Viva a voz das ruas

Nas últimas semanas, manifestações de rua em todo o país foram destaque em vários veículos de mídia. O que há de novo – mas nem tanto – nesta forma de protestar e manifestar opiniões?

Não é de hoje que ocupar ruas, praças e avenidas para reivindicar direitos e manifestar ideias publicamente tem marcado nossa história: sem ir muito longe, a chamada “revolta da vacina”, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século passado, parou a cidade durante dias. Os manifestantes se opunham à imposição da vacina obrigatória, mas também protestavam contra o bota-abaixo que o então prefeito Pereira Passos estava promovendo na cidade, destruindo bairros e rasgando avenidas.

Das barricadas anarquistas à campanha das diretas, da passeata dos cem mil em 1968 à marcha da maconha, das marchas a favor dos direitos das mulheres aos atos contra o racismo e a homofobia, das manifestações contra os baixos salários em diversos setores da economia às lutas por moradia, em defesa do meio ambiente, por melhores condições de transporte público e contra o aumento das tarifas: as ruas sempre foram nosso espaço prioritário de reivindicação de direitos e de manifestação pública de opiniões.

A novidade, hoje, talvez, seja a utilização da internet como ferramenta de mobilização – rápida e instantânea –, com capacidade de alcançar públicos mais amplos, heterogêneos e não previamente organizados em movimentos, associações, partidos, torcidas ou confrarias. O “churrascão da gente diferenciada”, em Higienópolis, convocado por Facebook, é um ótimo exemplo disso.

Quando a rua vira palco, o transeunte – que não vive a rua, apenas passa por ela – de repente vira ator, protagonista e, portanto, cidadão. Por sua vez, a cidade também se transforma: de lugar puramente de circulação e consumo a espaço público, polis. Quem já foi gritar nas ruas sabe que a sensação é indescritível: o tempo para, criando uma espécie de vácuo onde tudo é possível. Claro, de vez em quando, as buzinas, e/ou a polícia, nos lembram que aquele era só um momento, que não podia nem devia durar para sempre. E parece que tudo volta ao normal… Será?

Texto originalmente publicado no Yahoo!Colunistas.

Para Além da Lei: Legislação Urbanística e Cidadania

Uma teia invisível e silenciosa se estende sobre o território da cidade: a legislação urbana, coleção de leis, decretos e normas que regulam o uso e ocupação da terra urbana. Mais do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento de cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo fronteiras de poder. Na verdade, a legalidade urbana organiza e classifica territórios urbanos, conferindo significados e legitimidade para o modo de vida e micropolítica dos grupos mais envolvidos na formulação dos instrumentos legais. Por outro lado, a legislação discrimina agenciamentos espaciais e sociais distintos do padrão sancionado pela lei. Assim, a legislação atua como um forte paradigma político-cultural, mesmo quando fracassa na determinação, na configuração final da cidade.

Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais interessantes da lei. Aparentemente, esta funciona como uma espécie de molde da cidade ideal ou desejável. Mas no caso de São Paulo, e da maioria das cidades Latino-Americanas, a legislação urbana regula apenas uma pequena parte do espaço construído, uma vez que a cidade não é resultado da aplicação inerte do modelo contido na lei.A cidade real é conseqüência da relação que a legalidade urbana estabelece com o funcionamento concreto dos mercados imobiliários que atuam na cidade. Entretanto, ao definir formas permitidas e proibidas de produção do espaço, a le-gislação define territórios dentro e fora da lei. Essa delimitação tem conseqüências políticas importantes, na medida em que pertencer a um território fora da lei pode significar uma posição de cidadania limitada. Não existir, do ponto de vista burocrático ou oficial para a administrada cidade, é estar fora do âmbito de suas responsabilidades para com os cidadãos.

Na história da cidade de São Paulo, e de sua legislação urbanística, esta tensão – legalidade/ilegalidade – esteve sempre presente, fortemente identificada com espaços de alta renda, fortemente regulados, que se contrapõem aos espaços populares não regulados ou em desacordo com a lei. Repetida infinitas vezes ao longe da história, esta tensão sintetiza o movimento de um mercado imobiliário cuja rentabilidade e ritmo de valorização são definidos por uma dupla lógica: por um lado, são mais lucrativos os agenciamentos espaciais capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação. E por outro, se valorizam os espaços altamente diferenciados e exclusivos.

A intensidade de uso é garantida através do estabelecimento de um território fora da jurisdição de lei, aonde a terra pode se subdividir ao infinito; a condição é não “contaminar” as vizinhanças. Daí decorre um duplo movimento estabelecido pela lei: por um lado garantir a “proteção” de determinados espaços contra a invasão de usos e intensidades de ocupação degradantes, de outro definir uma fronteira, para além da qual estes mesmos usos seriam tolerados.

Este movimento se expressa pela primeira vez, no Código de Posturas de 1886 , quando se demarca pela primeira vez uma zona urbana (correspondente à área central da cidade) onde se proibia a construção de cortiços. O desenho desta zona foi sendo sucessivamente reatualizado, sem, entretanto, romper com a concepção básica de se manter uma zona urbana cada vez mais minuciosamente regulada e uma vasta zona suburbana (e rural) que poderia ser ocupada com usos urbanos vedados para a primeira tais como matadouros, cemitérios, indústrias malcheirosas e… cortiços.

Aliado à demarcação legal destas macrofronteiras, no interior do espaço regulado – ou zona urbana – a legislação encarregou-se desde cedo de demarcar espaços ainda mais restritos e protegidos: os loteamentos exclusivamente residenciais da elite paulistana.

O artigo na íntegra está disponível aqui.