Um bilhão de favelados

Entrevista publicada na Folha Universal (tiragem de 2,7 milhões de exemplares!!!) em 6 de setembro de 2009.

OBS: Concedi a entrevista no dia 4 de junho, alguns pontos podem estar desatualizados.

Por Gisele Brito

A violência das recentes reintegrações de posses de terrenos particulares ocupados em São Paulo traduz em cores fortes a carência habitacional do País. Ter uma casa própria não passa de sonho para grande parte dos brasileiros. Com déficit de oito milhões de casas, a habitação é um dos nossos principais problemas. Mais de 34,5% dos brasileiros vivem em moradias inadequadas. A urbanista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Raquel Rolnik, que há mais de 1 ano ocupa o cargo de Relatora Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), fala sobre esse grave problema: “Os lugares bons, urbanizados, com infraestrutura, estão bloqueados para os pobres.”

1 – O direito à moradia se resume a ter um teto?

Não, absolutamente. De acordo com os tratados internacionais na área de direitos humanos, moradia adequada é um lugar no qual a pessoa ou família tem acesso aos meios para uma sobrevivência com dignidade. Acesso a tratamento de água e esgoto, coleta de lixo, iluminação pública, pavimentação, arborização. A existência de um bairro que tenha equipamentos de saúde e educação. O acesso ao emprego, às oportunidades econômicas e culturais.

2 – E na área rural?

No meio rural, uma moradia adequada é um lugar onde a família pode plantar, pode distribuir seus produtos, ter água para irrigar sua plantação, ter acesso à estrada.

3 – Segundo o IBGE, 34,5% dos brasileiros vivem em condições inadequadas. O que isso acarreta?

Significa que as oportunidades estão muito limitadas, bloqueadas. E é por isso que o lugar onde a pessoa vive é uma engrenagem muito importante da concentração de renda e de oportunidades no Brasil. O lugar tem a ver com a ideia de quem é cidadão e quem não é cidadão.

4 – A Defensoria Pública de São Paulo questiona como a prefeitura recupera áreas de proteção ambiental ocupadas. O que a senhora acha?

Nos casos de remoção, existem procedimentos que devem ser adotados para se respeitar o direito das pessoas. Não é chegar de madrugada com trator, derrubando casas e muito menos dando cheques que não permitem que aqueles moradores possam ter uma moradia, no mínimo, igual a anterior. Não é por acaso que a maior parte dos lugares em que as pessoas moram está em áreas que não podiam ser ocupadas.

5 – E por que isso acontece?

Os lugares bons, urbanizados, com infraestrutura, estão bloqueados para os pobres. E aí, acabam sobrando os lugares onde o mercado formal não pode entrar: beiras de córregos, encostas íngremes, áreas de preservação, mangues. Isso só vai parar se aumentar o acesso à moradia em lugar adequado para quem tem menos renda.

6 – O que a senhora pensa do programa do Governo Federal, “Minha Casa, Minha Vida”, que pretende investir R$ 34 bilhões para construir um milhão de casas?

É muito positivo uma decisão governamental de colocar dinheiro do orçamento para construir moradia popular para quem ganha de zero a três salários mínimos de renda familiar mensal, onde a moradia é inteiramente subsidiada. Até hoje, nunca houve dinheiro para produzir moradia para esse grupo. E muito positivo também dar bastante subsídios a famílias com renda de três a seis salários, que conseguem pagar alguma coisa, mas não tudo. Esse valor, de R$ 34 bilhões, é algo que a gente não viveu ainda. Mas, por outro lado, o “Minha Casa” não faz nenhuma exigência de que a localização seja adequada. E isso faz com que a gente possa prever que a totalidade das moradias de baixa renda vai ser na extrema periferia.

7 – O que a senhora acha dos muros nas favelas no Rio de Janeiro?

É uma ideia infeliz, para dizer a palavra mais leve que eu consigo em relação à proposta do governador Sérgio Cabral. É muito sintomática. O Rio de Janeiro foi um dos lugares onde mais chegou dinheiro do PAC Favelas (programa voltado para a urbanização de favelas). Na hora que a favela vai virar um bairro, se põe um muro. Para quê? Para deixar claro que aquilo não é um bairro, é outra coisa. Então, eu acho que isso é um sinal, um símbolo da política excludente que a gente tem no País, que não quer deixar o pobre fazer parte da cidade.

