coisa pública. Ao contrário dos que advogam por esta solução, “privatizar” não necessariamente melhora as condições de combate à corrupção, na medida em que amplia as possibilidades de apropriação privada de recursos públicos e, em geral, diminui os espaços de controle social. Por outro lado, a equação da rentabilidade econômica – fundamental para que a manutenção dos serviços e equipamentos públicos seja um  bom negócio – pode comprometer suas  próprias atividades-fim. Trocando em miúdos: para um museu ser rentável precisa se transformar  em shopping center.

Qual é a solução, portanto? É exatamente este debate, difícil, complexo e espinhoso e sem saídas fáceis, que precisamos encarar neste momento.

Transparência e acesso à informação: fundamental para a pesquisa

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Ilustração: Alejandro Santos

No começo da semana, um áudio vazado do agora ex-chefe de gabinete da Secretaria de Comunicação da Prefeitura de São Paulo revelou a utilização de empecilhos para evitar que jornalistas conseguissem informações por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

O episódio é lamentável e levanta questões não só sobre a ilegalidade do ato, mas também nos fala sobre a transparência da gestão municipal. A transparência na gestão pública não se mede apenas na dimensão reativa, no atendimento aos pedidos de informação, mas também na sua ação propositiva, que deveria disponibilizar para todo e qualquer cidadão informações relativas à gestão da cidade. Essa atitude é fundamental para o controle social parte dos cidadãos. Quanto mais transparente a gestão, mais as pessoas podem acompanhar o uso dos recursos e se informar sobre programas e projetos de seu interesse.

Para a pesquisa realizada no âmbito universitário essa falta de transparência também tem impacto gravíssimo. Da mesma forma que a disponibilidade de informações amplia sobremaneira as possibilidades de estudo, o contrário prejudica os pesquisadores, cujo trabalho incisivo pode contribuir com o aperfeiçoamento das políticas públicas.

Em 2014, um programa chamado Dados Abertos, de iniciativa da Controladoria Geral do Município e da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, tornou a vida dos pesquisadores um paraíso ao disponibilizar uma grande quantidade de informações.  Entretanto, o que estamos assistindo em São Paulo é a  interrupção – se não o retrocesso – de uma política política de transparência que vinha sendo implementada na cidade.

Há alguns exemplos: O portal Dados Abertos está desatualizado, a divulgação de mortes e acidentes no trânsito, que na gestão anterior era feita trimestralmente, está com frequência menor e restrita às ocorrências nas marginais. Além disso, a Controladoria Geral do Município, um órgão que era autônomo e fundamental para o cumprimento e implantação do acesso à informação e transparência, perdeu completamente a sua autonomia, ficando subordinado aos objetivos mais gerais da gestão.

Também falei sobre esse assunto na minha coluna da última quinta-feira (9) na Rádio USP. Ouça Aqui.

 

São Paulo, Territórios em Disputa e os limites do planejamento

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Foto: @ruajuventudeanticapitalista/Facebook

Recentemente, por ocasião do lançamento do meu novo livro, Territórios em disputa, concedi entrevista à Folha de S. Paulo, abordando alguns dos temas trazidos pela publicação. Disponibilizo a íntegra abaixo. Na mesma semana, sugeri aqui no blog e nas redes sociais que os leitores me enviassem perguntas sobre o livro e a cidade. Agora, aproveito este espaço para comentar as questões que recebi e também alguns temas que foram objeto da entrevista com o jornalista Raul Juste Lores, mas que ficaram de fora, já que a conversa foi longa e, portanto, não coube integralmente no jornal.

São Paulo dos muros e grades

O avanço dos enclaves fortificados em São Paulo, ou seja, dos condomínios e espaços de fruição pública dentro de locais privados, como os shoppings, ocorreu especialmente entre meados dos anos 80 e os anos 90. A disseminação deste modelo de cidade está relacionada ao avanço da cultura do medo. Naquele momento, de crise econômica e desemprego, a expansão do mercado ilegal de drogas e seus impactos nos índices de criminalidade e violência funcionaram como forte indutor da construção de muros.

