Câmara Municipal não pode simplesmente rejeitar plano diretor sem apresentar alternativas

Santa Rita do Sapucaí, no sul de Minas Gerais, até hoje não tem um plano diretor, nem regra de uso e ocupação do solo que oriente seu desenvolvimento. Desde 2001, a cidade de 38 mil habitantes vem discutindo uma proposta de plano diretor, que já teve várias versões. Em 2007, através de um processo participativo, finalmente foi elaborado um projeto de lei, que demorou anos para ser enviado à Câmara. Depois de muito tempo empurrando com a barriga, e sob pressão do Ministério Público e de um movimento de cidadãos santarritenses que pede a aprovação do plano, a Câmara Municipal submeteu a proposta à votação na semana passada. O problema é que os vereadores de Santa Rita, por 5 votos a 3, simplesmente rejeitaram o projeto.

A questão é que, como toda cidade com mais de vinte mil habitantes, Santa Rita é obrigada pela Constituição Federal a ter um plano diretor. O Estatuto da Cidade, inclusive, estabeleceu o ano de 2006 como prazo para que os municípios aprovassem seus planos. Os vereadores poderiam modificar o plano, apresentando propostas de emendas para artigos específicos ou, até mesmo, um substitutivo integral, desde que devidamente justificados, claro. O que eles não podem é achar que o assunto está encerrado com a rejeição do Projeto de Lei.

Diante de uma situação como esta, certamente o Ministério Público agirá para que se cumpra a Constituição e o Estatuto da Cidade. Isso significa que todos os vereadores e prefeitos de Santa Rita – inclusive de gestões passadas – estão desde já sujeitos a sanções por improbidade administrativa e podem chegar a perder seus mandatos ou até ficar inelegíveis.

Embora seja uma cidade ainda pequena, Santa Rita do Sapucaí vem conhecendo uma dinâmica econômica positiva, crescendo e se transformando rapidamente especialmente com a expansão da indústria eletrônica. E os efeitos desse crescimento sem planejamento já são visíveis. Para se ter uma ideia, a expansão da cidade vem se dando sobretudo em uma área de várzea, inundável. Além disso, a diferença da qualidade urbanística entre os bairros também salta aos olhos. É paradoxal e chocante uma cidade que tem uma alta qualidade e densidade tecnológica e educacional ser incapaz de implantar um modelo de planejamento e gestão urbanística a sua altura…

Em meio a tudo isso, é importante destacar a atuação do Movimento Ágora, que reúne cidadãos preocupados e comprometidos com o futuro da cidade. A aprovação do plano diretor participativo é uma das bandeiras do grupo, que vem se reunindo semanalmente no coreto da praça. Num dos cartazes espalhados por estabelecimentos comerciais, o grupo pede: “Vereadores, aprovem o plano diretor de Santa Rita”. Esta é a notícia boa em meio a tantas notícias ruins: em Santa Rita do Sapucaí – como em muitas cidades brasileiras – cada vez mais temos cidadãos indignados com o crescimento a qualquer custo, excludente e insustentável, e dispostos a lutar para superá-lo.

Os desafios para a política urbana brasileira

Entrevista publicada no site do Instituto Geodireito.

Por Gisele de Oliveira

Enquanto o Brasil avança em desenvolvimento, a necessidade de estabelecer uma política urbana que atenda a todos os cidadãos fica cada vez mais evidente. Cidades mal planejadas, explosões demográficas e migratórias, falta de diálogo entre os diversos setores do governo são alguns dos problemas que impactam no desenvolvimento equilibrado e socioambiental mais justo do país.

Na avaliação da professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Raquel Rolnik, o país ainda enfrenta dificuldades para aplicar o princípio da função social da cidade e da propriedade, estabelecido na Constituição. Como resultado, uma das regulamentações mais importantes para garantir o desenvolvimento ordenado do país, o Estatuto das Cidades ainda não foi implantada. Em qualquer país com cidades mais equilibradas, podemos observar um pactuação territorial que permite uma dimensão pública para o desenvolvimento urbano, diz.