8 – Qual é o paralelo entre precariedade da habitação e a violência?

O fato do lugar dos pobres na cidade ser o lugar da irregularidade e o da precariedade urbanística tem a haver sim com a violência. Em um lugar sem regra é muito mais fácil a penetração de circuitos ilegais.

9 – Há outros fatores?

É aquilo de todo dia eu estar num lugar em que eu vejo onde o outro mora, o carro que ele tem, a condição de vida que ele tem, a escola que ele tem e, daí, eu olho a minha e comparo. Esse embate exacerba a violência. Quanto mais segregação, mais violência. Quanto mais muro, mais câmera, mais carro blindado, mais violência.

10 – O que a relatoria do direito à moradia tem observado sobre habitação no mundo?

Um bilhão de favelados no planeta. Um terço da população mundial vive em favelas. Eu vi situações bem piores que as favelas brasileiras. Em assentamentos na Ásia, na Índia e em alguns lugares da África, existem situações muito precárias. Mas, por outro lado, existem lugares que resolveram seus problemas de moradia. Claro que são países desenvolvidos e europeus, mas que já tiveram o problema e o enfrentaram.

4 comentários sobre “Um bilhão de favelados

  1. Permita-me discordar da questão “9″, Raquel. Sou afrodescendente e oriundo de uma comunidade pobre mas tenho algo chamado “caráter”. Em meus piores dias de pobreza ainda garoto, jamais pratiquei algum crime simplesmente por não ter coisas que os garotos mais abastados tinham. Se eu fosse no embalo dos meus “amigos” certamente eu ainda estivesse morando lá…
    Sabe Raquel, eu e meia dúzia de alunos da minha classe éramos praticamente ETs apenas porque levávamos os estudos à sério e não faltávamos pra ficar lá no campinho maquinando (e fazendo) besteiras… Frequentávamos bibliotecas, fazíamos cursos gratuitos e tínhamos um alvo fixo: Arrumar um bom emprego e sair daquele lugar.
    Pois é Raquel, daquela turminha dedicada, todos estão bem hoje com sua casa própria, seu carrinho e filhos bem criados, e eu me incluo aí graças à Deus… Mas aqueles revoltadinhos com o sistema que seguiam a maldita “cultura” hip-hop, continuam na pindaíba. QUEM NÃO SE PREPARA NÃO TEM OPORTUNIDADES NA VIDA. É o velho RAP que incita a molecada à violência contra a sociedade ao invés de dar-lhes juízo e estimular o conhecimento. Aqueles caras ao invés de arregaçarem as mãos e irem à luta, preferiam ficar agindo feito marginais, ainda que não fossem…
    Quem quer ser tratado civilizadamente não pode agir como um selvagem… Em minha trajetória jamais fui desrespeitado, pois sempre bastaram algumas palavras bem articuladas e logo qualquer possibilidade de preconceito se dissipava.
    É Raquel, talvez eu e aquele punhado de amigos de escola fôssemos realmente ETs. Nós é quem estamos errados e os “revoltadinhos” são os certos… Talvez seja melhor esperar para que alguém dê tudo de mão beijada…
    Um abraço!

