Fora das ruas e em lugar nenhum

A coluna Tendências/Debates da Folha de São Paulo traz na edição de hoje artigo assinado por Bruno Miragaia, Juliana Avanci e eu sobre o comércio ambulante nas ruas da cidade e as tentativas da Prefeitura de cassar a licença de trabalho de centenas de ambulantes em várias regiões. Confira abaixo.

TENDÊNCIAS/DEBATES

Fora das ruas e em lugar nenhum

Desde os anos 60 tentam tirar ambulantes da rua. O prefeito fortaleceu essa política. Vamos jogar essas pessoas vulneráveis na miséria e na marginalidade?

As ruas de São Paulo começaram a ser utilizadas para comércio ambulante a partir da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, nos idos de 1850. A primeira norma municipal de regulação da atividade foi a lei 292/1969, sobre “o modo de fiscalizar os mercadores ambulantes”.

Tal atividade resistiu por mais de um século a todos os ciclos econômicos – e atravessou o tempo adquirindo características próprias até o cenário atual, que consolidou como referências nacionais redutos de comércio popular em bairros paulistanos, como o Brás, 25 de março, República, Sé, entre outros.

Os Termos de Permissão de Uso foram concedidos em São Paulo desde 1965 para ambulantes de plantas ornamentais e estendidos como reserva de mercado aos deficientes físicos em 1986. A primeira tentativa de extinção dos ambulantes na cidade foi tomada por Ademar de Barros em 1960 – que se viu obrigado a recuar da decisão, por pressão social.

Essa política regulatória busca propiciar o desenvolvimento urbano e econômico local, criando oportunidades para geração de trabalho e renda, em especial aos trabalhadores mais vulneráveis, como idosos, deficientes e pessoas com baixa escolaridade, que têm menores chances de obter rendimentos de outra forma.

Desde 2009, a Prefeitura de São Paulo intensificou a (des)política de extinguir o comércio ambulante existente há décadas na cidade.
Sem qualquer planejamento de oferta de outras oportunidades e nenhum debate público, os pontos de comércio são extintos e os ambulantes removidos. O prefeito anuncia, às vésperas do fim do mandato, a construção de shoppings populares nas periferias, sem demonstrar qualquer previsão orçamentária, terrenos disponíveis ou mesmo projetos e estudos dos locais. Tampouco há qualquer participação popular na tomada dessas decisões.

Diante do risco à ordem socioeconômica, a Justiça determinou no dia 4 de junho a paralisação das remoções, tendo como fundamento:

– Falta de participação popular;
– Indícios de que a Constituição e as leis foram ignoradas;
– Que a decisão do prefeito é desproporcional e desarrazoada;
– Ausência do devido planejamento urbano;
– Indícios de ilegalidade quanto ao direito de defesa;
– Ilegalidade por falta de prévia oitiva das comissões permanentes de ambulantes, entre outros.

Essa decisão foi confirmada em 27 de julho por 22 dos 25 desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Isso demonstra que a manutenção dos ambulantes legalizados há décadas na cidade se mostra indispensável até que o município apresente uma alternativa concreta, urbanística, socialmente defensável e aberta ao debate público, ainda que com reassentamento alternativo. Isso irá evitar o rompimento da atividade comercial, desemprego, miséria e marginalização.

Como bem afirmado pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, a cidade de São Paulo ainda é uma “Berlíndia” (uma mistura de Bélgica com Índia), o que exige que a Justiça garanta o direito de todos, em especial dos mais vulneráveis, a uma cidade justa e, de fato, heterogênea.

RAQUEL ROLNIK, 55, é urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
BRUNO MIRAGAIA, 33, é defensor público de São Paulo
JULIANA AVANCI, 30, é advogada do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Onde vai parar a política higienista de Kassab?

No final do mês passado, circulou na imprensa a informação de que a Prefeitura de São Paulo quer proibir organizações assistenciais de distribuir sopão para moradores de rua. O secretário municipal de Segurança Urbana, Edsom Ortega, chegou a afirmar que as instituições que descumprissem a determinação seriam punidas. Hoje são 48 as instituições que oferecem este serviço na capital paulista.