Mas não podemos negligenciar dois elementos: 1) Que imagens difundidas nos meios de comunicação, como as de guerras de gangues, por exemplo, ajudaram a vender estes novos produtos imobiliários em cidades do país inteiro, inclusive em lugares distantes do epicentro da violência; 2) Que aquele foi um momento de crise fiscal e que a sensação de insegurança foi potencializada pelo abandono dos espaços públicos, penalizados com o corte de investimentos em iluminação, limpeza, zeladoria e políticas sociais para a proteção dos mais vulneráveis, justamente quando esses investimentos eram mais necessários.

A situação era muito semelhante ao que ocorre agora. O corte nos gastos públicos subverte aquilo que deveria ser a prioridade de qualquer governo em meio ao aumento do desemprego: o fortalecimento das redes de proteção às pessoas mais vulneráveis e o aumento da manutenção e do investimento em espaços públicos, diminuindo, assim, as possibilidades de acesso ao consumo de espaços ofertados pelo mercado.

 Existem políticas públicas sem políticos?

Uma seguidora do Twitter enviou o seguinte questionamento: “como fazer cumprir critérios e padrões técnicos por sobre decisões políticas amarradas aos interesses do mercado imobiliário?”. Essa pergunta parte de um entendimento que precisamos romper: a de que os critérios técnicos não são políticos. De fato, eles são. Todo critério parte de uma escolha, que implica atender demandas e/ou visões de determinados segmentos da sociedade.

Além disso, todo processo decisório no âmbito das políticas públicas requer, para ser implementado, uma mediação com atores da cena política. Nesse ponto, essa pergunta se relaciona com outra questão que abordei na entrevista à Folha: tanto o ex-prefeito Fernando Haddad quanto o atual, João Doria, são políticos. E não há nenhum problema nisso. Nenhum governo, municipal, estadual ou federal, pode viabilizar suas propostas sem se relacionar com operadores políticos, como vereadores, deputados ou senadores, que têm suas próprias agendas, seja de representação de suas bases, seja de reprodução de seus próprios mandatos e partidos.

Tanto Doria como Haddad tiveram, por exemplo, que fazer escolhas para compor suas equipes de governo, de modo a acomodar os diferentes interesses dos partidos que compõem/compunham suas bases no legislativo, por exemplo.

Até aí, os dois são igualmente políticos, embora Doria insista em tentar enganar os paulistanos afirmando que não é. Mas há um fosso que os separa. Doria tem escolhido como único interlocutor o mercado. É do mercado que ele precisa de aprovação e é a agenda do mercado que ele representa. Essa interlocução é pouco transparente e inacessível aos cidadãos comuns e se dá à margem dos espaços institucionais, ou mesmo por fora deles.

Haddad também se relacionava com o mundo dos negócios, claro, mas tinha um leque de interlocutores muito mais amplo: movimentos sociais, como os de moradia, além de novos movimentos, como os coletivos culturais do centro e das periferias, para os quais abriu espaços de escuta, os cicloativistas, entre outros. E mais: o ex-prefeito investiu e valorizou os espaços institucionais, como os conselhos e os processos de discussão pública, como o do Plano Diretor.

Destas interlocuções resultaram, por exemplo, políticas e iniciativas que caminhavam na direção de uma cidade mais aberta, com espaços públicos ocupados, distanciando-se daquela lógica da cultura do medo, que multiplicou os condomínios e shoppings centers, e da hegemonia do automóvel.

Planejamento e seus limites

Outra pergunta enviado foi: “Como o planejamento urbano pode intervir para reduzir os conflitos socioeconômicos?” Nos anos 80/90, os movimentos pela reforma urbana apostaram na formulação de Planos Diretores que, elaborados de forma participativa, visavam enfrentar a exclusão territorial e promover a redistribuição de recursos, garantindo a justiça socioterritorial. Esse planos incluíram instrumentos como a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), instrumentos de regularização fundiária e os de reconhecimento dos direitos dos moradores assentamentos populares, captando para um fundo público a outorga onerosa do direito de construir e lucros imobiliários e o IPTU progressivo no tempo, entre outros.