Em entrevista exclusiva ao IGD News, a professora, que também é relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, fala a política urbana nacional, a sua importância e os desafios do Brasil neste sentido.

Em qualquer país onde temos cidades mais equilibradas, há uma mínima pactuação territorial para que uma dimensão pública possa dirigir o desenvolvimento urbano

IGD News – Qual o objetivo de o país ter uma política urbana pública?

Raquel Rolnik – Cidades são dínamos do desenvolvimento econômico. Elas podem funcionar para promover este desenvolvimento de forma equilibrada e includente. Ou, pelo contrário, para constituir um padrão insustentável e injusto de desenvolvimento. Uma política urbana pode ter a capacidade de ordenar o território na direção do equilíbrio e justiça social. E isto é indiscutivelmente uma missão da esfera pública.

IGD News – No dia-a-dia, como funciona esta política urbana no país?

Raquel Rolnik – Nossa política urbana é fragmentada e setorial, além de marcada pela temporalidade dos ciclos eleitorais. Fragmentada porque está disseminada em órgãos e esferas de gestão nos vários níveis da federação – municípios, estados, União – e setorial porque está em pedaços do desenvolvimento urbano como, por exemplo, habitação, saneamento, transportes, patrimônio, etc. Mas estes dois campos de atuação não dialogam entre si, sem que haja uma base planejada, pactuada com os cidadãos, para dar sustentação.

IGD News – Hoje, observamos uma grande concentração populacional em grandes centros urbanos. De que forma o governo tem evitado a saída de pessoas para estes grandes centros?

Raquel Rolnik – Os movimentos migratórios decorrem de dois processos: expulsão e atração. O processo de concentração da propriedade fundiária no campo e o desenvolvimento de uma agricultura tecnológica têm, sistematicamente, expulsado populações das zonas rurais, extinguindo a pequena propriedade familiar e diminuindo o número de trabalhadores rurais. Por outro lado, como as oportunidades e o desenvolvimento econômico e humano estão muito concentrados em poucos pontos do território do país, eles atraem as populações. O governo tem investido na descentralização de investimentos como, por exemplo, a abertura de inúmeros campus de universidades federais no interior do país ou a disponibilização de infraestrtutua logística mais disseminada pelo território. Tem investido também no estabelecimento de uma renda mínima de cidadania, que tem provocado alguma dinamização econômica em pequenas localidades. Por outro lado, este movimento não tem sido acompanhado por limites aos processos de concentração fundiária e expulsão no campo.

IGD News – Por que o país demora tanto para implementar um Estatuto das Cidades?

Raquel Rolnik – A razão pela demora é justamente a dificuldade de aplicação do princípio da função social da cidade e da propriedade, estabelecido na Constituição Federal, diante de uma cultura de ocupação do território predatória e dominada pela função patrimonialista deste. Ou seja, de sua função como reserva de valor. Em qualquer país onde temos cidades mais equilibradas, há uma mínima pactuação territorial para que uma dimensão pública possa dirigir o desenvolvimento urbano.

IGD News – O meio ambiente é um dos temas mais debatidos no mundo atualmente. A política urbana nacional é eficiente em promover o desenvolvimento sem prejudicar o meio ambiente?

Raquel Rolnik – Não. Em primeiro lugar, porque a matriz básica do nosso modelo urbanístico é o transporte sobre pneus e o modelo rodoviário é o de maior impacto sobre o meio ambiente, tanto por seu potencial poluidor como por seu impacto sobre a constituição de um modelo de espraiamento que constantemente desmata, erode, entre outros. Em segundo lugar, porque como se trata de um modelo que não incorpora os pobres à cidade, ou seja, não tem uma estratégia de acesso a terra urbanizada e consolidada para essa classe, ele, perversamente, joga a produção informal irregular sobre as áreas de maior fragilidade ambiental.