Depois de uma forte repercussão nas redes sociais, a Prefeitura divulgou uma nota dizendo que “não cogita proibir a distribuição de alimentos por ONGs na região central da cidade”. O comunicado diz ainda que “O que existe é a proposta de que as entidades ocupem espaços públicos destinados para o atendimento às pessoas em situação de rua, como as tendas instaladas pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social. A Prefeitura entende que a união das ações das ONGs com as dos agentes sociais têm potencial para tornar ainda mais eficazes as políticas de reinserção social”.

É possível que, neste caso, tenha havido um mal entendido causado pela declaração do secretário Edsom Ortega, que já tratou de desdizer o que havia afirmado anteriormente. Ainda assim, 300 pessoas protestaram no dia 6 de julho em frente à Prefeitura, na região central da cidade, contra a tentativa de proibição da distribuição do sopão. Batizado na redes sociais de “Sopão da gente diferenciada”, em referência ao “Churrascão da gente diferenciada” de Higienópolis, o protesto chamou atenção também para as políticas higienistas do prefeito Gilberto Kassab.

Há vários exemplos recentes desta política: a ação policial para retirar usuários de crack da região da Luz, em janeiro deste ano, e, mais recentemente, a tentativa da Prefeitura de cassar a licença de trabalho de ambulantes, assunto que também já comentei aqui no blog.

Aliás, no final do mês passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu manter a permissão de trabalho de ambulantes em diversas regiões da cidade. Em maio, quando a prefeitura cassou mais de 4 mil permissões, a Defensoria entrou com uma ação na Justiça em favor dos ambulantes. Depois de várias liminares favorecendo um e outro lado, a Justiça finalmente tomou uma decisão a favor dos trabalhadores. A Prefeitura determinou, então, sete locais para o trabalho dos ambulantes, o que desagradou novamente os trabalhadores, que não consideram adequadas as novas localizações.

O que está em jogo neste conjunto de ações por parte da Prefeitura é uma visão securitária e higienista do espaço urbano, assim como sua enorme dificuldade de tratar temas que são complexos – como o vício do crack ou a situação do morador de rua – reduzindo-os simplesmente à presença ou não destas pessoas em determinados espaços públicos.

Fim do comércio ambulante ou fim dos ambulantes?

No mês passado, a Prefeitura de São Paulo cassou as licenças de trabalho de 470 ambulantes que trabalhavam na região da Rua 25 de Março e da Praça da Sé, no centro. Outros 512 ambulantes perderam a permissão que tinham para trabalhar nos bairros de Pinheiros e da Lapa, na zona oeste, e em São Miguel Paulista. Entre estes, um grande número de idosos e pessoas com deficiência. De acordo com reportagem do Estadão, nos últimos seis anos, 15 mil ambulantes foram retirados das ruas. O objetivo da prefeitura, agora, é acabar com todos os camelôs da cidade.

A Defensoria Pública de São Paulo tem atuado para tentar reverter a situação. Há mais de um mês, o órgão entrou com uma ação contra a revogação das licenças dos ambulantes de São Miguel Paulista. No dia 24, a Justiça concedeu uma liminar favorável aos trabalhadores. No início desta semana, a Defensoria entrou com uma nova ação, pedindo a anulação da revogação da licença de mais trabalhadores.

Obviamente que ninguém quer que a cidade seja inteiramente tomada por camelôs, nem que as pessoas possam vender o que quiserem, onde quiserem, sem nenhuma organização e planejamento. Mas também é óbvio que a cidade precisa de espaços comerciais que não são os espaços das lojas. Isso pode ser equacionado, mas não simplesmente retirando os comerciantes da rua, cassando a permissão e impedindo-os de trabalhar, sem nenhum diálogo e sem ofertas concretas de alternativas.

Algumas cidades têm experiências positivas nesta área, como Diadema e Belo Horizonte, que criaram shoppings populares bem localizados, garantindo o trabalho de comerciantes que antes trabalhavam nas ruas. A Prefeitura tem afirmado à imprensa que está oferecendo capacitação profissional a deficientes e idosos e que até o próximo ano irá inaugurar três shoppings populares. Mas tudo isso deveria ter sido feito ANTES de retirar os ambulantes das ruas.

A atitude da Prefeitura de São Paulo foi autoritária, higienista e excludente, bem na lógica da “São Paulo para poucos”. Uma ação como esta jamais deveria ser feita sem diálogo com as pessoas afetadas e sem oferta de alternativas que possibilitem a existência de um comércio popular, com vendedores autônomos, que precisam ter espaço de trabalho na cidade.