Mas houve dois fatores que bloquearam o sucesso dessa empreitada. O primeiro é que os Planos Diretores tratam somente da produção do espaço construído pelo mercado, aplicando-se apenas à cidade formal, o que corresponde, talvez, à metade do território e à minoria dos seus habitantes. Por exemplo, o Zoneamento, que é o instrumento que mais incide concretamente na definição dos usos e formas de ocupação dos terrenos das cidades, não chega na cidade real, não tem linguagem para dialogar com ela. Estes são instrumentos de matriz colonialista, que não conseguem reconhecer outros agenciamentos espaciais. É como usar uma betoneira para navegar no mar… não foram feitas para isso!Assim, mesmo diante dos imensos esforços para garantir participação na elaboração desses instrumentos, como ocorreu com o último Plano Diretor de São Paulo, durante a gestão Haddad, eles continuam longe da maioria dos cidadãos.

O segundo fator tem a ver com o fato de que os processos reais de produção da cidade são decididos no dia a dia não por planos, mas por processos mediados por interesses econômicos, sociais e políticos, como já comentei. E é justamente por isso que é fundamental, hoje, fortalecer as práticas sociais que transformam o território: os processos de formulação/ação direta de cidadãos organizados ou não em coletivos que atuam de forma horizontal e colaborativa. Alguns colegas tem denominado essas práticas  de planejamento insurgente ou abolicionista.

Leia entrevista publicada na Folha de S. Paulo

Modelo de cidade voltada para carro não foi superado, afirma urbanista

Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Raquel Rolnik, 61, publicou em 2001, dentro da coleção “Folha Explica” (Publifolha), um volume dedicado à cidade de São Paulo.

Ela revisita e atualiza esses textos em “Territórios em conflito – São Paulo: espaço, história e política” (Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha), no qual também inclui uma série de ensaios publicados na Folha, no portal Yahoo e em seu blog, além de textos mais acadêmicos. A obra será lançada nesta quarta-feira (18), na livraria Martins Fontes (avenida Paulista, 509, em São Paulo), das 18h30 às 21h30.

“A mobilidade e o comportamento mudaram, mas o modelo de cidade para o carro não foi superado. O modelo dos enclaves, de condomínios fechados a shoppings, não foi superado”, afirma. Do programa Minha Casa, Minha Vida, do PT, à gestão João Doria (PSDB), ela se debruça especialmente na última década da Pauliceia.

Rolnik foi diretora de Planejamento da prefeitura na gestão de Luiza Erundina pelo PT, entre 1989 e 1992, e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, entre 2003 e 2007, no governo Lula (PT).

Folha – São Paulo foi planejada para ser do jeito que é?

Raquel Rolnik – Ao contrário do senso comum, que acredita que São Paulo não teve planejamento, houve uma enorme influência de decisões políticas urbanísticas em como a cidade se estruturou. Em determinados momentos, opções tecnocráticas decidiram como crescemos. Não houve acaso.

Nessa última década, os paulistanos começaram a usar muito mais o espaço público. Dá para ser otimista?

A mudança na relação dos moradores da cidade com o espaço público já aconteceu. O sucesso da Paulista aos domingos e a ocupação da praça Roosevelt mostram que não se trata apenas de parque ou praça, as pessoas querem andar, pedalar, usar a calçada. Há tensões, conflitos.

A mobilidade e o comportamento mudaram, mas o modelo de cidade para o carro não foi superado. O modelo dos enclaves, de condomínios fechados a shoppings, não foi superado. Como qualquer processo, pode sofrer reveses.

No livro, a sra. diz que o prefeito Doria reverteu a “ruptura da hegemonia do automóvel sobre todas as demais formas de circulação”. E que o programa Cidade Linda trata de “apagar a presença dos jovens do espaço público, especialmente os que vivem na periferia”, ao combater pichações e grafite. Como avalia a gestão?

