A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #2: Controle de aluguéis na Europa

O parlamento da cidade-estado de Berlim aprovou nesse mês o controle de aluguéis. O modelo tenta estabilizar a tendência de alta dos aluguéis nos últimos dez anos. Lá, 85% dos habitantes são inquilinos.
Assim como em outros lugares da Europa, a nova legislação foi aprovada em razão de forte pressão dos movimentos sociais. Em países como Alemanha, Espanha, Dinamarca, os sindicatos de inquilinos têm grande representatividade.

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Independência e morte do Ipiranga

Sabem o riacho do Ipiranga?

Aquele cujas margens ouviram o brado retumbante de um povo heroico, palco do mítico grito de independência de dom Pedro 1º, retratado na obra de Pedro Américo e citado no hino nacional? Pois bem, esse símbolo brasileiro encontra-se altamente poluído e suas margens degradadas. Quem ousa seguir seu curso hoje -o que não é nada fácil- pode constatar o péssimo estado em que se encontra.

Sabemos que essa é a situação dos mais de 1.500 km de rios e córregos que temos em São Paulo. Sabemos também que na construção da cena da Independência, formulada na verdade bem depois de 1822 –o quadro de Pedro Américo é de 1888–, o rio, assim como vários outros elementos (os cavalos, os uniformes etc.), não é uma reconstituição realista, mas uma construção simbólica de um projeto de nação tal como formulado pelas elites políticas e culturais brasileiras já às vésperas da República. Por isso, falar sobre o Ipiranga, sujo e abandonado, em pleno 7 de setembro, é refletir sobre a relação dos rios com um projeto de cidade.

Quando Pedro 1º e sua comitiva passaram pelo Ipiranga, a região era tão somente um dos caminhos que levavam a São Paulo. É com a industrialização, no final do século 19, início do 20, que a área começa a ser ocupada. Ainda nesse período, a administração da província desapropria ali uma grande área, criando assim o que hoje chamamos de Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, o que permitiu a proteção da mata e também da nascente do rio. Na época, isso visava garantir uma das fontes de abastecimento de água, a adutora Ipiranga, que foi desativada em 1930. No mesmo período começava a ser implementado o Jardim Botânico, dentro do parque estadual.

Nos anos 1970, porém, a rodovia dos Imigrantes corta o parque. Com a intensificação da ocupação da região, resíduos industriais e residenciais começam a ser despejados no rio. Canalizados, passando por baixo da rodovia ou próximos a outras grandes avenidas, cerca de 7 km de rio estão completamente poluídos. A medição mais recente que encontrei, de março de 2015, afirma que a qualidade da água é muito ruim. Nem fonte de abastecimento de água nem elemento da paisagem, o rio passa, assim, a ser tratado como um obstáculo a ser vencido em um processo de expansão da ocupação.

É no Jardim Botânico, com seus 360 mil m² de mata atlântica remanescente na cidade, que se encontra o único trecho preservado do Ipiranga, o córrego Pirarungáua, um dos formadores do rio. Esse trecho foi aberto em 2006 após décadas tampado com concreto e, em seguida, passou por um processo de revitalização. Hoje, quem chega ao Jardim Botânico encontra um córrego de águas límpidas, com peixes, integrando a paisagem. Além disso, é possível percorrer, em meio à reserva, uma trilha de 20 minutos que leva os visitantes até a nascente do Ipiranga.

A degradação do rio, assim como o esforço em recuperar sua nascente, corresponde de algum modo ao que estamos vivendo na cidade hoje: de um lado, o projeto hegemônico de destruição em nome da máxima rentabilidade do uso do solo, de outro, os desejos e movimentos de recuperação da relação dos paulistanos com seu território, redescobrindo o espaço público, inclusive seus rios.

*Publicado originalmente no Caderno Coitidiano da Folha.

Brasil e Argentina: diferenças e semelhanças para além do futebol

No mês passado, visitei a Argentina como Relatora da ONU para o Direito à Moradia. Certamente, foi uma visita bem diferente das demais que eu já havia feito naquele país como turista ou como professora e urbanista. Com certeza também foi uma experiência muito diferente da que estavam vivenciando inúmeros brasileiros que encontrei pelas ruas de Buenos Aires, obsessivamente ocupados em fazer compras, ouvir tango e beber vinho (não que não sejam coisas ótimas de se fazer por lá).

