Antes de aterrissar em Tóquio, onde estive na semana passada, o que povoava meu imaginário era a cidade ultradensa, de letreiros multicoloridos em movimento. Eu ainda não sabia que Shibuya, Shinjuku, assim como outros locais ultra vibrantes da cidade, foram produto de um longo e contínuo processo de “redevelopment” (literalmente, redesenvolvimento) conduzido pelo governo da cidade. A Tokyu Corporation, uma companhia de desenvolvimento urbano local, é a responsável por planejar e implantar parte do sistema público de transporte sobre trilhos e reurbanizar porções da cidade.
Para evitar o super congestionamento da área central, Tóquio desenvolveu uma estratégia de criação de subcentros, estruturados a partir de entroncamentos de grandes linhas de trem e metrô. O interessante deste processo é que a mesma corporação que constrói as novas linhas também conduz a reurbanização de toda a área.
Além disso, ao invés de desapropriar a região onde será implantada a linha, a empresa –ao longo de anos e às vezes décadas– vai adquirindo terrenos do entorno da área de interesse, enquanto os preços estão baixos e o projeto ainda não anunciado, tornando-se uma das principais proprietárias de imóveis na região.
Quando decide implantar a nova linha, promove então o chamado “land redevelopment” constitui um fundo imobiliário dos proprietários de imóveis na área, que podem ser amalgamados em um ou mais terrenos, demole algumas edificações, recebe investimentos imobiliários, para depois, devolver parte aos proprietários originais –sob a forma de apartamentos, espaços comerciais ou escritórios nos novos empreendimentos e parte a ser entregue para o investidor imobiliário que obterá lucro graças as unidades excedentes, geralmente obtidas pelo aumento da área construída no local.
Uma parceria com a Urban Renaissance Agency, empresa nacional pública de produção habitacional, permite que parte da área residencial produzida na operação seja destinada para uma população de rendas mais baixas. Os espaços residenciais e comerciais que não são destinados para os antigos proprietários são comercializados e os recursos arrecadados com a venda e o aluguel contribuem para financiar a extensão dos metrôs e trens, ao mesmo tempo que toda a operação traz novos usuários para as linhas e estações implantadas.
Como tudo na vida real, nem tudo são flores no modelo: muitos bairros resistem às operações arrasa-quarteirão, questionando a destruição de locais que tinham qualidades urbanísticas; embora os antigos proprietários ganhem necessariamente um lugar no novo empreendimento, moradores –principalmente locatários– acabam sendo expulsos para os subúrbios em função da grande valorização da área. Enfim, várias são as sombras desta forma de adensar a cidade.
O que me chama atenção –pensando é claro nas nossas vicissitudes– é que, em um dos países de mais forte economia de mercado –o Japão– é o poder público que planeja, implementa e embolsa uma boa parte dos lucros imobiliários decorrentes do adensamento da cidade. E infraestruturas públicas de massa –como o incrível sistema de metrôs e trens japoneses são a essência deste planejamento. Só para comparar….
*Coluna originalmente publicada no caderno Cotidiano da Folha.
O que chama atenção no caso japonês, cf. este relato, é o longo processo pelo qual o “redevelopment” se faz, ao contrário da pressa, da sanha em redesenhar e demolir o existente, como se pretendeu com o Nova Luz de São Paulo. Pois esta foi a característica mais nefasta do poder público que aventou o Nova Luz: a pressa, ante o desejo de transformar o velho bairro de Santa Ifigênia em paraíso para pessoas consumidoras “do tipo certo” (Harvey).
Aqui, ainda em 2005, quando o Nova Luz foi “lançado” pelo então prefeito Serra, a ideia era botar abaixo quarteirões inteiros de uma hora para outra, para depois pensar num projeto de redesenho urbano propriamente dito. E vamos lembrar que naquela altura a (extinta) EMURB assumia que tinha em mãos tão somente “diretrizes” traçadas para o futuro do bairro.
Valeu, então, a reação imediata dos comerciantes e também dos moradores locais contra essa forma imediatista de “revitalização” urbana, depois corrigida para “requalificação”, muito embora para acabar na Concessão Urbanística aventada pelo Kassab.
O exemplo do Japão oxalá seja entendido como um processo pelo qual devemos retomar o planejamento de melhorias para Santa Ifigênia, considerando o transporte público na região já bastante estruturado. Ademais, é tratar de reinventar o ex-Nova Luz com a participação da sociedade civil e, de quebra, começar pela ZEIS demarcada, no sentido de fazer juz à intervenção do poder público.
Rolnik, o Japão é muitas coisas, mas “forte economia de mercado” ele nunca foi. Capitalista, ok, industrial, ok, mas longe da noção liberal de economia de mercado.