Doria vem da mídia, lança objetos de comunicação diariamente. Parece cheio de ideias, algo que pega bem nos primeiros meses de mandato. Só que são só ideias, não uma mudança de gestão. Ele se veste de gari, faz a limpeza em frente às câmeras, mas, dois meses depois, o mesmo lugar está imundo. A imagem funciona, mas a zeladoria não mudou. A cidade não está nada linda. Para implementar um programa, há um processo longo, que envolve mudança de rotinas, uma guinada no transatlântico.

A sra. escreveu que tanto Haddad (PT) quanto Doria se apresentaram aos eleitores como “sem carreira de político”. Virou um padrão?

Triste da cidade que acha legal ter um prefeito que nada tem a ver com a política! Precisamos dela, queiramos ou não.

O Ministério das Cidades foi criado há 14 anos. Melhorou alguma coisa?

Não houve uma reforma do Estado brasileiro para política urbana. Goste-se ou não, houve reformas importantes na educação e na saúde, com o SUS, desde a Constituição. O desenvolvimento urbano continua com a lógica da ditadura militar. A formulação de estratégias urbanas ainda precisa acontecer.

O programa Minha Casa, Minha Vida representa um fracasso dos arquitetos e urbanistas no governo federal?

O que falou mais alto na sua formulação foi a política econômica, não a habitacional. Produzir unidades de habitação, recuperar a economia e gerar empregos, sem uma pauta urbana. A política habitacional continua com uma lógica de banco, a Caixa Econômica Federal, que herdou o espólio do BNH.

O que se repetiu foi construir em massa, apenas residenciais, bairros-dormitório apartados da cidade, sem transporte, sem urbanidade. Foi a derrota política do grupo que defendia outro tipo de política habitacional.

Grandes construtoras, que abriram capital em bolsa, precisavam adiar a crise e dinamizar o setor, e conseguiram essa política do Ministério da Fazenda.

A sra. continua a favor da demolição do Minhocão?

Sim, é um mastodonte que destruiu bairros inteiros, que eram lindos. Nasci nos Campos Elíseos, perto de onde hoje está a estação do metrô Marechal Deodoro, sei do que falo. Antes da demolição, temos que pensar em uma alternativa forte de circulação leste-oeste. Acho interessante que os pedestres usem, enquanto não vem a demolição, mas não acho que tenha muito a ver com o High Line [parque suspenso em Nova York, nos EUA], de se fazer um parque. O High Line é uma estrutura mais suave, leve, e foi criado em uma área industrial, de muitos galpões, não densamente residencial.

Há várias críticas à legislação urbana no livro. Os Planos Diretores não melhoraram essa situação?

Passei 20 anos dedicados a fomentar os processos participativos que levaram à consolidação dos Planos Diretores. Faço uma autocrítica.

A linguagem desses planos não têm uma forma permeável à participação real. Ao criar um plano para a cidade inteira de uma vez, você perde a heterogeneidade.

Precisamos de processos mais descentralizados, de planos mais locais, de abertura para a participação mais direta. A prolixidade jurídica se sobrepõe. Não tivemos pactação desses planos, um problema sério da nossa democracia.

Mas os Planos de Intervenção Urbana (PIU) e as parcerias público-privadas (PPP) são mais perversas que a regulamentação obtusa. É legislação que se faz com a retirada do debate da esfera pública, voltada só para garantir lucro dos empresários.

Os 100 dias de Doria… e o almoço grátis

Foto: @anaschad/Instagram

 

Em quase todas as colunas, posts e tweets que escrevo, defendendo o acesso público, livre e gratuito a espaços, serviços e equipamentos, aparece sempre algum comentarista que faz questão de dizer: “tem gente que acredita que existe almoço grátis”.