  2. o que a Raquel está explicando ao meu ver, são as faltas de políticas públicas e oportunidades. Hoje é muito difícil sobreviver em mundo preconceituoso, repleto de regras. O mercado de trabalho, por exemplo, quer profissionais com Inglês, Nível Superior, MBA e milhares de exigências que só quem tem dinheiro pode pagar, a diferença já começa na educação, não ter moradia digna também afeta a vida de qualquer pessoa.
    Habitação, educação, saúde, são direitos fundamentais, que são garantidos pela Constituição Federal, ninguém quer nade de graça, apenas condições de sobrevivência dignas e o imposto que você paga deveria ser revertido para isso. Não é porque você se deu bem, que as outras pessoas não prestam, é muito difícil para uma criança que nunca teve nada, que vive em um ambiente desencorajado, sem regras e violento sobreviver. Talvez você teve o apoio da família e isso dinheiro nenhum paga, sem apoio você não seria nada, sem alguém para te dizer o que é certo ou errado, você não aprendeu nada sozinho. A mídia, os meios de comunicação ficam o dia inteiro propagandeando imagens, mensagens que alcançam todos os níveis sociais e como menino da favela eu também me perguntaria, porque não posso ter isso? Claro que tem o caráter e você aprendeu que é errado roubar, mas alguém te ensinou isso e você não começou a ser honesto por instinto..
    Enquanto tivermos uma disparidade na desigualdade social sempre haverá violência. Você acha que quem é rico é porque merece? Isso sim soa como ignorância, os ricos só sabem reclamar dos impostos que pagam e não fazem nada para a população carente, não participam de ações políticas para viver em um país melhor e igual, apenas vivem em suas casas e condomínios fechados, carros blindados, sonegando impostos e comprando roupas na Daslu e grandes shopping center. Agora quem você acha que está errado? Os meninos que ouvem rap e estão totalmente excluídos da sociedade, não tem apoio familiar e estrutura e não são compreendidos ou uma sociedade cega que não faz nada para melhorar a qualidade do seu próximo, sonega impostos e reclama quando é assaltado, compra drogas, porque os maiores usuários são da classe média e depois reclamam dos morros e favelas e um governo que higieniza a cidade, ao invés de promover melhorias com o imposto que você paga?

  3. Belo discurso mas “VAZIO”, conversinha esquerdista pra boi dormir Evelin… Eu comentei com conhecimento de causa minha filha, todo o cenário tenebroso que vc descreveu sobre a miséria eu senti na pele, eu não disse que fiquei rico e nem que quem é rico é por que merece… Sou de classe média-média (Graças primeiramente à Deus) e para isso não precisa MBA e tudo o mais, mas ser de classe média é uma conquista para quem saiu de onde saí…
    Se vc prestar atenção no meu comentário, deixando de lado esta filosofia ultrapassada, vai ver que o problema é mais em baixo… Ficar tratando a miséria como um problema social é um erro grave, pois na verdade o problema é “CULTURAL”… Na favela gasta-se dinheiro à vontade com bebida, cigarro, drogas, forró, baile funk e outras porcarias, alimentando mal os “duzentos” filhos que cada família produz, porém pouca gente liga para Estudo e conhecimento, informação e formação… Não é por acaso que os meus ex-colegas de escola “revoltadinhos” que você defende estão lá cheio de filhos, um de cada mãe e fugindo da justiça por problemas de pensão alimentícia… Para pessoas assim envenenadas por letras de Rap que para mim é uma “droga auditiva”, a sociedade que somos eu e você, é o ALVO simplesmente por que temos um pouco mais que eles, e que ninguém pode evoluir impunemente.
    Eu também não generalizei, afinal destaquei os “ETs” nos quais me incluo, lembra? E há também pessoas com ideais fixos que não progrediram mas são uma minoria, e eu sei bem do que estou falando… A grande maioria são exatamente o que descrevi, contrariando a visão romântica e até ingênua que você, a Raquel e alguns engajados possuem…
    O assistencialismo e os CDHUs da vida são meros paliativos, é “enxugar gelo”, tem que trabalhar na cabeça das pessoas, mudar a mentalidade, a visão de mundo, de perspectivas, ensinar à pescar e não dar o peixe… é mudança CULTURAL e não apenas SOCIAL. Mas infelizmente por causa de formadores de opinião com pensamento paternalista, é que tudo vai continuar do mesmo jeito… E fica mais fácil jogar toda a culpa no Poder Público, né?!

  4. Olhando de longe da pra concordar com as duas opiniões, pois ambas tem fundamentos, mesmo sendo próprios de cada um.
    Mas também discordar, tanto do Paulo quanto da Evelin quando não sei o que ambos estão fazendo para mudar o atual quadro. Acredito que isso é o que interessa.

    Escrever é bom, colocamos pra fora as nossas idéias, mas e a ação…em que programas sociais e culturais as pessoas com boas idéias podem colaborar…eu também gostaria de saber.

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