O imaginário que ergue muros e a violência com endereço certo

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Foto: João Wainer / Instagram

O Fórum Brasileiro de Violência e do Núcleo de Estudos de Violência com o G1 lançou um estudo muito abrangente sobre mortes violentas no Brasil.  A partir de uma amostra bem expressiva das mortes violentas que ocorreram no país entre 21 a 27 de agosto de 2017, o levantamento  mostra  o perfil de quem foi morto e em quais circunstâncias isso ocorreu.   A pesquisa registrou nesse curto período de uma semana  1.195 homicídios, feminicídios, mortes por intervenção policial e suicídios.

A pesquisa revela um dado impressionante: a maior parte da violência homicida, a mais grave entre todas as violências, ocorre entre amigos, vizinhos ou gente da própria família, como nos casos de violência doméstica e feminicídio. Os homicídios tendem a se concentrar sempre nos mesmos locais, não apenas em determinados bairros, mas até em determinadas ruas.  Nesse sentido, o homicídio no país ocorre predominantemente dentro do campo das relações pessoais, em conflitos relacionados à vingança, retaliação ou outras formas de ódio dirigido ao outro (ou outra) que, na presença de armas de fogo, principal ferramenta usada, resultam em morte.

Esta constatação é muito importante justamente porque muito da arquitetura dos muros, das grades, dos condomínios fechados tem a ver com o medo da violência, do outro. Como sabemos as imagens das mortes violentas reproduzidas nos meios de comunicação ajudam a construir um imaginário de violência difusa, muito relacionado ao desconhecido. Mas esse modelo, na verdade, contraria a própria realidade da violência na atualidade.

Já há alguns anos, a Rede Nossa São Paulo tem pesquisado dados que resultam no chamado Mapa da Desigualdade, divulgado anualmente. Esse mapa mostra a diferença de vários indicadores entre os distritos da cidade de São Paulo e a recém-lançada versão 2017 reitera as profundas desigualdades da capital paulista.  Assim como o 11° Anuário de Segurança Pública, lançado nesta segunda-feira (30), que aponta que as vítimas da violência são predominantemente jovens negros e moradores de periferias em todo o país, o Mapa da Desigualdade mostra que a quantidade de assassinatos de jovens nas periferias de São Paulo é muito superior a qualquer um dos distritos centrais  com exceção do Brás e, em menor grau, na Sé, República e Pari.

Nessas periferias – ou nas periferias do centro, como são os territórios populares onde mora de forma precária uma população vulnerável e de baixa renda em cortiços, pensões, hotéis e na calçada – a ação da polícia militar é responsável por uma parte importante dos homicídios. Em 2016, 856 pessoas foram mortas durante intervenções policiais, o equivalente a 17% do total dos homicídios do estado, sendo a segunda principal causa de morte, ficando atrás apenas de homicídio doloso e bem a frente de latrocínio, a terceira motivação, com 7%.  80 policiais militares e civis foram mortos em São Paulo, a maioria deles negros, assim como os não-policiais assassinados.

Entretanto, foi nos distritos centrais que surgiram e se disseminaram os modelos de arquitetura do medo, do controle e da vigilância, que ajudam a reforçar esta espécie de apartheid que confina e mata os não-brancos, afastando sua presença.

É evidente que quando falamos de violência não podemos nos referir apenas a homicídios.  Parte do medo está relacionada também a latrocínio e roubo, mais espalhados pelo território. Mas, ainda assim, transformar a lógica do modo de morar e de organizar a cidade, erguendo muros, não resolve o problema da violência da cidade, como já falamos em outro texto.

De qualquer forma, estes indicadores são importantes para refletirmos sobre a forma como opera o imaginário da violência na arquitetura da cidade e os desafios – bem mais complexos do que construir muros e circuitos internos de TV – da violência real.

Também falei sobre esse assunto na Rádio Usp na semana passada. Ouça aqui