Esta frase virou uma espécie de mantra de uma suposta nova cultura (na verdade, bem velhinha, de mais de um século atrás) de gestão da coisa pública, de viés liberal, para a qual o mercado – “a iniciativa privada” –, por ser mais eficiente, moderno e “imune à política”, é mais capaz de administrar os espaços, equipamentos e serviços públicos da cidade.

João Doria identifica-se completamente com esse ideário. Além de defender a proposta de privatizar ativos, conceder serviços públicos para a iniciativa privada, desestatizar a gestão, o novo prefeito de São Paulo apresenta-se, ele próprio, como um empresário sem vínculos com a política e, portanto, portador das virtudes que esta condição automaticamente lhe conferiria.

Poderia discorrer longamente sobre as verdades e inverdades contidas nestas afirmações, assunto para muitos artigos, que certamente virão. Mas quero agora apenas chamar a atenção para o relato oficial divulgado pela assessoria de imprensa da Prefeitura, no dia 10 de abril, sobre as ações dos primeiros 100 dias do governo Doria em São Paulo.

De acordo com o comunicado, são 60 os programas e ações lançados até o momento, entre ações concretas (como o “Corujão da Saúde”, o “Calçada Nova” ou a “Operação Tapa-Buraco”), intenções (como o “Plano Municipal de Desestatização”, o “Nossa Creche” ou o projeto “Redenção”, de atendimento a moradores de rua) e atos que não podem ser considerados propriamente políticas públicas, como a doação do salário do prefeito para instituições de caridade.

Ao examinar a lista, chama atenção a quantidade de vezes em que os programas contaram – ou contarão, quando se trata de promessas  – com doações da iniciativa privada.

São roupas e produtos de higiene para moradores de rua, remédios para a rede de postos de saúde, exames laboratoriais, carros, reformas de banheiros, alimentos, tinta, entre tantos outros itens,  em grandes quantidades, para manter todos os equipamentos e serviços públicos funcionando. Entretanto estes equipamentos e serviços tem que funcionar , não apenas nos primeiros cem dias, mas em todas as centenas de milhares de dias que virão depois destes cem…

Será que a iniciativa privada doou para a Prefeitura, em um ato de filantropia e de amor a São Paulo, justamente os produtos de que a gestão precisa? Alguém acha mesmo que a indústria farmacêutica vai doar remédios mensalmente, até o final dos tempos, para os postos de saúde públicos? E que construtoras privadas, por pura generosidade, vão passar a fazer a manutenção mensal de todos os “equipamentos municipais” por sua conta?

É evidente que não! Como dizem meus amigos comentadores, “não existe almoço grátis”. Portanto, qual será a mágica que o prefeito fará para que estas empresas ganhem retorno financeiro com suas “doações”? Neste caso, podemos afirmar que, claro!, “o marketing é a alma do negócio!”.

Porque, sim, no momento das doações, as empresas ganham uma semana de holofotes e fama que custa (talvez) menos que 1 minuto de propaganda no horário nobre da TV. Mas, então, a pergunta que não quer calar é: passado esse momento, como faremos para continuar reformando tudo que precisa ser reformado sem parar (como nas nossas próprias casas) para manter os equipamentos e serviços públicos?

Mais uma vez recorro a meus amigos comentadores: não existe almoço grátis ‘e, portanto, quando acabar a fantasia do tudo grátis pela boa ação do privado, “sem custos para os cofres públicos”, nós vamos continuar financiando tudo com recursos públicos mesmo. Recursos que vêm dos impostos que pagamos e que, no Brasil, são cobrados de forma totalmente injusta, já que quanto mais rico se é, menos se paga, quando deveria ser bem o contrário… mas isso é tema para outra coluna.

Texto publicado originalmente no Portal Yahoo!

Planejamento inútil

No início do mês, ao ser questionado sobre um plano de contingência para a crise hídrica, que deverá ser apresentado aos municípios da região metropolitana, o governador Geraldo Alckmin afirmou que isso não passa de“papelório inútil” e que “o Brasil é um grande cartório. Tem que fazer papel, gastar dinheiro pra ficar na gaveta”.