Como Relatora da ONU, entro por uma espécie de porta dos fundos dos países que visito, que costuma ser o avesso do que mostram os cartões postais e campanhas publicitárias para atrair turistas. Em Buenos Aires, por exemplo, pude conhecer, ainda que rapidamente, um outro lado de Puerto Madero, a mais nova frente de expansão imobiliária da cidade, em pleno centro da cidade.

Puerto Madero é uma antiga área portuária que foi reocupada com escritórios, bares, restaurantes e lofts de luxo. Um turista que vai a um de seus restaurantes não se dá conta da existência, ali bem pertinho, de uma favela (chamada de “villa” pelos argentinos) que existe desde os anos 1980 e que se expandiu com a chegada de operários que construíram os novos empreendimentos da região.

A comunidade em questão chama-se Rodrigo Bueno. As pessoas que lá moram agora lutam para permanecer onde vivem – afinal, são terras públicas – e receber investimentos em infraestrutura, já que ali não há rede de água, nem de esgoto, nem nada que possa ser chamado de urbanidade. Contra sua permanência estão, principalmente, os novos proprietários do terreno vizinho, uma gleba que pertencia ao Clube Boca Juniors (cujo ex-presidente é o atual prefeito de Buenos Aires) e que foi vendida para um dos maiores incorporadores imobiliários da cidade, que ali pretende implantar um condomínio residencial fechado, áreas comerciais e amenidades náuticas. Além disso, há também ambientalistas que consideram o assentamento uma ameaça à reserva ecológica que existe na região.

A operação urbana de Puerto Madero tem semelhanças e diferenças com projetos do mesmo tipo aqui no Brasil. Em São Paulo, na região da Berrini, Marginal Pinheiros e Vila Olímpia, duas grandes operações urbanas – Faria Lima e Águas Espraiadas – promoveram uma grande transformação numa antiga área industrial, onde algumas comunidades, como a do Jardim Edith e a Real Parque, lutaram bravamente para permanecer onde se encontravam.

Tanto em Buenos Aires, quanto em São Paulo, trata-se de transformações urbanísticas implementadas através de parcerias público-privadas, promovidas pelos governos municipais nos anos 1990 e 2000. Nos dois casos, são operações de renovação – com torres de escritórios, restaurantes e empreendimentos de luxo – que geraram processos de altíssima valorização imobiliária. Mas as semelhanças param por aí.

Puerto Madero é uma extensão do próprio centro de Buenos Aires, que nunca foi abandonado por suas elites – como ocorreu em São Paulo – e nunca perdeu sua heterogeneidade de funções: ao mesmo tempo é lugar de moradia e de negócios, de vários grupos sociais. A qualidade urbanística de Buenos Aires sempre foi – e continua sendo – incomparavelmente melhor do que a de São Paulo. Seu centro, incluindo Puerto Madero, é um lugar de pedestres e  as calçadas e espaços públicos são a base de sua estrutura urbana.

Além disso, na operação urbana de Puerto Madero, executada por uma corporação pública, a valorização imobiliária que foi gerada ficou em mãos do poder público, que foi leiloando o solo à medida que a operação avançava. Em São Paulo, toda a valorização foi apropriada pelo setor privado, que especulou com os CEPACS (certificado de potencial adicional de construção) que financiaram a operação.

Por outro lado, nas leis que viabilizaram as operações Faria Lima e Águas Espraiadas, as favelas ali existentes foram declaradas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), estabelecendo um compromisso de urbanizá-las e regularizá-las com os recursos das operações. Em Puerto Madero, a favela Rodrigo Bueno, entre outros assentamentos que já existiam na região, foi literalmente ignorada.

É bem verdade que as promessas de urbanização das favelas da região das operações paulistanas não foram cumpridas e nenhuma foi urbanizada até agora com recursos destas operações. As últimas 250 famílias – de um total de 50 mil que ali residiam – continuam resistindo e ganharam, na Justiça, o direito de morar em novas habitações no local.

Buenos Aires e São Paulo; Puerto Madero e Vila Olimpía; Villa Rodrigo Bueno e Favela do Jardim Edith; Boca Juniors e Corinthians; futebol e negócios milionários: de fato, somos muito diferentes e profundamente parecidos.

Texto originalmente publicado no Yahoo!Colunistas.