A mentalidade japonesa é coletivista e fortemente vincada pela hierarquia e pela noção de honra, o oposto da ideologia liberal-individualista de mercado, que tem como matriz mundial os EUA. O governo japonês desde sempre privilegiou umas poucas empresas (Sony, Honda etc.) e direcionou políticas industriais, investimentos etc. Por outro lado, é dificílimo exportar para o Japão, que tem um mercado bastante fechado e protegido. Tudo isso explica a postura de regulação do desenvolvimento urbano, não há qualquer contradição entre ela e o capitalismo japonês.
Em maio desse ano fiquei três semanas viajando no Japão e ao ler este texto consegui estabelecer ligações com o que observei durante minha estadia. Sobre a Tokyu Corporation cabe apenas esclarecer que não se trata de uma companhia de desenvolvimento urbano local, mas sim de uma empresa ferroviária (“Tokyu” é a abreviatura de “Tokyo Kyuko” que por sua vez é a redução do título completo da estrada, “Tokyo Kyuko Dentetsu”, i.e. “Ferrovia Elétrica Expressa de Tokyo”) que possui atividades imobiliárias e de desenvolvimento urbano paralelas à sua malha. Esse sistema de ferrovia agregado às atividades paralelas não é exclusivo à Tokyu; vários conglomerados como, por exemplo, Seibu, Tobu, Keikyu e Hankyu dentre outros possuem esta prática. Todos esses conglomerados são, antes de tudo, operadores de transporte ferroviário; o grupo Kintetsu (Kinki Nippon Tetsudo), por exemplo, é o segundo maior operador ferroviário do país, perdendo apenas para o grupo ex-estatal JR (Japan Railways). A melhor comparação seria a de um peixe, onde a espinha dorsal é o sistema ferroviário e a carne, as atividades paralelas. Estas, por sua vez, não se restringem apenas ao setor imobiliário e ao desenvolvimento urbano – os grupos operam ônibus (urbanos, de longo percurso e de fretamento), táxis, navegação, shopping centers/áreas comerciais (muitas vezes situadas dentro ou ao lado de estações, como os centros comerciais da cadeia “109”, pertencente à Tokyu Corporation), áreas de lazer, museus, hotéis (no Japão e no exterior) e em alguns casos, possuem até times de baseball (exemplo são os “Seibu Lions” da Seibu Corporation). A Tokyu Corporation vai mais além, detendo parte do controle acionário da ANA – All Nippon Airways, segunda maior empresa aérea do país. Essa diversificação de atividades existe por que a parte ferroviária dos conglomerados é deficitária; no Japão, os sistemas de transporte público recebem pouco ou nenhum subsídio para manter suas operações, de modo que diversificar é a ordem do dia para se manter ativo. A ideia é que as atividades paralelas atraiam passageiros para lotar os trens e que os trens tragam passageiros para fomentar as atividades paralelas, gerando sinergias comerciais que tornem o conglomerado resultante rentável. Considerando que a maior parte destes conglomerados são cotados em bolsa e que a prática vem se estendendo desde os anos 20 do século XX, podemos inferir que o modelo é bem-sucedido, pelo menos no ambiente japonês. Observar estas corporações em funcionamento e a infraestrutura de transporte resultante foi um dos pontos altos da minha visita, assim como lastimar o atraso e as oportunidades perdidas tanto em São Paulo como no Brasil como um todo.
Temos em São Paulo um fabuloso laboratório de experiências urbanas que permanece ignorado pelo poder público: as faculdades de arquitetura e urbanismo. Falta a interface entre universidades, governo e iniciativa privada. Essa costura, na minha opinião, é papel do IAB. Tivéssemos um IAB aguerrido faríamos uma revolução nessa cidade.
A politização da cidade também atrapalha muito. Tudo que se faz é sob as diretrizes da política partidária, em detrimento do planejamento urbano. Os partidos porém não têm projeto de cidade mas somente de poder. O que se vê são ações imediatistas cujos frutos possam ser colhidos de 4 em 4 anos. O prefeito, o homem mais importante da cidade, hoje está reduzido à função de síndico dos moradores e empregado do partido
Precisamos ainda abrir mentes e corações. Em vez de ficar demonizando os ricos e a ‘zelite’ que tal convidar esses atores – as grandes construtoras – para sentar à mesa e discutir a cidade?
PS: Por falar em ‘revolução’ não deixem de ler a entrevista do prefeito hoje na Folha, sobre a sanção do Plano Diretor. Leiam também os comentários. Eles mostram como a população ainda não entendeu a importância do PD. Falta maturidade ou informação. Ou os dois.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/07/1493575-sp-cobra-revolucao-desde-que-nao-se-mexa-em-nada-diz-haddad.shtml