Em um ataque de sinceridade, Alckmin revelou o que todos sabem e ninguém admite. Parece haver uma espécie de consenso em nosso país de que planejamento é algo totalmente inútil, que não serve para nada. Assim, elaboram-se planos já sabendo que não serão cumpridos. Os rituais de elaboração desses planos, em geral, percorrem um caminho paralelo, nada convergente com as decisões tomadas no âmbito da gestão pública.

As gestões, então, odeiam planos, já que estes as “engessam”, tirando a liberdade de decisão de cada mandatário eleito. Nessa lógica, não há mesmo lugar para o planejamento. Ou melhor, há: na gaveta, como bem afirmou o governador.

Na política urbana isso é claro. Abundam os planos, mas estes são discursos que encobrem os reais processos de tomada de decisão sobre o que será feito em nossas cidades. Isso se define diretamente e discricionariamente por acertos entre os poderes político e econômico, em canais de interlocução que não passam pela esfera do planejamento. Como já afirmou o mestre Flávio Villaça, “não há como anunciar obras de interesse popular porque elas não serão feitas e não há como anunciar as obras que serão feitas porque estas não são de interesse popular”.

Se os planos não funcionam como antecipação pactuada de transformações de longo prazo, porque baseadas em opções com diferentes implicações para o futuro, por que então fazemos planos?

O “papelório” a que se refere o governador são as milhares de páginas com dados, estudos, avaliações, que servem para subsidiar decisões… que não serão tomadas. Mas que alimentam a fábrica de consultorias e consultores. No fundo, o que o governador afirmou é que ele decide o que e como fazer, na hora que bem entender.

Esse modo de operar impossibilita que os efeitos das obras, políticas e programas sejam conhecidos e avaliados em seus possíveis impactos futuros, explicitando mais claramente os ganhos e perdas decorrentes das decisões tomadas. Impossibilita, portanto, que uma parcela ampla dos cidadãos possa se posicionar e optar por um ou outro caminho.

Ao contrário, então, do que os ideólogos antiplanos apregoam, os planos não são uma camisa de força –e, portanto, uma prisão tecnocrática e antidemocrática–, mas, quando elaborados com transparência e participação social, são justamente um instrumento fundamental da democracia, que nosso modo de operar teima em desconstituir.

O preço que temos pagado pela falta de planejamento –vejam as crises hídrica e de mobilidade por que estamos passando, só para dar alguns exemplos– é muito alto. É por isso que hoje, mais do que nunca, planejar de verdade, de forma aberta e participativa, é um dos principais desafios de qualquer gestão. Eu ousaria dizer que planejar, e implementar o planejado, no Brasil hoje, é revolucionário.

*Coluna originalmente publicada no Caderno Cotidiano da Folha.

Muito além da polêmica sobre a presença ou não da PM no campus da USP

Ontem participei, a convite do Grêmio da FAU, de um debate sobre a questão da segurança na USP e a crise que se instalou desde a semana passada, quando policiais abordaram estudantes da FFLCH, cujos colegas reagiram. Além de mim, estavam na mesa  o professor Alexandre Delijaicov, também da FAU, e um estudante, representando o movimento de ocupação da Reitoria.

Para além da polêmica em torno da ocupação da Reitoria, me parece que estão em jogo nessa questão três aspectos que têm sido muito pouco abordados. O primeiro refere-se à estrutura de gestão dos processos decisórios dentro da USP: quem e em que circunstâncias decide os rumos da universidade? Não apenas com relação à presença da Polícia Militar ou não, mas com relação à existência de uma estação de metrô dentro do campus ou não, ou da própria política de ensino e pesquisa da universidade e sua relação com a sociedade. A gestão da USP e de seus processos decisórios é absolutamente estruturada em torno da hierarquia da carreira acadêmica.

Há muito tempo está claro que esse modelo não tem capacidade de expressar e representar os distintos segmentos que compõem a universidade, nem de lidar com os conflitos, movimentos e experiências sociopolíticas que dela emergem. O fato é que a direção da USP não se contaminou positivamente pelas experiências de gestão democrática, compartilhada e participativa vividas em vários âmbitos e níveis da gestão pública no Brasil. Enfim, a Universidade de São Paulo não se democratizou.

Um segundo aspecto diz respeito ao tema da segurança no campus em si. É uma enorme falácia, dentro ou fora da universidade, dizer que presença de polícia é sinônimo de segurança e vice-versa. O modelo urbanístico do campus, segregado, unifuncional, com densidade de ocupação baixíssima e com mobilidade baseada no automóvel é o mais inseguro dos modelos urbanísticos, porque tem enormes espaços vazios, sem circulação de pessoas, mal iluminados e abandonados durante várias horas do dia e da noite. Esse modelo, como o de muitos outros campi do Brasil, foi desenhado na época da ditadura militar e até hoje não foi devidamente debatido e superado. É evidente, portanto, que a questão da segurança tem muito a ver com a equação urbanística.

Finalmente, há o debate sobre a presença ou não da PM no campus. Algumas perguntas precisam ser feitas: o campus faz parte ou não da cidade? queremos ou não que o campus faça parte da cidade? Em parte, a resposta dada hoje pela gestão da USP é que a universidade não faz parte da cidade: aqui há poucos serviços para a população, poucas moradias, não pode haver estação de metrô, exige-se carteirinha para entrar à noite e durante o fim de semana. Tudo isso combina com a lógica de que a polícia não deve entrar aqui. Mas a questão é maior: se a entrada da PM no campus significa uma restrição à liberdade de pensamento, de comportamento, de organização e de ação política, nós não deveríamos discutir isso pro conjunto da cidade? Então na USP não pode, mas na cidade toda pode? Que PM é essa?

Essas questões mostram que o que está em jogo é muito mais complexo do que a polêmica sobre a presença ou não da PM no campus.

Pane na linha 4 revela desajuste na gestão do metrô de São Paulo

Na última segunda-feira, a recém-inaugurada linha 4-amarela do metrô de São Paulo ficou fechada das 4h40 às 8h20 por conta de uma pane no sistema. Nos jornais, o Governo do Estado diz que está cobrando do consórcio ViaQuatro explicações sobre o problema e que possíveis punições serão avaliadas posteriormente.

O fato é que essa é a primeira vez que um consórcio privado está gerindo uma linha de metrô. A pane da segunda-feira, que prejudicou 75 mil pessoas, mostra claramente que há um desajuste entre a gestão privada da linha 4 e toda a gestão pública do metrô. Com a linha em funcionamento, esse é um problema que precisa ser equacionado com urgência.

Leia mais sobre o assunto:

A Linha 5 do metrô de SP e o imbróglio não resolvido das licitações no Brasil

Apesar da suspeita de irregularidades no processo de licitação da linha 5 – Lilás do metrô de São Paulo, o governo do Estado anunciou ontem que retomará as obras, suspensas desde outubro passado.

A suspensão ocorreu após denúncia da Folha sobre um possível conluio no processo – um vídeo e um documento registrado em cartório revelavam os vencedores de determinados lotes com seis meses de antecedência.

O fato é que as leis e normas que regem os processos licitatórios para as obras públicas hoje no Brasil nem impedem a corrupção, nem conseguem dar agilidade e eficiência à gestão pública. A imprensa geralmente costuma abordar o tema com foco na lisura dos agentes públicos. A reação são mais estruturas de controle burocrático.

No entanto, raramente se fala sobre os procedimentos e ações utilizados pelo setor privado nas concorrências – impedindo muitas vezes que o poder público conclua a licitação sem fazer “acertos” entre as empresas – e sobre as práticas de cartelização de setores como o de transporte público urbano e coleta de lixo, entre outros.

O resultado é que enquanto o poder público está travado, a “festa” continua e o controle social nem está na pauta.